Voar sem amarras!

Claras são as condições para seguirmos a Jesus. Depende de nos libertarmos das amarras que nos prendem à terra.

Evangelho do XXIII Domingo do Tempo Comum

“Naquele tempo, 25 grandes multidões acompanhavam Jesus. Voltando-Se, Ele lhes disse: 26 ‘Se alguém vem a Mim, mas não se desapega de seu pai e de sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo. 27 Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de Mim, não pode ser Meu discípulo.

28 Com efeito: qual de vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro e calcula os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar? Caso contrário 29 ele vai lançar o alicerce e não será capaz de acabar. E todos os que virem isso começarão a caçoar, dizendo: 30 ‘Este homem começou a construir e não foi capaz de acabar!’

31 Ou ainda: Qual o rei que ao sair para guerrear com outro, não se senta primeiro e examina bem se com dez mil homens poderá enfrentar o outro que marcha contra ele com vinte mil? 32 Se ele vê que não pode, enquanto o outro rei ainda está longe, envia mensageiros para negociar as condições de paz. 33 Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser Meu discípulo!’” (Lc 14, 25-33).

I – Amarras e lastros na vida espiritual

Em junho de 1783, os irmãos Joseph-Michel e Jacques-Étienne Montgolfier, filhos de um fabricante de papel de Lyon, conseguiram fazer voar, perante os assombrados olhos dos seus conterrâneos, um grande balão feito de linho, com 32 metros de circunferência. Cheio de ar quente fornecido pela combustão de palha seca, a aparatosa invenção elevou-se várias centenas de metros acima do solo e percorreu em dez minutos uma distância de dois a três quilômetros. Três meses depois, repetiram com êxito sua experiência no Parque de Versalhes, diante de Luís XVI, Maria Antonieta e toda a corte da França.

Desde então, foi muito aperfeiçoada a técnica de fabricação dos aeróstatos, mas o princípio de seu funcionamento — baseado numa das mais elementares leis da Física — continua inalterado: sendo mais leve, o ar quente tende a subir. Enquanto está sendo enchido de ar, o balão fica preso ao solo por amarras. Em certo momento, são elas soltas e o engenho inicia sua ascensão, sendo então preciso ir liberando lastros gradativamente para ele poder atingir uma altura maior.

Esta é uma bela imagem da elevação das almas a Deus. “Aquecidas” pela prática das virtudes, especialmente da caridade, iniciam elas a subida espiritual e começam a “voar”. Costuma haver, porém, em consequência do pecado, amarras que as prendem à terra e lastros que dificultam seu itinerário rumo à perfeição. É imperioso, portanto, cortar aquelas e alijar estes, para o espírito humano poder elevar-se ao transcendente e ao eterno. À semelhança de nosso corpo, padecem as almas dos danosos efeitos de uma espécie de lei da gravidade espiritual por onde nos sentimos atraídos para o mais baixo, o mais trivial, o que nos exige menos esforço.

Até para as pessoas consagradas existem amarras e lastros, por vezes mais difíceis de soltar do que os dos simples fiéis. Se os religiosos não corresponderem ao convite da graça para viver num patamar mais elevado, poderão sentir uma como que vertigem por onde tenderão a se apegar com especial veemência ao que é terreno.

Para ajudar a vencer esses entraves nas instituições religiosas, tem o Espírito Santo suscitado, ao longo dos tempos, as mais diversas formas de espiritualidade que intensificam o desapego dos bens passageiros. Algumas nos causam espanto por sua radicalidade. Por exemplo, a Ordem dos Clérigos Regulares Teatinos vive de esmolas, como tantas outras, mas seus membros não podem pedi-las: devem esperar que elas lhes sejam oferecidas espontaneamente!1

Em vista dessa nossa má tendência, Cristo nos ensina serem indispensáveis a renúncia e a abnegação, para sermos verdadeiros discípulos Seus. Eis a lição da Liturgia deste domingo.

“São Francisco de Assis renuncia às riquezas terrenas”, por Giotto di Bondone – Basílica de Assis (Itália)

São Francisco toma a Deus por Pai

Depois de levar uma vida mundana, decidiu-se Francisco de Assis (1182-1226) a desposar a Dama Pobreza, à estrita imitação de Nosso Senhor Jesus Cristo, renunciando a todos os seus bens.

