No próprio dia da Ressurreição, dois discípulos resolvem abandonar o Cenáculo. O Divino Mestre lhes vai ao encontro, ensinando como devemos conviver com Ele por meio da fé e do amor.
Evangelho do III Domingo da Páscoa
13 Naquele mesmo dia, o primeiro da semana, dois dos discípulos de Jesus iam para um povoado chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém. 14 Conversavam sobre todas as coisas que tinham acontecido. 15 Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus Se aproximou e começou a caminhar com eles. 16 Os discípulos, porém, estavam como que cegos e não O reconheceram. 17 Então Jesus perguntou: “O que ides conversando pelo caminho?” Eles pararam, com o rosto triste, 18 e um deles, chamado Cléofas, Lhe disse: “Tu és o único peregrino em Jerusalém que não sabe o que lá aconteceu nestes últimos dias?” 19 Ele perguntou: “O que foi?” Os discípulos responderam: “O que aconteceu com Jesus, o Nazareno, que foi um Profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e diante de todo o povo. 20 Nossos sumos sacerdotes e nossos chefes O entregaram para ser condenado à morte e O crucificaram. 21 Nós esperávamos que Ele fosse libertar Israel, mas, apesar de tudo isso, já faz três dias que todas essas coisas aconteceram! 22 É verdade que algumas mulheres do nosso grupo nos deram um susto. Elas foram de madrugada ao túmulo 23 e não encontraram o Corpo d’Ele. Então voltaram, dizendo que tinham visto Anjos e que estes afirmaram que Jesus está vivo. 24 Alguns dos nossos foram ao túmulo e encontraram as coisas como as mulheres tinham dito. A Ele, porém, ninguém O viu”.
25 Então Jesus lhes disse: “Como sois sem inteligência e lentos para crer em tudo o que os profetas falaram! 26 Será que o Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar na sua glória?” 27 E, começando por Moisés e passando pelos profetas, explicava aos discípulos todas as passagens da Escritura que falavam a respeito d’Ele. 28 Quando chegaram perto do povoado para onde iam, Jesus fez de conta que ia mais adiante. 29 Eles, porém, insistiram com Jesus, dizendo: “Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!” Jesus entrou para ficar com eles. 30 Quando Se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes distribuía. 31 Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente deles. 32 Então um disse ao outro: “Não estava ardendo o nosso coração quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” 33 Naquela mesma hora, eles se levantaram e voltaram para Jerusalém, onde encontraram os Onze reunidos com os outros. 34 E estes confirmaram: “Realmente, o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!” 35 Então os dois contaram o que tinha acontecido no caminho e como tinham reconhecido Jesus ao partir o pão (Lc 24, 13-35).
I – Perdoados pelo Sangue redentor
Os textos litúrgicos deste 3º Domingo da Páscoa formam um conjunto harmônico e cheio de expressividade a respeito de um ponto essencial na vida da Igreja: o convívio com Nosso Senhor Jesus Cristo.
Na primeira leitura (At 2, 14.2233) encontramos São Pedro no dia de Pentecostes, dizendo aos israelitas verdades claras e categóricas, que os obrigam a sair da indiferença em relação ao deicídio consumado há pouco em Jerusalém. Tomado pelo Espírito Santo, ele os recrimina por terem sido cúmplices na Morte do Redentor, dirigindo-lhes palavras de fogo que movem ao arrependimento, como se lê alguns versículos à frente, não incluídos na Liturgia: “Ao ouvirem essas coisas, ficaram compungidos no íntimo do coração” (2, 37). Concluído o discurso, dáse o impressionante milagre de toda aquela gente ser batizada sem necessidade de uma longa preparação, elevando-se “a mais ou menos três mil o número dos adeptos” (2, 41).
A força manifestada por São Pedro nessa pregação é indicativa da presença do Divino Mestre junto àqueles que O representavam, conforme prometera: “Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, aí estou Eu no meio deles” (Mt 18, 20).
