Ser parente do Messias seria, pelos nossos critérios, uma honra inigualável. Para o Filho de Deus, ao contrário, mais importante é fazer a vontade do Pai Celeste do que ser parte de sua genealogia humana.

 

Evangelho do X Domingo do Tempo Comum

Naquele tempo, 20 Jesus voltou para casa com os seus discípulos. E de novo se reuniu tanta gente que eles nem sequer podiam comer. 21 Quando souberam disso, os parentes de Jesus saíram para agarrá-Lo, porque diziam que estava fora de Si. 22 Os mestres da Lei, que tinham vindo de Jerusalém, diziam que Ele estava possuído por Belzebu, e que pelo príncipe dos demônios Ele expulsava os demônios. 23 Então Jesus os chamou e falou-lhes em parábolas: “Como é que satanás pode expulsar a satanás? 24 Se um reino se divide contra si mesmo, ele não poderá manter-se. 25 Se uma família se divide contra si mesma, ela não poderá manter-se. 26 Assim, se satanás se levanta contra si mesmo e se divide, não poderá sobreviver, mas será destruído. 27 Ninguém pode entrar na casa de um homem forte para roubar seus bens, sem antes o amarrar. Só depois poderá saquear sua casa. 28 Em verdade vos digo: tudo será perdoado aos homens, tanto os pecados, como qualquer blasfêmia que tiverem dito. 29 Mas quem blasfemar contra o Espírito Santo, nunca será perdoado, mas será culpado de um pecado eterno”. 30 Jesus falou isso, porque diziam: “Ele está possuído por um espírito mau”.

31 Nisso chegaram sua Mãe e seus irmãos. Eles ficaram do lado de fora e mandaram chamá-Lo. 32 Havia uma multidão sentada ao redor d’Ele. Então Lhe disseram: “Tua Mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura”. 33 Ele respondeu: “Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?” 34 E olhando para os que estavam sentados ao seu redor, disse: “Aqui estão minha mãe e meus irmãos. 35 Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3, 20-35).

I – Os segredos da vida oculta de Jesus

Ao meditarmos nos mistérios da vida de Nosso Senhor, nossa imaginação é solicitada de modo especial quando nos detemos nos anos transcorridos no apagamento de Nazaré, a contemplar aqueles caminhos que em tantas ocasiões Ele percorreu; aquele panorama com o Monte Tabor ao fundo e a planície que avança até o mar, inúmeras vezes por Ele divisado; aquela casa na qual Ele habitou desde o momento em que retornou do Egito, tão humilde, porém quão impregnada da presença sobrenatural… Ali Ele viveu numa atmosfera de pobreza e esquecimento, mas de grandeza; de amor, de paz, de um descanso suave, e ao mesmo tempo de trabalho intenso. Ali Ele “crescia em estatura, em sabedoria e graça, diante de Deus e dos homens” (Lc 2, 52), sendo preparado por uma ação divina para sua grande missão.

Um véu cobria Jesus aos olhos dos seus

Como se pode explicar que em Nazaré o Homem-Deus passasse despercebido? Como parentes, vizinhos e amigos não vislumbraram em Jesus a divindade? Como não viram n’Ele, pelo menos, o Messias? O plano divino, por uma alta sabedoria, exigia que Nosso Senhor atravessasse esse longo espaço de trinta anos sem Se distinguir, aos olhos dos seus, do jovem comum: honrando o trabalho, exaltando a humildade, dando-nos exemplo em tudo. A Providência queria – além de uma glória completa para o Filho de Deus Encarnado – conferir maior mérito a Maria Santíssima e submeter todos aqueles que com Ele conviviam a uma prova: a do esforço e da delicadeza de atenção para descobrir que em Jesus havia algo de mais importante em relação a qualquer outro homem. Para isso, lançou Deus um véu sobre suas qualidades humanas e sobre sua natureza divina.

Mas Ele causava admiração

Houve, sem dúvida, os que corresponderam a este convite. Se Ele assombrou os próprios doutores no Templo, aos doze anos, não causaria admiração nas pessoas que O conheciam? Não é de se conceber que alguns companheiros de infância, familiares educados com Ele, ou adultos que privassem com Nossa Senhora e São José, não tivessem descerrado um tanto esse véu e se tenham dado conta, em algo, de quem era Ele. Para estes – uns mais e outros menos –, é provável que Jesus deixasse transparecer alguns reflexos da sua misteriosa divindade, incompreensível à razão humana.