Para o ganancioso pai, Pedro Bernardone, que se queixava ao Bispo da excessiva generosidade das esmolas do filho, Francisco entrega até suas ricas vestimentas, passando a usar apenas uma pobre túnica.

Preferiu, assim, tomar a Deus por Pai, atendendo ao pedido que Nosso Senhor lhe fizera na capela de São Damião de restaurar a casa de Deus, que estava em ruínas, em referência à situação lamentável da Santa Igreja na época.

 

II – Odiar o pai e a mãe?

“Naquele tempo, 25 grandes multidões acompanhavam Jesus. Voltando-Se, Ele lhes disse:”.

No início de Sua pregação, apenas alguns iam atrás do Divino Mestre, mas, em pouco tempo, o número dos Seus seguidores foi crescendo até formar um público considerável. A esta altura do Evangelho de São Lucas, quando Ele Se encaminha pela última vez a Jerusalém, já se pode dizer que “grandes multidões acompanhavam Jesus”.

Entretanto, nem todos poderiam ser chamados propriamente Seus discípulos. Como sublinha o Cardeal Gomá, aquelas multidões seguiam Nosso Senhor “movidas talvez por pensamentos demasiado humanos, pressagiando quiçá a glória temporal do Reino Messiânico”.2

Foi esse o motivo que levou Jesus a voltar-Se para eles a fim de ensinar-lhes — e também a nós — o verdadeiro significado do Reino dos Céus e as condições para alcançá-lo.

Jesus deve ser amado com um amor perfeitíssimo

26 “Se alguém vem a Mim, mas não se desapega de seu pai e de sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs, e até da sua própria vida, não pode ser Meu discípulo”.

Embora algumas versões da Escritura interpretem nesta passagem o sentido do verbo grego μισεω como “desapegar-se”, a Vulgata prefere traduzir o termo μισεῖ por odit (odeia). Daí a formulação clássica deste versículo: “Se alguém vem a Mim e não odeia seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos, suas irmãs e até a sua vida, não pode ser Meu discípulo”.3

Ora, como explicar, à luz dos Mandamentos da Lei de Deus, essa prescrição de odiar os parentes mais próximos e até a própria vida? Tirar dela todas as consequências às quais uma consideração superficial pode induzir, não levaria este versículo ao parricídio, ao fratricídio e mesmo ao suicídio? Não terá sido, então, incorreta, por hiperbólica, a tradução de São Jerônimo?

Não parece. Pelo contrário, o uso do verbo odiar sublinha com ênfase didática, neste contexto, o sentido mais profundo das palavras do Mestre: a necessidade de amarmos a Deus acima de tudo, portanto, de nos desapegarmos radicalmente até mesmo do que nos for mais caro, se isto representar um obstáculo para seguirmos a Cristo. Pois Jesus é digno de ser amado com um amor perfeitíssimo, e jamais chegará a ser Seu verdadeiro discípulo quem não estiver disposto a, por causa d’Ele, levar aos últimos extremos o desprendimento: “Quem ama seu pai ou sua mãe mais que a Mim, não é digno de Mim” (Mt 10, 37).

Explica São Tomás, na Suma Teológica, que cabe à virtude da piedade “prestar aos pais culto e serviços, mas dentro das devidas medidas. Ora, não existe devida medida quando se tende a prestar ao homem um culto maior do que aquele que se presta a Deus. […] Se, por conseguinte, o culto devido aos pais viesse a nos afastar do culto a Deus, já não seria mais piedade filial ficar insistindo num culto que é contra Deus”.4

Deve ser interpretado no mesmo sentido o convite a desapegar-se “até da própria vida”, como bem apontam Balz e Scheider: “A dupla exigência de Jesus — necessidade de odiar os pais e até a si mesmo, por causa d’Ele (Lc 14, 26), e de não amar os pais mais do que a Ele (Mt 10, 37) — tem na realidade este significado: para seguir a Jesus, é preciso pôr tudo de lado”.5

Os inimigos serão os próprios familiares

Ora, como podem pai e mãe, irmão e irmã representarem obstáculos para a nossa salvação?