Esse trecho dos Atos dos Apóstolos ressalta a instauração de uma nova via espiritual, em que as graças místicas descem em profusão sobre as almas contritas
Por outro lado, esse trecho dos Atos dos Apóstolos ressalta a instauração de uma nova via espiritual, em que as graças místicas descem em profusão sobre as almas contritas, sem lhes exigir grandes penitências para expiar os erros passados. Em virtude do valor infinito do Preciosíssimo Sangue de Cristo derramado no Calvário, até os piores crimes são inteiramente apagados quando o pecador os reconhece e deles pede perdão. Por isso, o fruto do sermão de São Pedro não consistiu em lamentações estéreis. Pelo contrário, apesar de sentirem dor pelo mal cometido, seus ouvintes experimentaram a consolação de ver abertas diante de si as portas da Redenção e muitos devem ter saído dali ávidos por transmitir a outros as graças recebidas.
Na segunda leitura (I Pd 1, 1721) nos deparamos com outras afirmações estupendas do Príncipe dos Apóstolos, registradas em sua primeira epístola. Depois de exortar à perfeição lembrando o alto preço com que Cristo resgatou a humanidade “da vida fútil” (1, 18), acrescenta: “Antes da criação do mundo, Ele foi destinado para isso e, neste final dos tempos, Ele apareceu por amor de vós” (1, 20). Trata-se de um mistério sublime, que somente na eternidade conseguiremos abarcar por inteiro: sendo-Lhe possível constituir um universo onde houvesse apenas seres inocentes e incapazes de ofendê-lo, Deus preferiu tirar do nada a realidade que conhecemos, marcada pelo erro e pelo pecado, mas na qual, em contrapartida, fulguraria a entrega plena do Filho e sua Ressurreição gloriosa, o mais belo acontecimento de toda a História!
Essa alegria do perdão comprado por Aquele que Se fez presente entre nós transparece também no Evangelho, embora com matizes diferentes das leituras. Ao narrar em seu agradável estilo o convívio de Nosso Senhor com os dois discípulos de Emaús, São Lucas leva-nos a como que assistir à cena e dela participar, tornando fácil a compreensão das maravilhas contidas nessa passagem.
II – Duas almas vacilantes na fé
No decorrer do Tempo Pascal a Liturgia traz a lume a sequência de episódios sucedidos no dia da Ressurreição, entre os quais está a aparição do Senhor a Maria Madalena (cf. Jo 20, 1118) e às Santas Mulheres (cf. Mt 28, 810). Para melhor acompanharmos os versículos deste domingo, convém recordar a atitude delas perante o Ressuscitado, crendo sem exigir maiores explicações. Enquanto a irmã de Marta, que chorava junto ao sepulcro vazio, reconheceu o Mestre e acreditou em sua vitória sobre a morte quando Ele simplesmente a chamou pelo nome (cf. Jo 20, 16), as damas que corriam a transmitir aos Apóstolos a boa nova anunciada pelo Anjo tão só ouviram Jesus saudá-las – “Alegrai-vos!” – e se prostraram para abraçar Lhe os pés (cf. Mt 28, 9).
Muito diferente é a reação dos dois varões que protagonizam o trecho de São Lucas. Eles não pertenciam ao conjunto dos doze Apóstolos, mas, por serem discípulos, tinham convivido de perto com Nosso Senhor, assistindo a inúmeros milagres e recebendo amiúde seus ensinamentos. Contudo, no próprio domingo, quando já circulavam notícias sobre a Ressurreição, eles se destacam do grupo dos seguidores do Mestre e tomam o caminho para Emaús, cidade pequena, tranquila e provavelmente a terra natal de ambos. A partida de Jerusalém revela o quanto estavam abalados na fé e, no fundo, à procura de uma situação mais segura e cômoda que o drama no qual se debatiam desde o início da Paixão.
Decerto os dois haviam trocado impressões e planejado ausenta-se do Cenáculo de maneira discreta, combinando que cada qual atravessaria uma porta diferente da cidade e seguiria sozinho até certo ponto do caminho, onde se encontrariam para prosseguir viagem juntos.
