A fé de Pedro, fundamento do Papado

Num ardoroso ímpeto de fé, São Pedro adianta-se aos outros Apóstolos e proclama que Cristo é o Filho de Deus. Como recompensa a este ato de fidelidade, Jesus o constitui a pedra sobre a qual edificará sua Igreja.

 

Evangelho do XXI Domingo do Tempo Comum

“Naquele tempo, 13 Jesus foi à região de Cesareia de Filipe e ali perguntou a seus discípulos: ‘Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?’ 14 Eles responderam: ‘Alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias; outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas’. 15 Então Jesus lhes perguntou: ‘E vós, quem dizeis que Eu sou?’ 16 Simão ­Pedro respondeu: ‘Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo’. 17 Respondendo, Jesus lhe disse: ‘Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no Céu. 18 Por isso Eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la. 19 Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na Terra será ligado nos Céus; tudo o que tu desligares na Terra será desligado nos Céus’.

20 Jesus, então, ordenou aos discípulos que não dissessem a ninguém que Ele era o Messias” (Mt 16, 13-20).

Entrega das chaves a Pedro – Paróquia de São Pedro e São Paulo, Scherwiller (França)

I – Para bem conhecer Jesus é preciso ter fé

Se analisarmos as operações da inteligência e da vontade humana, facilmente constataremos uma peculiaridade que as torna muito distintas uma da outra. Valendo-nos de linguagem figurada, podemos dizer que a primeira faz com que as coisas entendidas venham até si; a segunda, pelo contrário, “voa” até elas, ao desejá-las. Neste sentido, afirma São Tomás que “há conhecimento quando o objeto conhecido está no que conhece; já o amor quando o amante está unido à coisa amada”.1 O ato de entender implica, portanto, em adequar às dimensões de nossa inteligência tudo quanto nós assimilamos. Quando se trata de compreender um objeto inferior a nós, nossa razão o enriquece, e este passa a existir em nossa mente de modo mais nobre do que é em si mesmo.

Por exemplo, ao dedicar-se a estudar uma formiga, um cientista é capaz de destrinchá-la com o auxílio de microscópios, utilizá-la para experiências químicas, extrair dela o ácido fórmico. Haverá ainda quem estabeleça correlações entre certas características de seu comportamento — tais como a determinação e a tenacidade em providenciar alimento e transportá-lo para o formigueiro, ou sua tendência gregária — e uma série de princípios psicológicos. A inteligência humana pode, então, encontrar na formiga valores que esta jamais compreenderá, por ser irracional, conferindo-lhe uma importância que transcende à de um mero inseto.

Bem diferente, porém, é o que acontece quando pretendemos conhecer seres superiores a nós, porque como não conseguimos abarcar sua grandeza, nossa inteligência os diminui até ficarem proporcionados aos limites desta. Tal é, precisamente, a função de um bom mestre: tomar doutrinas complexas e traduzi-las de maneira acessível, conforme a capacidade dos alunos. Se assim não proceder, seus ouvintes, menos preparados e sábios, não conseguirão aprender.

Estas considerações nos ajudarão a acompanhar melhor a Liturgia do 21º Domingo do Tempo Comum, pois elas se aplicam a certos episódios da existência terrena de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A Sagrada Família na oficina de Nazaré, Catedral de Santo Domingo de la Calzada (Espanha)

Jesus começa sua pregação

Na aparência, a vida de Jesus até cerca de 30 anos transcorreu como a de um homem comum. Velando os reflexos de sua divindade, ajudava o pai no serviço e era conhecido como “o filho do carpinteiro” (Mt 13, 55), noção fácil de ser assimilada. São José, em sua simplicidade, também não deixava transparecer toda a ­sublimidade de sua vocação — era pai adotivo do próprio Deus Encarnado! — e ninguém, fora do seio da Sagrada Família, percebia o altíssimo mistério que nela se realizava. Embora Jesus e José fossem bem conceituados na pequena Nazaré, pela honestidade, perfeição e responsabilidade com que executavam seus trabalhos, é evidente que tal apreciação estava muito aquém de sua autêntica dignidade.