Para melhor responder a esta pergunta, é útil lembrar outra passagem do Evangelho, correlata à que agora comentamos: “Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas sim, a espada. De fato, Eu vim pôr oposição entre o filho e seu pai, a filha e sua mãe, a nora e sua sogra; e os inimigos do homem serão seus próprios familiares” (Mt 10, 34-36).

Sobre estes versículos de São Mateus — mais incisivos ainda, sob certo sentido, que os de São Lucas —, comenta Romano Guardini: “A mensagem de Jesus é mensagem de salvação. Anuncia o amor do Pai e o advento do Reino. Chama os homens para a paz e para a concórdia, na vontade santa. Contudo, Sua palavra não começa por produzir a união, mas a divisão. Quanto mais um homem se torna profundamente cristão, mais a sua vida se distingue da vida dos outros que não querem tornar-se cristãos, ou na medida em que se recusam a sê-lo. […] Eis porque pode assim haver uma cisão entre pai e filho, amigo e amigo, ou entre os moradores de uma mesma casa”.6

Verdadeiro sentido do verbo odiar

Ora, logo a seguir, Guardini acrescenta, com muita acuidade, que a exigência de odiar os parentes quando eles nos afastam de Deus “é antinatural, e provoca a tentação de guardar os parentes naturais e de abandonar Jesus”.7

É visando tornar clara a necessidade que o homem tem de fazer violência contra si mesmo para ser verdadeiro discípulo de Cristo, que a Vulgata, São Tomás, São Gregório Magno e muitos outros comentaristas recorrem a um termo tão radical quanto o verbo odiar: “Gregório interpreta esta palavra do Senhor no sentido de que ‘devemos odiar nossos pais e deles fugir, ignorando-os, quando os temos como adversários no caminho de Deus’. Se, de fato, nossos pais nos induzirem ao pecado e nos afastarem do culto divino, no que concerne a este ponto específico devemos odiá-los e abandoná-los”.8

Portanto, é natural, legítimo e até um dever o amor a irmãs e irmãos, filhas e filhos, pai ou mãe; mas devemos repudiá-lo com toda energia, se ele nos impede de seguir a Cristo. Mais uma vez, é São Tomás quem esclarece: “Não nos é ordenado odiar nossos próximos porque eles são nossos próximos, mas somente os que nos impedem de nos unirmos a Deus. Nisso eles não são nossos próximos, mas inimigos, conforme o livro de Miqueias: ‘Os inimigos do homem, os seus próprios familiares’ (Mq 7, 6)”.9

E, mais adiante, acrescenta: “Portanto, deve-se dizer que, segundo o mandamento de Deus, os pais devem ser honrados enquanto estão unidos a nós pela natureza e por afinidade, como mostra o livro do Êxodo. Mas devemos odiá-los se forem um obstáculo em nossa ascensão à perfeição da justiça divina”.10

Fica, assim, posta a questão no seu verdadeiro equilíbrio. E pode a Santa Igreja ensinar com toda autoridade essa doutrina, pois foi ela quem evangelizou os povos pagãos e consolidou no mundo os princípios basilares da família monogâmica e indissolúvel, por sua pregação e pela administração do Sacramento do Matrimônio, instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo. Com isso, estabeleceu em situação digna na sociedade a mulher e os filhos, fazendo cessar abusos vigentes no mundo antigo, como o “direito” do pai matar os filhos ou o marido repudiar a esposa. Entretanto, ao mesmo tempo, enfatiza ela que tudo, até mesmo a família, está subordinado ao serviço e à glória de Deus.

Ainda a propósito do verbo odiar, aduz o padre Duquesne um importante esclarecimento: “O termo odiar não significa que devemos fazer ou desejar-lhes o mal; mas ele assinala o ardor, a coragem, a força com a qual devemos lhes resistir, caso se oponham à nossa salvação, nos arrastem para o mal, nos demovam de assumir o estado ao qual Deus nos chama, ou queiram engajar-nos naquele ao qual Deus não nos chama; caso nos impeçam de abraçar a verdadeira Fé, e se esforcem por nos reter ou nos lançar no erro”.11

Em sentido contrário, podemos considerar numerosos exemplos que nos mostram como são inestimáveis, e a certo título insuperáveis, o estímulo e o apoio da família para os seus membros se santificarem: Santa Mônica, cujas lágrimas e orações obtiveram a conversão do filho; São Basílio, o Velho, e Santa Emília, pais de São Basílio, São Gregório de Nissa, Santa Macrina e São Pedro de Sebaste; ou os Beatos Luís e Zélia Martin, pais de Santa Teresinha do Menino Jesus.