Rumo à deserção
13 Naquele mesmo dia, o primeiro da semana, dois dos discípulos de Jesus iam para um povoado chamado Emaús, distante onze quilômetros de Jerusalém. 14 Conversavam sobre todas as coisas que tinham acontecido.
Podemos imaginar os dois personagens portando um bastão, quiçá cabisbaixos, a avançar pela estrada irregular. Segundo a distância indicada pelo Evangelista, tinham diante de si mais ou menos duas horas de percurso a pé. Abatidos, transmitiam um ao outro as desconfianças e angústias acumuladas nos últimos dias, confirmando-se mutuamente numa visualização distorcida sobre os acontecimentos vividos.
Entre as várias razões que os levavam a tal desalento, está em primeiro lugar o equivocado conceito, corrente entre os judeus, de um Messias político, que libertaria Israel da opressão romana e alçaria a nação eleita aos píncaros da glória. À vista dos milagres realizados por Nosso Senhor, muitos israelitas O associaram a essa imagem deturpada, julgando encontrar-se n’Ele a solução para os problemas econômicos, pois possuía poder de multiplicar o alimento, curar as doenças, expulsar os demônios e até restituir a vida aos mortos.
Perante o Ressuscitado, Santa Maria Madalena e as Santas Mulheres tomaram uma atitude de Fé, crendo, sem exigir maiores explicações
Essa mentalidade persistia mesmo entre os que, tocados por uma graça, se decidiam a deixar tudo para segui-lo. Alguns mediam a popularidade alcançada por Jesus em tão pouco tempo de vida pública e, considerando a jovem idade d’Ele, punham-se a sonhar com o futuro daquele empreendimento. Se os filhos de Zebedeu chegaram a pedir a Nosso Senhor a concessão de cargos de honra no Reino, provocando a indignação dos demais Apóstolos, os quais cobiçavam igual projeção (cf. Mc 10, 3541), é provável que tais ventos de ambição corressem também entre os discípulos.
Para os dois que se deslocavam rumo a Emaús tudo parecia arruinado, inclusive a imagem de Nosso Senhor enquanto Homem no qual depositavam sua segurança. Cabe observar que o contato com os Onze deve ter colaborado para aumenta-lhes o medo e a incredulidade pois, como narra o próprio São Lucas, as notícias trazidas pelas mulheres “pareciam-lhes como um delírio, e não lhes deram crédito” (Lc 24, 11).
Cioso por dar à Igreja nascente um impulso de força e energia, Nosso Senhor toma a iniciativa de resgatá-los, fazendo-lhes o bem omitido pelos Apóstolos. Assim Ele procederá em outras ocasiões no decurso da História, ao promover a salvação das almas apesar da negligência dos escolhidos para ampará-las.
A má tristeza torna as almas cegas para Deus
15 Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus Se aproximou e começou a caminhar com eles. 16 Os discípulos, porém, estavam como que cegos e não O reconheceram.
Chama a atenção o modo discreto como o Redentor Se aproxima deles, sem as fulgurações próprias ao corpo glorioso, pois não queria obrigálos a acreditar na Ressurreição. Comenta Teofilato que Cristo agiu assim com os discípulos “para que manifestassem toda a sua vacilação e, descobrindo a ferida, encontrassem o remédio”.[1] Os dois, pensando ser Ele apenas mais um transeunte, não se incomodaram com a companhia de um estranho e continuaram a debater.
Embora lhes faltasse uma fé robusta, suas preocupações giravam em torno da Pessoa de Nosso Senhor, e isto propiciou a intervenção d’Ele
Embora lhes faltasse uma fé robusta, suas preocupações giravam em torno da Pessoa de Nosso Senhor, e isto propiciou a intervenção d’Ele. Também nós, se desejamos ouvir uma palavra de Jesus, devemos conversar sobre assuntos elevados, relacionados com Ele e com o sobrenatural.
17 Então Jesus perguntou: “O que ides conversando pelo caminho?” Eles pararam, com o rosto triste, 18 e um deles, chamado Cléofas, Lhe disse: “Tu és o único peregrino em Jerusalém que não sabe o que lá aconteceu nestes últimos dias?”