Quão diferente terá sido para aqueles – decerto a maioria – que por infidelidade sempre consideraram Jesus como sendo apenas um deles, “o carpinteiro, o filho de Maria, o irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão” (Mc 6, 3). Assueta vilescunt… A natureza humana, infelizmente, habitua-se a tudo e, na rotina, até as coisas mais extraordinárias se tornam vulgares.

Quais teriam sido as reações de uns e de outros, chegada a hora de Nosso Senhor partir de Nazaré para dar início a sua vida pública? Era o Homem-Deus que ouvia os gemidos da História e abria seus braços com amor para abarcar as misérias, não só daqueles, mas de todo o gênero humano. Diante desta grandiosa manifestação de benquerença, se tornaria patente o valor de os familiares e próximos de Jesus de Nazaré terem vencido aquela prova que Deus lhes mandou, trazendo um inestimável ensinamento para todos nós, como poderemos constatar no Evangelho do 10º Domingo do Tempo Comum.

II – Ver no Filho de Deus apenas o Filho do Homem

Naquele tempo, 20a Jesus voltou para casa com os seus discípulos.

De onde “voltou para casa” o Divino Mestre com seus discípulos? Da montanha, depois de haver escolhido os doze Apóstolos (cf. Mc 3, 13-19). Para estes se compenetrarem da nova situação e da responsabilidade inerente à eleição de que tinham sido objeto, Jesus fez com que, no contato com o público, comprovassem a mudança ocorrida em suas vidas: “O Senhor reconduz para casa os Apóstolos por Ele eleitos na montanha, como para adverti-los de que, depois de terem recebido a dignidade do apostolado, deviam tomar consciência de sua missão”.1

Jesus estava em Cafarnaum, provavelmente na casa onde curara a sogra de Pedro (cf. Mc 1, 29-31; Lc 4, 38-39). Por ser local já conhecido, pelos muitos milagres ali operados, as pessoas começavam a se aglomerar ali antes do amanhecer, desejosas de ver o Messias.

Evangelizar pressupõe esquecer-se de si

20b E de novo se reuniu tanta gente que eles nem sequer podiam comer.

Diferentemente de nossos dias, naquele tempo as refeições eram realizadas a portas abertas. Isto tem sua razão de ser, uma vez que a alimentação é um momento propício para a conversa e o relacionamento social. Também Nosso Senhor Se conformou a este uso, como no banquete em casa de Simão, o fariseu, no qual entrou uma pecadora arrependida e Lhe lavou os pés com suas lágrimas (cf. Lc 7, 36-38).

No episódio aqui narrado, Jesus tinha diante de Si uma multidão que ansiava por conviver com Ele e haurir seus ensinamentos, pois O estimava e se encantava com sua presença. Porém, havia ainda os que lá iam por egoísmo, interessados tão só em obter a cura de alguma doença ou outros benefícios. No entanto, apesar do costume das portas abertas, era completamente inusitado tanto alvoroço e tamanha afluência de gente, que abarrotava a sala e chegava até o divã em que Jesus tomava a refeição. É de se imaginar que, ao estender a mão para apanhar, quiçá, um cacho de uvas, aproximava-se um cego, tocava impetuosamente em seu braço e, de imediato, recuperava a vista; em seguida cedia o lugar a um surdo que suplicava lhe fosse restabelecida a audição… E assim, grande quantidade de doentes entrava e saía, a ponto de o Mestre e os discípulos ficarem impedidos de comer. Os Apóstolos estavam experimentando, naquela ocasião, o ônus que lhes fora confiado no alto da montanha.