São inestimáveis, e a certo título insuperáveis, o estímulo e o apoio da família para a santificação
Beatos Zélie e Louis Martin, pais de Santa Teresinha do Menino Jesus (no centro, aos oito anos de idade)

O prêmio virá na glória eterna

27 “Quem não carrega sua cruz e não caminha atrás de Mim, não pode ser Meu discípulo”.

Estas palavras de Jesus descartam de vez todas as esperanças triunfalistas que a maior parte dos judeus tinha a propósito do reino ­messiânico. Com efeito, em toda a Sua pregação, jamais oferecera Nosso Senhor a plenitude da felicidade nesta vida, mas sim a glória eterna, cuja via passa pela abnegação e pelo sacrifício. Per crucem ad lucem (é pela cruz que se chega à luz), reza a conhecida divisa latina.

Bem ilustra o Apóstolo essa necessidade de sacrifício e mortificação, recorrendo a um exemplo especialmente vivo para os seus seguidores em Corinto: “Todo atleta se impõe todo tipo de disciplina. Eles assim procedem para conseguir uma coroa corruptível. Quanto a nós, buscamos uma coroa incorruptível! Por isso eu corro, não como às tontas. Eu luto, não como quem golpeia o ar. Trato duramente meu corpo e o subjugo, para não acontecer que, depois de ter proclamado a mensagem aos outros, eu mesmo seja reprovado” (I Cor 9, 25-27).

Ainda sobre este versículo do Evangelho, interessante é recordar uma piedosa consideração do padre Duquesne: “Comparemos nossa cruz com a de Jesus Cristo e as dos mártires, e envergonhemo-nos de nossa covardia!”.12 Não cabe, portanto, levá-la a contragosto, reclamando do seu peso ou manifestando amargura pelos sofrimentos que ela nos traz. Quem assim procede, arrasta a cruz, não a carrega; em consequência, não pode ser considerado discípulo do Mestre. Seguir Nosso Senhor não significa apenas andar fisicamente atrás d’Ele, como faziam muitos naquela multidão, mas sim “imitar Seus exemplos, praticar Suas virtudes”, acentua o mesmo padre Duquesne.13

III – Lucidez e prudência

Ensinar por meio de parábolas é uma constante da divina didática. Assim, vai Nosso Senhor recorrer agora a duas, para tornar vivo aos olhos daquela multidão quanto o segui-Lo não exige apenas esforço e abnegação, mas também planejamento lúcido e cuidadosa execução, isto é, “prudência e resolução em calcular o esforço que isso nos custará”.14

Como não poderia deixar de ser, as duas imagens foram escolhidas com divina sabedoria, de forma a ilustrar com perfeição o ensinamento dos versículos anteriores. A este propósito, comenta Maldonado: “Cristo propôs as parábolas da torre e da guerra, de preferência a outros temas, por tratar-se de empresas bem difíceis e caras levantar torres e empreender guerras, as quais requerem grande e diligente preparação”.15

Os cálculos para construir uma torre ou travar uma guerra

28 “Com efeito: qual de vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro e calcula os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar? Caso contrário 29 ele vai lançar o alicerce e não será capaz de acabar. E todos os que virem isso começarão a caçoar, dizendo: 30 ‘Este homem começou a construir e não foi capaz de acabar!’”.

Como bem observou Maldonado, “calcular os gastos” significa aqui preparar-se com cuidado, inclusive detendo-se para ouvir prudentes conselhos. É o que todo homem deve fazer nas importantes encruzilhadas da vida: medir as dificuldades antes de lançar-se por uma ou outra via, sempre de acordo com a razão, nunca guiado apenas pelos sentimentos ou pelos impulsos. Mais importante ainda, precisa decidir e agir tendo em vista, sobretudo, a vida eterna, e não só os interesses terrenos, passageiros por definição.