Entretanto, em certo momento morre São José e, algum tempo depois, Nosso Senhor começa o seu ministério, dirigindo-Se a cidades mais importantes do que Nazaré, tais como Cafarnaum, Corozaim e Betsaida. Conforme narram os evangelistas, Ele “percorria toda a Galileia, ensinando nas suas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino, curando todas as doenças e enfermidades entre o povo” (Mt 4, 23). Sua fama logo se difundiu “por todos os lugares da circunvizinhança” (Lc 4, 37), de sorte que “onde quer que Ele entrasse, fosse nas aldeias ou nos povoados, ou nas cidades, punham os enfermos nas ruas e pediam-Lhe que os deixassem tocar ao menos na orla de suas vestes” (Mc 6, 56). Quando instruía o povo, “maravilhavam-se da sua doutrina, porque Ele ensinava com autoridade” (Lc 4, 32) e, ao operar milagres, provocava assombro a ponto de suscitar a exclamação das multidões: “Jamais se viu algo semelhante em Israel” (Mt 9, 33). Uma simples ordem d’Ele fez cessar a tempestade e acalmou o mar, impressionando tanto os discípulos, que estes se perguntavam uns aos outros: “Quem é este Homem a quem até os ventos e o mar obedecem?” (Mt 8, 27). Todavia, esse impacto por Ele causado produzia incômodo nos judeus. Por quê?

Eles esperavam um Messias temporal

Não devemos esquecer que a classe mais alta da sociedade judaica era constituída pelos saduceus e fariseus, dois influentes partidos religiosos que se digladiavam. Enquanto os primeiros, acomodados aos privilégios de que gozavam, pouco se preocupavam com a vinda do Messias, os fariseus incutiam uma ideia equivocada no povo — de si muito propenso a aceitá-la —, segundo a qual o principal objetivo do Salvador seria o de promover a supremacia político-social e econômica de Israel sobre todas as outras nações da Terra.

Ora, diversas características apresentadas por Nosso Senhor não coincidiam com tal anseio. Se, sob certo aspecto, Jesus superava as expectativas messiânicas, também é verdade que várias vezes a opinião pública mostrava-se chocada em relação a Ele. Quando — depois da multiplicação dos pães e de ter caminhado sobre as águas — anunciou a Eucaristia, declarando: “Eu sou o pão vivo que desceu do Céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão, que Eu hei de dar, é a minha Carne para a salvação do mundo” (Jo 6, 51), os judeus se escandalizaram, pois interpretaram ­suas palavras no sentido de canibalismo. Inclusive, “desde então, muitos dos seus discípulos se retiraram e já não andavam com Ele” (Jo 6, 66).

Milagre da cura do paralítico em Cafarnaum, Igreja de São Salvador em Chora, Istambul (Turquia)

Nesta mesma ocasião o Mestre perguntou aos Doze: “Quereis vós também ­retirar-vos?” (Jo 6, 67), como a dizer: “a opinião pública abandonou-Me; não quereis segui-la?”. E São Pedro Lhe respondeu: “Senhor, a quem iríamos nós? Tu tens as palavras da vida eterna” (Jo 6, 68). Tal reação indica que na mentalidade dos Apóstolos começava a se configurar uma ideia mais acertada a respeito do Messias, graças à virtude da fé que lhes estava alargando os horizontes interiores, pois, sem este auxílio sobrenatural, as verdades reveladas — sobretudo as atinentes aos mais altos mistérios de nossa Fé — não podem ser atingidas pela razão humana.

Bem outra, contudo, foi a atitude dos fariseus e saduceus. Como não quiseram aceitar Nosso Senhor, chegaram a acusá-Lo de exorcizar “por Beelzebul, chefe dos demônios” (Mt 12, 24), e terminaram por planejar a sua morte.