Ruínas da Sinagoga de Cafarnaum

O egoísta julga insensata a Sabedoria

21 Quando souberam disso, os parentes de Jesus saíram para agarrá-Lo, porque diziam que estava fora de Si.

Os sinais e a palavra do Redentor difundiram sua fama por toda a região. E, como era de se esperar, começaram a circular boatos, às vezes os mais desencontrados e exagerados possíveis. Nessas circunstâncias, este versículo relata algo dramático: determinados parentes de Jesus, daqueles que em nada atinaram para a grandeza d’Ele, começaram a tê-Lo por desvairado. Ao contrário dos dias atuais, naquele tempo o senso familiar era fortíssimo, o que é uma coisa sadia. As famílias, bem constituídas e muito unidas, formavam verdadeiros batalhões, tão coesos que a ação de um dos membros repercutia em todo o conjunto. Era incalculável a alegria e a honra de ser parente próximo do Messias! Mas alguns se reuniram para comentar o que se dizia d’Ele, de sua doutrina e milagres. Tinham-No visto crescer em Nazaré, onde não frequentara a escola de nenhum mestre, e de repente têm notícia de quanto suas pregações arrebatam multidões. Onde teria Ele aprendido tudo isso? Como não compreendiam o que se passava, indispuseram-se contra Ele. Julgaram-No talvez ridículo e receavam que suas atitudes manchassem o nome de sua estirpe. Temiam inclusive a má repercussão junto às autoridades, pois Jesus poderia ser considerado – como de fato o foi depois – um rebelde. Já haviam surgido antes revolucionários, desejosos de liderar um movimento para libertar Israel do jugo romano e de seus impostos, que fracassaram em seu intento. Poderiam pensar tais parentes ser este também o intuito de Nosso Senhor. E, por muitos prodígios que fizesse, estaria fadado à ruína por insuficiência de meios. No fundo, como Ele vinha contradizendo os costumes mundanos e estava empenhado numa missão diferente de tudo quanto era tido por normal, não O aceitavam e pretendiam tratá-Lo como um louco.

É de se notar, em sentido inverso, como estes mesmos familiares que agora buscam afastá-Lo do apostolado, por acharem que este depõe contra sua reputação, mais tarde, constatando o sucesso de Nosso Senhor, pedir-Lhe-ão para Se manifestar na Judeia (cf. Jo 7, 3-5), certamente para que o sumo pontífice e o Sinédrio vissem a importância da família que tinha em seu seio tal profeta taumaturgo. Subindo Jesus na escala social, elevaria todos os seus… Ora, que Ele não houvesse sido admirado pela maioria em sua cidade, Nazaré, já é difícil entender; todavia, que diante das maravilhas que se seguiram ao início de sua vida pública não O aceitassem é inconcebível! “Veio para o que era seu, mas os seus não O receberam” (Jo 1, 11)…

Com frequência, quem ousa se opor ao mundo não é compreendido e pode ser rejeitado e perseguido até por sua família, quando esta quer os seus membros para si e não para Deus, de quem os recebeu para depois Lhe serem restituídos… Trata-se de uma apropriação injusta de algo pertencente ao Criador. A vocação significa o selo divino cobrando o que, de iure, é seu. Por isso, é das piores, na face da terra, a maldição contra os pais que desviam os filhos do chamado religioso! Roubar algo a um pobre acarreta um castigo menor do que arrancar de Deus a pessoa designada por Ele para seu serviço. Quantas vezes presenciamos isso na História! O pai do grande São Francisco de Assis, Pedro Bernardone, por exemplo, em certo momento o deserdou e lhe retirou todos os bens, até a própria roupa do corpo, por não aceitar a vida virtuosa do filho. E a mãe e os irmãos de São Tomás de Aquino prenderam-no numa torre, para impedi-lo de se tornar frade dominicano. Este é o problema da família que não está constituída com vistas ao amor a Deus, cujos membros procuram tirá-Lo do trono que Lhe pertence, a fim de que os acontecimentos gravitem em torno de cada um.

A afeição dos familiares de Nosso Senhor por Ele é tipicamente a do egoísta; conclui-se daí que todos os egoístas são parentes daqueles parentes de Jesus. Como eles, também nós, se procuramos nos colocar sempre no centro de tudo, consideraremos insensatez as obras de Deus e exageradas as exigências da Religião. Eis uma importante lição desta Liturgia: devemos evitar tal delírio, tomando enorme cuidado com a sede de elogios e o desejo de chamar a atenção sobre nós, para que os outros nos adorem. Saiamos de nós mesmos e seja a glória de Deus o eixo de nossa existência!

Por inveja, uma acusação contraditória

22 Os mestres da Lei, que tinham vindo de Jerusalém, diziam que Ele estava possuído por Belzebu, e que pelo príncipe dos demônios Ele expulsava os demônios.

Homens sem fé, os mestres da Lei mencionados neste versículo foram incapazes de compreender quem era Jesus. Expulsava demônios, curava todo tipo de doenças e ressuscitava mortos, causando-lhes inveja, pois eles gostariam de ter igual poder; mas, como não o possuíam, receavam perder a posição privilegiada da qual desfrutavam naquela sociedade. Começaram, então, com supino mau espírito, a atribuir o império do Salvador sobre os demônios a um conchavo com Belzebu.