31 “Ou ainda: Qual o rei que ao sair para guerrear com outro, não se senta primeiro e examina bem se com dez mil homens poderá enfrentar o outro que marcha contra ele com vinte mil?”.

As guerras entre pequenos estados eram comuns na Antiguidade. Portanto, Nosso Senhor apresentava nessa parábola uma realidade bem conhecida de todos os Seus ouvintes.

Ora, na batalha para alcançar o Reino dos Céus, entra o homem em condições muito desfavoráveis. Dada a natureza decaída em consequência do pecado original, cada um tem no seu interior terríveis inimigos: “o açoite da carne, a lei do pecado que impera em nossos membros, e varias paixões”.16 A eles se acrescentam “os principados, as potestades, os dominadores deste mundo tenebroso, os espíritos malignos espalhados pelos ares” (Ef 6, 12).

Visando tornar notória essa desproporção de forças, Santo Agostinho assim interpreta o sentido da parábola: “Os dez mil homens com os quais ele deve combater o rei que dispõe de vinte mil representam a simplicidade do cristão, que precisa lutar contra a falsidade do demônio, isto é, com seus dolos e falácias”.17

Tratado de paz com o Supremo Soberano

32 “Se ele vê que não pode, enquanto o outro rei ainda está longe, envia mensageiros para negociar as condições de paz”.

Por seu lado, São Gregório Magno dá desta parábola uma interpretação de caráter escatológico, segundo a qual o rei que se aproxima seria Aquele que virá no fim dos tempos para julgar os vivos e os mortos.18

Assim, na perspectiva da chegada do Supremo Soberano, em comparação ao qual nada somos nem podemos, caber-nos-ia apenas enviar mensageiros para Lhe solicitar a paz. São estes os nossos Anjos da Guarda, os nossos intercessores celestes e, sobretudo, Nossa Senhora. Pois, como pergunta o padre Duquesne, “quem somos nós para nos apresentarmos diante de Deus e ter a ousadia de com Ele negociar a paz? Que temos para oferecer-Lhe?”.19

Quanto às condições da paz, já foram elas enunciadas nos primeiros versículos deste Evangelho: trata-se de renunciar a tudo e abraçar a Cruz para seguir o Divino Redentor.

O único cálculo permitido ao verdadeiro discípulo

33 “Do mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser Meu discípulo!”.

Nessas duas parábolas, Nosso Senhor torna evidente quão necessário é fazer bem os cálculos antes de encetar algum empreendimento, assumir uma responsabilidade ou travar uma batalha terrena.

Ora, neste versículo, segundo a interpretação de Santo Agostinho, estaria declarado o sentido de ambas, pois, afirma ele, “o dinheiro para edificar a torre e a força de dez mil homens para enfrentar os vinte mil combatentes do outro rei, não têm outro significado senão o de cada um renunciar a tudo quanto possui”.20

E acrescenta o santo Bispo de Hipona: “O anteriormente dito concorda com o que se diz agora, porque na renúncia de cada qual a tudo quanto possui está contido também o ódio a seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos, suas irmãs e até à sua própria vida. Todas essas coisas são próprias de cada um, e constituem obstáculo e impedimento para obter, não o temporal e transitório, mas aquilo que é comum a todos e subsistirá sempre”.21

Há, em suma, apenas um caminho para nos tornarmos verdadeiros discípulos de Jesus: renunciar totalmente aos afetos desordenados e ao apego aos bens terrenos, evitando que eles atuem como amarras para nossa vida espiritual ou de pesados lastros para nossa alma. Sem nos desprendermos de forma plena e completa de quanto nos separa de Cristo, jamais alcançaremos o Reino dos Céus.