Desde toda a eternidade Nosso Senhor conhecia o que eles falavam, mas, para ajudá-los a abrir a alma à sua ação, interroga-os de maneira bondosa e suave.
Ao ouvir a pergunta, os dois se detêm. Esse detalhe nos permite conjecturar que, até este momento, Jesus caminhava atrás deles; agora, acelerando a marcha, põe-se ao seu lado e lhes dirige a palavra.
A languidez estampada no rosto de ambos, reflexo do estado de ânimo dos Apóstolos, colaborava para a falta de fé, pois a má tristeza cega os corações para Deus e ensurdece os ouvidos à sua voz. Tal disposição de espírito é muito mais perniciosa à prática da virtude do que a alegria desequilibrada.
O fato de apenas Cléofas estar nomeado no texto nos leva a supor ser o próprio São Lucas o outro viandante. Aquele discípulo responde a Jesus com presteza e naturalidade, revelando uma virtude indispensável para os que se dedicam ao apostolado: a hospitalidade. Essas duas almas, apesar de fracas na fé, gostavam de se relacionar com os outros e de fazer-lhes o bem. Ao se depararem com um viajante interessado no assunto sobre o qual discutiam, logo O admitem na conversa.
“Não quebrará o caniço rachado, não extinguirá a mecha que ainda fumega” (Is 42, 3), profetizara Isaías a respeito do Salvador. Será por meio da benquerença ao próximo, ainda acesa no interior daqueles discípulos, que Nosso Senhor lhes fortalecerá o amor e a fé.
É compreensível o espanto de Cléofas ante o alheamento do viajante, o qual parecia estar retornando de Jerusalém, pois a Morte de Jesus convulsionara a cidade. Além da movimentação popular, assombrosos fenômenos haviam se verificado: o sol se escureceu e o véu do Templo se rasgou pelo meio (cf. Lc 23, 45); a terra tremeu, fenderam-se as rochas; as sepulturas se abriram e muitos justos ressuscitaram (cf. Mt 27, 5152).
Corações endurecidos pela falta de fé
19 Ele perguntou: “O que foi?” Os discípulos responderam: “O que aconteceu com Jesus, o Nazareno, que foi um Profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e diante de todo o povo”.
Nosso Senhor não afirma estar ciente dos fatos, mas também não o nega. Valendo-Se de um curioso estratagema, faz uma pergunta que dá oportunidade aos discípulos de exporem suas dúvidas e perplexidades. Trata-se de um método divino para lidar com corações tíbios, susceptíveis de se ofenderem e encherem-se de fúria contra quem os corrige. Ele, a infinita Paciência, ouve com toda a calma o que os dois têm a dizer.
Sinal evidente dos questionamentos interiores de ambos é a convicção apresentada logo de início, ao descreverem Jesus como “um Profeta poderoso em obras e palavras”. Eles sabiam que o Mestre não era somente um Profeta e sim o próprio Filho de Deus encarnado, mas têm receio de declará-lo, guiando-se pelos raciocínios falhos montados naqueles dias, e não por aquilo que conheciam das Escrituras e das revelações feitas por Jesus.
Curiosamente não atinam para a incongruência de “um profeta poderoso em palavras e obras” ser assim condenado pelas autoridades religiosas
Como se vê, eles eram homens instruídos, fecundos em ideias, mas faltava-lhes a flexibilidade das almas de fé, a docilidade nascida da esperança e o ardor característico da caridade. Seus corações haviam se tornado endurecidos e tíbios, fechados a tudo quanto contrariasse os próprios critérios.
Apego a uma ordem de coisas ultrapassada
20 “Nossos sumos sacerdotes e nossos chefes O entregaram para ser condenado à morte e O crucificaram”.
Este versículo deixa transparecer o quanto ambos ainda nutriam admiração pelos poderes corrompidos que compunham o establishment judaico de então. Eles não demonstram horror às medidas injustas tomadas em relação a Jesus, parecendo incomodados apenas por não compreenderem o motivo de tal decisão. Consternados, como que dizem: “Houve alguma calúnia, agiram em função de informações erradas; nossos sumos sacerdotes e nossos chefes não podem errar!”