Jesus ridiculariza seus inimigos

23 Então Jesus os chamou e falou-lhes em parábolas: “Como é que satanás pode expulsar a satanás? 24 Se um reino se divide contra si mesmo, ele não poderá manter-se. 25 Se uma família se divide contra si mesma, ela não poderá manter-se. 26 Assim, se satanás se levanta contra si mesmo e se divide, não poderá sobreviver, mas será destruído”.

A resposta de Nosso Senhor visava mostrar quão infundada era a acusação levantada contra Ele. Se dois exércitos travam batalha, o general de um dos lados mandaria seus soldados combater os próprios companheiros no teatro de guerra? Este seria, sem dúvida, derrotado! Se realmente Jesus estivesse agindo por obra de Belzebu para expulsar os demônios, significaria estar o inferno em “guerra civil”, em consequência da qual os demônios em breve se destroçariam. Ora, quando numa cidade os habitantes se digladiam entre si, o inimigo externo pode dispensar o envio de homens de armas para atacá-la, porquanto ela acabará por se destruir. Qualquer estrategista deixará livre curso a essas lutas intestinas, para só depois subjugar os sobreviventes. Portanto, os sinedritas não deveriam se preocupar, pois toda a obra de Nosso Senhor soçobraria sem demora. Por que haveriam de estar aflitos? A este respeito diz São João Crisóstomo: “Vede quanto ridículo há na acusação, quanta estupidez, quanta íntima contradição! Porque é contradição dizer, primeiro, que satanás está firme e expulsa os demônios, e logo acrescentar que está firme justamente pelo que devia perecer”. 2

27 “Ninguém pode entrar na casa de um homem forte para roubar seus bens, sem antes o amarrar. Só depois poderá saquear sua casa”.

Esta imagem deixava ainda mais evidente a incoerência dos mestres da Lei. Todos sabiam perfeitamente que para se roubar uma casa é preciso antes imobilizar o dono. Então, seria verossímil que, segundo diziam os escribas e fariseus, Jesus repelisse os espíritos maus pelo poder de Belzebu, seu príncipe, e, em combinação com ele, arruinasse seus subalternos? “Vede como” – observa o mesmo Crisóstomo – “o Senhor demonstra o contrário daquilo que seus inimigos tentavam afirmar. […] Ele mantinha atado com absoluta autoridade não só os demônios, como também seu próprio capitão”. 3 Mais uma vez, com uma simples parábola, o Divino Mestre desmascarava seus adversários.

Gravidade do pecado contra o Espírito Santo

28 “Em verdade vos digo: tudo será perdoado aos homens, tanto os pecados, como qualquer blasfêmia que tiverem dito. 29 Mas quem blasfemar contra o Espírito Santo, nunca será perdoado, mas será culpado de um pecado eterno”. 30 Jesus falou isso, porque diziam: “Ele está possuído por um espírito mau”.

Nosso Senhor na Sinagoga de Cafarnaum – Biblioteca do Mosteiro de Yuso, San Millán de la Cogolla (Espanha)

Tornando mais grave sua argumentação, Nosso Senhor acrescenta que, ao fazer esta acusação, eles incorriam em pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há perdão. Entretanto, se Jesus Cristo veio ao mundo para resgatar os pecadores, como explicar que existam faltas irremissíveis?

A primeira exigência para obter o perdão é que Deus, sendo o ofendido, o queira dar; e Ele o quer, a ponto de estar constantemente com as mãos estendidas para nos acolher. Não obstante, outra condição essencial para ser absolvido é o reconhecimento do erro, seguido da dor de o ter cometido, pois sem ela tal ato perde o sentido. A impenitência final “exclui os meios que levam à remissão dos pecados”, 4 e o pecador acabará, no fundo, atribuindo sua falha ao próprio Deus. Esta atitude “é o espírito de blasfêmia, que não se perdoa nem neste século nem no futuro. […] Embora a paciência de Deus convide à penitência, pela dureza de coração, por seu coração impenitente, [o pecador] acumula ira para o dia da cólera e da revelação do justo Juízo de Deus, o qual pagará a cada um conforme suas obras”. 5

Haveriam de ser perdoados estes escribas e fariseus, cuja maldade chegava a tal extremo? Depois de testemunharem a cura de cegos, leprosos e paralíticos, bem como a expulsão dos mais terríveis demônios – obras todas indiscutivelmente messiânicas –, negavam a verdade conhecida como tal ao ficar com ódio e desejo de matar Jesus, declarando que agia em função do príncipe das trevas. E depois de serem vencidos em todas as ciladas que tramaram contra o Divino Mestre, ainda não admitiam seu desatino, mas, pretendendo-se detentores da razão, caíam em impenitência e obstinação. Por fim, cheios de perfídia, eles rejeitavam os carismas de Nosso Senhor, a atuação do Espírito Santo através da sua humanidade santíssima e, por inveja da graça fraterna, desprezavam os benefícios que Ele derramava às torrentes por onde passava.