Importante é notar, ademais, como faz o Cardeal Gomá, que não apenas os clérigos e religiosos devem ser discípulos de Jesus, mas sim todos os batizados: “Com os exemplos da torre e do rei, não quer o Senhor significar que cada um de nós seja livre de tornar-se ou não Seu discípulo, como o homem da torre era livre de lançar ou não os alicerces. Tenciona Ele ensinar-nos a impossibilidade de agradar a Deus em meio às coisas que distraem a alma e nas quais ela corre o risco de sucumbir, pela astúcia do demônio”.22

São Beda faz uma distinção entre o dever das almas chamadas ao estado de vida consagrada e a obrigação de todos os fiéis: “Há uma diferença entre renunciar a todas as coisas e abandoná-las: compete a um pequeno número de perfeitos abandoná-las, ou seja, pôr de lado os cuidados do mundo; e cabe a todos os fiéis renunciar a elas, isto é, possuir as coisas terrenas de maneira tal que elas não os prendam ao mundo”.23

Seguir Nosso Senhor significa imitar Seu exemplo e praticar Suas virtudes
“Nosso Senhor carregando a Cruz, com Nossa Senhora e São Domingos de Gusmão”, por Fra Angélico – Museu de São Marcos, Florença

IV – Os apegos desordenados roubam-nos a paz de alma

O Evangelho ora comentado torna patente o quanto esse desapego radical e completo é a pedra fundamental de nossa vida interior, quer constituamos família, quer façamos parte do Clero, quer estejamos consagrados a Deus em algum instituto religioso.

Nesse sentido, podemos afirmar que a liturgia do 23º Domingo do Tempo Comum é um convite ao desprendimento: “Quem não carrega sua cruz e não Me segue, não pode ser Meu discípulo”. Não significa isso que precisamos ser flagelados, coroados de espinhos ou pregados na cruz, como foi Nosso Senhor Jesus Cristo. A cruz que Ele pede de nós consiste principalmente em vivermos desprendidos de tudo quanto é terreno, tal qual uma águia que voa sem amarras para, nas alturas, melhor contemplar o sol.

Como tantas vezes comprovamos na vida, o apego desordenado gera aflições, inseguranças e receios que nos roubam a paz de alma. Portanto, mesmo o homem não chamado à vida religiosa deve fazer tudo com o coração posto nas coisas de Deus, inclusive ao cuidar dos negócios e da administração dos seus bens. Esse desprendimento é condição para seguir de perto a Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim agindo, a alma experimentará a verdadeira felicidade, prenunciativa da alegria que terá no Céu.

 

Notas


1 CONSTITUIÇÕES, art.26: “Nós, clérigos, devemos viver do Altar e do Evangelho, e de quanto nos oferecerem espontaneamente os fiéis, sem pedir esmola alguma aos seculares, nem diretamente nem por intermédio de outrem. Toda a nossa esperança deve estar posta na palavra de Cristo Senhor, que diz: ‘Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a Sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo’”.

2 GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Casulleras, 1930, v.III, p.283.

3 As duas traduções são corretas, pois o verbo grego μισεω, como o seu equivalente hebreu śānā’, abarca uma gama de significados que vai desde amar menos, detestar, até odiar (cf. BALZ, Horst; SCHEIDER, Gerhard (Eds.). Diccionario exegético del Nuevo Testamento. 2.ed. Salamanca: Sígueme, 2002, col.295).

4 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q.101, a.4, resp.

5 BALZ e SCHEIDER, op. cit., col.295.

6 GUARDINI, Romano. O Senhor. Rio de Janeiro: Agir, s/d, p.293.

7 Idem, ibidem.

8 SÃO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, II-II, q.101, a.4, ad.1.

9 Idem, II-II, q.26, a.7, ad.1.

10 Idem, II-II, q.34, a.3, ad.1.

11 DUQUESNE. L’Évangile médité. Lyon-Paris: Perisse Frères, 1849, v.III, p.104.

12 Idem, p.106.

13 Idem, ibidem.

14 GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.282.

15 MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los cuatro Evangelios. Evangelios de San Marcos y San Lucas. Madrid: BAC, 1951, v.II, p.642.

16 SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA. Commentaria in Lucam, sermo 105: PG 72, 796.

17 SANTO AGOSTINHO. Quæstiones Evangeliorum, l.2, c.31: PL 35, 1343.

18 Cf. SÃO GREGÓRIO MAGNO. Homiliarum in Evangelia, hom. 37, c. 6: PL 76, 1277-1278.

19 DUQUESNE, op. cit., p.119.

20 SAN AGUSTÍN, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea.

21 Idem.

22 GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.285.

23 SAN BEDA, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea.

 

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