Curiosamente, não atinam para a incongruência de “um Profeta poderoso em palavras e obras diante de Deus e dos homens” ser assim condenado pelas autoridades religiosas.
As boas notícias assustam quem não tem fé
21 “Nós esperávamos que Ele fosse libertar Israel, mas, apesar de tudo isso, já faz três dias que todas essas coisas aconteceram! 22 É verdade que algumas mulheres do nosso grupo nos deram um susto. Elas foram de madrugada ao túmulo 23 e não encontraram o Corpo d’Ele. Então voltaram, dizendo que tinham visto Anjos e que estes afirmaram que Jesus está vivo”.
Explicitando uma a uma as ideias erradas que lhes povoavam a mente, mencionam a libertação de Israel como o auge de suas expectativas em relação a Nosso Senhor e, para justificar o desalento no qual haviam caído, alegam já terem se passado “três dias”. De tal detalhe podemos deduzir que eles, antes de partir de Jerusalém, expuseram suas dúvidas aos Apóstolos e estes, tentando convencê-los a esperar um pouco mais, lembraram a profecia do Mestre: “O Filho do Homem deve ser entregue nas mãos dos homens. Matá-Loão, mas ao terceiro dia ressuscitará” (Mt 17, 2122).
Não se tratava simplesmente de “alguns dos nossos”, mas de duas testemunhas da melhor categoria
Se eles mantivessem acesa ao menos uma pequena labareda de fé, a notícia trazida pelas mulheres teria sido motivo de esperança e exultação: “Tudo está solucionado, realizou-se o que Ele previra!” E estariam sôfregos por obter mais informações a respeito. Bem diferente, porém, foi sua atitude, conforme narram agora a Jesus, enfatizando que as damas lhes deram “um susto”. No fundo, censuram a imprudente visita ao sepulcro de madrugada e, com a expressão “voltaram dizendo”, evidenciam seu desprezo pelo testemunho delas.
Assim age a Providência com certas almas muito afeitas à ciência, mas desprovidas das luzes do Espírito Santo: deixaas livres para aceitar ou recusar as inspirações proféticas e místicas, permitindo que pessoas menos instruídas passem à frente na fé e deem o exemplo. Em geral, tais espíritos doutos não se encantam com as boas disposições desses que lhes tomam a dianteira; pelo contrário, sempre prevenidos contra qualquer critério alheio aos da própria mente, mostram-se chocados.
24 “Alguns dos nossos foram ao túmulo e encontraram as coisas como as mulheres tinham dito. A Ele, porém, ninguém O viu”.
Os que haviam corrido ao sepulcro naquela manhã e constatado a veracidade do relato das Santas Mulheres eram São Pedro e São João (cf. Jo 20, 110). Portanto, não se tratava simplesmente de “alguns dos nossos”, mas de duas testemunhas da melhor categoria: o primeiro Papa e o Discípulo Amado. Referindo-se assim aos dois Apóstolos, os que vão a Emaús tentam diminuir a importância das notícias transmitidas por Maria Madalena e suas amigas, como se fossem invenção da imaginação feminina.
Enquanto eles falavam, Nosso Senhor ia criando graças especiais para lhes tocar o coração. E, a essas alturas, já se encontravam preparados para ouvir uma advertência.
“Como sois sem inteligência…!”
25 Então Jesus lhes disse: “Como sois sem inteligência e lentos para crer em tudo o que os profetas falaram!”
O povo judeu possui grande capacidade natural de guiar-se pela lógica em seus raciocínios. Contudo, nem mesmo tal habilidade estava sendo bem empregada por eles: embora conhecessem muito, mostravam-se “sem inteligência” em seus juízos.