Cabe-nos, em relação à ação do Espírito Santo, ser totalmente flexíveis, sem a menor sombra de inveja. Devemos, então, alegrar-nos com os benefícios concedidos a outrem, “para que a abundância da graça em um número maior de pessoas faça crescer a ação de graças para a glória de Deus” (II Cor 4, 15), como nos ensina São Paulo na segunda leitura (II Cor 4, 13-18–5, 1). Se a nós o Senhor deu pouco ou muito, é desígnio d’Ele. O importante é cada um receber tudo quanto está destinado por Deus para a sua maior glória. Ao vermos alguém favorecido com um dom que não temos, seja natural ou sobrenatural, se admirarmos a obra de Deus naquela alma, progrediremos na vida espiritual. Se, pelo contrário, procedermos à maneira daqueles familiares de Jesus ou dos fariseus, afundaremos como eles.

Maria Se apresenta para enfrentar os parentes

31 Nisso chegaram sua Mãe e seus irmãos. Eles ficaram do lado de fora e mandaram chamá-Lo. 32 Havia uma multidão sentada ao redor d’Ele. Então Lhe disseram: “Tua Mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura”.

Conforme comentam certos Padres da Igreja, Nossa Senhora, sabendo que alguns planejavam fazer mal a Jesus, apresentou-Se para enfrentá-los: “Como os que estavam próximos do Senhor iam apoderar-se d’Ele por julgá-Lo louco, eis que acorreu sua Mãe, movida por um sentimento de amor e piedade”. 6 Bonita interpretação, que mostra a combatividade de Maria, aspecto frequentemente esquecido. Junto com Ela estavam os “irmãos”, termo que, na linguagem bíblica, designava os parentes em geral, como primos e tios.

Tão coesa era a muralha humana formada ao redor de Nosso Senhor, que impedia Nossa Senhora e seus acompanhantes de entrarem na casa e se aproximarem d’Ele. Os presentes, de acordo com o arraigado conceito familiar da época, consideravam a maternidade como algo supremo e, por isso, avisaram Jesus da chegada de sua Mãe, julgando normal interromper a pregação para atendê-La.

As relações sobrenaturais, muito mais fortes que as do sangue

33 Ele respondeu: “Quem é minha mãe, e quem são meus irmãos?” 34 E olhando para os que estavam sentados ao seu redor, disse: “Aqui estão minha mãe e meus irmãos. 35 Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”.

Cristo, todavia, aproveitou a ocasião para contrariar a tendência do povo judeu a um excessivo apreço à família. Se Ele, levantando-Se, fosse ao encontro de sua Mãe e de seus irmãos, respaldaria e solidificaria este afã… Em vez disto, sua resposta deixa clara a superioridade da relação espiritual sobre a natural. Prezam-se tanto os vínculos do sangue! Sem dúvida têm seu peso, mas não constituem o essencial e só adquirem sentido se considerados em função de Deus. Enquanto os laços humanos abrangem pequena quantidade de membros, os sobrenaturais incluem irmãos numerosos “como as estrelas do céu, e como a areia na praia do mar” (Gn 22, 17). Aplica-se, neste caso, o belo princípio de São Tomás: “Os bens espirituais podem ser possuídos ao mesmo tempo por muitos, não, porém, os bens corporais”. 7

O Filho de Deus veio exatamente para nos tornar participantes da sua família, de forma a sermos seus irmãos e filhos, num imbricamento com Ele muito mais estreito do que o originado no sangue. “Não há senão um parentesco legítimo, o qual consiste em fazer a vontade de Deus. E este é um modo de parentesco melhor e mais importante que o da carne”. 8 Assim, o Divino Mestre olhou para os mais fervorosos, isto é, aqueles que procuravam aproximar-se d’Ele com o desejo de ouvi-Lo e de ser por Ele instruídos, que estavam, portanto, com predisposição para aceitar e abraçar seus ensinamentos, e afirmou: “Aqui estão minha mãe e meus irmãos. Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe”. Incomparavelmente mais do que a qualquer pessoa na terra, por muito que a esta devamos, precisamos ser gratos a Deus, abandonar-nos em suas mãos e obedecer-Lhe, pois fomos por Ele criados. Ele enviou seu Filho para nos redimir, a fim de que tenhamos a vida – a própria vida de Deus! – e a tenhamos em abundância (cf. Jo 10, 10).