Com efeito, a lógica apresenta-se como um auxílio extraordinário para a vida espiritual, desde que as premissas sejam verdadeiras e sobre elas incida a luz da fé. Do contrário, só produzirá desastres. No caso de uma alma batizada, essa virtude suplanta inclusive a pouca inteligência quando se trata de discernir algo relacionado com Deus e com o mundo sobrenatural.
Quando a fé se abala numa alma chamada a elevada missão, logo se desperta a preocupação com o prestígio terreno
Por outro lado, esta passagem realça o empenho do Divino Mestre em ensiná-los, desenvolvendo na ocasião uma estupenda aula de Exegese e Teologia.
26 “Será que o Cristo não devia sofrer tudo isso para entrar na sua glória?” 27 E, começando por Moisés e passando pelos profetas, explicava aos discípulos todas as passagens da Escritura que falavam a respeito d’Ele.
Quando a fé se abala numa alma chamada a elevada missão, como é o caso dos dois discípulos, logo se desperta a preocupação com o prestígio terreno, o reconhecimento dos homens, a glória pessoal. A pergunta feita por Nosso Senhor atingia as ambições de ambos, lembrando-lhes a glória de Deus, meta dos autênticos seguidores de Cristo, somente alcançada por meio da cruz.
Eles se impressionaram ao constatar como Jesus dominava os Livros Sagrados, narrando com detalhes e de cor inúmeros episódios e vaticínios concernentes ao Messias, desde Moisés até as últimas profecias.
Entretanto, mais importantes do que essa exposição doutrinária e até mesmo a presença física do Mestre eram as graças sensíveis e místicas que Ele concedia enquanto falava, fazendo-lhes “arder o coração”.
Jesus Se alegra ao ser convidado a permanecer conosco
28 Quando chegaram perto do povoado para onde iam, Jesus fez de conta que ia mais adiante. 29 Eles, porém, insistiram com Jesus, dizendo: “Fica conosco, pois já é tarde e a noite vem chegando!” Jesus entrou para ficar com eles.
O Divino Mestre utiliza um singular subterfúgio para formá-los, dando-lhes a entender que não pousaria em Emaús. De fato, no contexto daquela caminhada o povoado simbolizava a deserção dos dois discípulos, e não cabia a Nosso Senhor estar ali. Nesse sentido, é interessante observar como São Lucas registra o zelo do Salvador pelas almas, assinalando que sua intenção ao entrar no lugarejo consistia em “ficar com eles”.
Por outro lado, Jesus quis incitar em ambos o desejo de continuar o convívio a fim de que, ao manifestarem sua benquerença por Nosso Senhor, crescessem na virtude, posto que amá-Lo significa amar o próprio Deus. A perspectiva de drama já havia desaparecido a essas alturas, e eles se encontravam inundados de consolações.
Era comum naquele tempo hospedar viajantes em casa durante a noite, oferecendo alimento e repouso até o dia seguinte. Por isso, eles pleiteiam com Jesus, alegando o tardio do horário: “Fica conosco”! Depois de alguma insistência, Nosso Senhor aceita a proposta, pois Se alegra ao ser convidado a permanecer com os seus.
Uma figura da Eucaristia
30 Quando Se sentou à mesa com eles, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes distribuía. 31 Nisso os olhos dos discípulos se abriram e eles reconheceram Jesus. Jesus, porém, desapareceu da frente deles.
Reunidos os três para o jantar, Nosso Senhor tomou o pão e o abençoou, gesto reservado a quem presidia uma refeição. Embora não se tratasse da Consagração Eucarística, o Sacramento de seu Corpo e Sangue estava ali figurado, e nisso os discípulos O reconheceram. Ele, então, desapareceu. Por quê?
Na Eucaristia, não vemos a Nosso Senhor, mas o reconhecemos e amamos!
A partir daquele momento, eles deveriam se manter firmes na fé mesmo sem O verem fisicamente, pois seria este o regime de graças no qual se desenvolveria a vida da Igreja no decorrer dos séculos. Nosso Senhor Se faz presente junto a todos os batizados, em especial quando se reúnem em função d’Ele e, querendo-se bem uns aos outros, procuram crescer na fé e no amor a Deus.
32 Então um disse ao outro: “Não estava ardendo o nosso coração quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?”
Transformados pelo convívio com o Mestre, eles perceberam quantas graças de fervor haviam recebido enquanto O ouviam ensinar ao longo do caminho. A palavra d’Ele fora acompanhada por uma profunda ação do Espírito Santo, mediante a qual o coração de ambos, antes frio pela incredulidade, se encheu de fogo.
Essas excelentes disposições os impeliram a tornar seus irmãos de ideal partícipes da mesma alegria e consolação.
O entusiasmo é difusivo
33 Naquela mesma hora, eles se levantaram e voltaram para Jerusalém, onde encontraram os Onze reunidos com os outros. 34 E estes confirmaram: “Realmente, o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!” 35 Então os dois contaram o que tinha acontecido no caminho e como tinham reconhecido Jesus ao partir o pão.
Provavelmente sem terminar o jantar, eles se levantaram “naquela mesma hora” e, cheios de entusiasmo, dirigiram-se às pressas a Jerusalém, a fim de comunicar tudo aos Onze. Embora fosse noite, não se amedrontaram com o risco de ladrões e, decerto, comentaram durante todo o trajeto a aparição do Senhor. Quando chegaram ao Cenáculo, já quase sem fôlego, fizeram um relato emocionado, rico em pormenores e marcado pelo enlevo.
Alguns tomaram a notícia como mais uma confirmação da Ressurreição, contando aos dois o que sucedera a Pedro; outros, entretanto, não sentiam o mesmo calor de alma e continuaram temerosos e incrédulos, como indica São Marcos (cf. Mc 16, 13). A todos eles Nosso Senhor apareceria pouco depois, “enquanto ainda falavam dessas coisas” (Lc 24, 36), episódio narrado por São Lucas nos versículos subsequentes aos selecionados para a Liturgia deste domingo.
III – “Mane nobiscum, Domine!”
Sublime foi o convívio de Jesus com os discípulos de Emaús; entretanto, eles só O reconheceram quando abençoou e fracionou o pão. Quão mais feliz é a nossa situação ao nos aproximarmos com fervor da Eucaristia: não vemos a Nosso Senhor, mas O reconhecemos e amamos!
Receber a Comunhão significa um colossal privilégio, do qual nenhum justo do Antigo Testemunho se beneficiou. Abraão, Isaac, Jacó, Moisés, Davi, Gedeão e tantos outros estariam dispostos a ressuscitar e enfrentar novos sofrimentos na terra para comungar uma só vez!
Nosso Senhor afirmou: “Se alguém Me ama, guardará a minha palavra e meu Pai o amará, e Nós viremos a ele e nele faremos nossa morada” (Jo 14, 23). Quando Jesus Eucarístico entra numa alma, não deseja mais sair. Todavia, a exemplo do Evangelho de hoje, Ele espera nosso pedido para que permaneça conosco. Ademais, cabe a nós tomar todo o cuidado a fim de que Ele não Se vá. Para tal, devemos evitar as ocasiões de pecado e rezar. Muito nos ajudará também conversar sobre temas elevados, relacionados com a Religião, a eternidade, o Céu.
Permanecei conosco, Senhor! Não nos permitais tomar o caminho de Emaús
A Eucaristia é o melhor remédio para quem se sente fraco na fé, a mais abundante fonte de ânimo para os que querem atravessar incólumes os períodos de aridez. Saibamos procurar o Senhor e suplicar-Lhe que acenda labaredas de amor em nosso coração: “Mane nobiscum, Domine! Permanecei conosco! Não nos permitais tomar o caminho de Emaús. E se algum dia, surdos à vossa graça, nos desviarmos, buscai-nos como fizestes com os discípulos que hoje a Liturgia considera. Vós, que sois a Sabedoria, penetrai com vossas luzes em cada um de nós, dando-nos uma fé ardente em tudo aquilo que a Igreja nos mostra e o Espírito Santo sopra em nossas almas”.
Notas
[1] TEOFILATO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Lucam, c.XXIV, v.1324.