Por tal motivo, o Menino Jesus, aos doze anos de idade, quando após três dias de busca foi encontrado por Nossa Senhora e São José no Templo ouvindo e interrogando os doutores da Lei, declarou: “Não sabíeis que devo ocupar-Me das coisas de meu Pai?” (Lc 2, 49). Suas palavras nos recordam que nossa filiação primeira é a divina, e só em segundo plano havemos de considerar a do sangue. Ao ser concebida, a criança encontra-se numa total sujeição aos pais e vai aos poucos crescendo, ainda amparada, orientada e governada por eles, até se tornar independente. No campo sobrenatural ocorre o oposto: a partir do nascimento, isto é, do Batismo, o relacionamento com Deus e a dependência d’Ele vão aumentando, e atingem o seu grau máximo quando a alma chega à visão beatífica. Permanece, então, numa inteira e completa familiaridade com o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Um altíssimo elogio à sua Mãe Santíssima

Longe de desprezar Nossa Senhora – o que seria impensável! –, Jesus Lhe dirigia o maior elogio possível, pois afirmava ser Ela mais sua Mãe por fazer a vontade de Deus do que por Lhe ter transmitido a vida humana. “Não fala assim para negar sua Mãe, mas para manifestar ser Ela digna de honra não só pelo fato de haver engendrado Cristo, como também por todas as suas virtudes”. 9 Ao longo de cerca de trinta anos de convívio com seu Filho, Maria foi perfeitíssima na realização da vontade d’Ele, guardando todas as coisas no seu coração (cf. Lc 2, 51). Porque acreditava que Jesus era a Verdade, a Virgem Santíssima – em contraste com aqueles que O julgavam louco – Se conservava sempre numa postura de submissão a Ele, mesmo em face daquilo que não entendia.

Os bem-aventurados, detalhe do Juízo Final, por Fra Angélico – Museu de São Marcos, Florença (Itália)

III – Sejamos familiares de Jesus, como o foram Maria e José

A Liturgia de hoje é de uma importância fundamental para compreendermos o valor desta “consanguinidade espiritual” com Nosso Senhor Jesus Cristo, à qual jamais podemos renunciar. Quantas vezes, infelizmente, nos comportamos de modo egoísta, nos colocamos no centro de tudo e cometemos uma falta! Fazer a vontade de Deus significa sermos retíssimos e íntegros, sob todos os pontos de vista, à semelhança da Mãe de Jesus.

Para isso precisamos admitir nossa debilidade, cientes de que, conforme nos ensina o Divino Mestre, a podridão nasce dentro do homem (cf. Mc 7, 21-23). Devemos, isto sim, nos surpreender quando praticamos um ato bom, reconhecendo que este provém da filiação espiritual que Ele nos concedeu pela graça. Se os fariseus sentissem a miséria que tisnava seu interior, talvez tivessem olhado para Nosso Senhor com despretensão e acolhessem em sua alma a salvação. No Céu estão, de fato, não apenas os inocentíssimos, mas também São Dimas – o bom ladrão, canonizado em vida pelo Redentor (cf. Lc 23, 43) –, Santo Agostinho, Santa Maria Madalena… e tantos outros que se confessaram culpados e obtiveram perdão. Em sentido oposto, no inferno padecem todos os pecadores que, por orgulho, persistiram no erro. Eis o grande problema da natureza humana decaída.

Peçamos a Maria Santíssima o dom extraordinário da humildade, para nos serem abertas as portas da eterna bem-aventurança e chegarmos à plenitude da familiaridade com Nosso Senhor Jesus Cristo! 

 

Notas

1 SÃO BEDA. In Marci Evangelium expositio. L.I, c.3: PL 92, 162.
2 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilía XLI, n.1. In: Obras. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo (1-45). 2.ed. Madrid: BAC, 2007, v.I, p.795.
3 Idem, n.2, p.799.
4 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.14, a.3.
5 SANTO AGOSTINHO. Sermo LXXI, n.20. In: Obras. Madrid: BAC, 1983, v.X, p.326.
6 TEOFILATO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Marcum, c.III, v.31-35.
7 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.23, a.1, ad 3.
8 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilía XLIV, n.1. In: Obras. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo (1-45), op. cit., p.841.
9 TEOFILATO, op. cit.
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Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP
Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, é fundador dos Arautos do Evangelho.

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