É nesta perspectiva que analisaremos o episódio narrado por São Mateus, ocorrido por volta de uma semana antes da Transfiguração de Jesus, no Monte Tabor (cf. Mt 17, 1; Mc 9, 2; Lc 9, 28). A Paixão estava próxima e era preciso separar definitivamente os Apóstolos da sinagoga — da qual eram membros fervorosos —, deixando-lhes claro que a instituição que Ele vinha fundar levaria aquela à plenitude e seria a realização de todas as profecias da Antiga Lei.

II – A promessa da fundação da Igreja

“Naquele tempo, 13 Jesus foi à região de Cesareia de Filipe e ali perguntou a seus discípulos: ‘Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?’”

Partindo de Betsaida, onde havia curado um cego (cf. Mc 8, 22-26), Nosso Senhor Se dirigiu com os discípulos a Cesareia de Filipe, cidade situada a uns 50 km de distância, num território de exuberante beleza natural, situado ao norte da Palestina. Herodes — chamado o Grande — havia ali edificado um templo destinado ao culto de César Augusto, e mais tarde, quando Filipe se tornou tetrarca da região, deu à localidade o nome de Cesareia, para angariar as simpatias do imperador.2 É provável que a cena descrita nesses versículos tenha se dado à vista daquele edifício pagão, o qual se erguia no alto de um rochedo, dominando o panorama.3

Um método para formar os Apóstolos

Na pergunta formulada pelo Divino Mestre podemos entrever o interessante método empregado para formar os Apóstolos. Estes foram comprovando por si, ao ouvirem as pregações e presenciarem os milagres, o quanto Ele era um Mestre incomum. Entretanto, se não houvesse uma revelação eles jamais cogitariam ser Jesus o próprio Deus! Nem sequer os Anjos, no estado de prova, chegariam a esta conclusão por si mesmos, pois o mistério da união hipostática é algo que escapa completamente não só à inteligência humana, como também à angélica.4 Os demônios não tinham, por isso, uma noção clara a respeito da divindade de Cristo.5

Ademais, ao Se encarnar no seio puríssimo de Maria, Nosso Senhor fez o milagre negativo de assumir um corpo padecente. Do contrário, este seria glorioso, em inteira consonância com sua Alma, a qual gozava da visão beatífica desde o primeiro instante de sua criação. Deste modo, velava aos olhos dos homens os fulgores de sua divindade, não permitindo que eles percebessem com clareza quem Ele era: a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, igual ao Pai e ao Espírito Santo. A tal ponto que, na ­Última Ceia, São Filipe ainda pede a Jesus para lhes mostrar o Pai, e recebe d’Ele esta resposta: “Há tanto tempo que estou convoco e não Me conheceste, Filipe! Aquele que Me viu, viu também o Pai” (Jo 14, 9).

Sendo Ele a Humildade e a Prudência, nada disse a esse respeito desde o início, ao convocar os discípulos a segui-Lo. Agora, porém, uma vez que eles estavam impregnados e pervadidos de provas, o Salvador quer levá-los a conhecer este mistério. Era o momento de introduzir os Apóstolos na perspectiva da divindade d’Ele. É interessante notar que, ao questioná-los sobre o parecer popular, Jesus não usa expressões como “de Mim” ou “de minha Pessoa”, e sim “do Filho do Homem”. Por quê? Porque o povo tinha uma opinião sobre o Filho do Homem e não a respeito d’Ele, que é Deus, da Pessoa d’Ele, que é divina. Por conseguinte, Nosso Senhor quer chamar a atenção dos Apóstolos para a consideração que o povo dava à sua natureza humana, a fim de demovê-los desse juízo errado e manifestar-lhes quem Ele é.

Ruínas de Cesareia de Filipe, atual Banias (Terra Santa)

Opiniões diversas e equivocadas

14 “Eles responderam: ‘Alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias; outros ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas’”.

Os Apóstolos transmitem as conjecturas do povo: versões variadas e muito distantes da realidade, mas indicativas do quanto Jesus era reputado um homem extraordinário. E nada mais, além disso. De fato, sendo impossível abarcar sua grandeza, tentavam adequá-Lo à mente deles, equiparando-O a um profeta. No entanto, os Apóstolos conviviam com Nosso Senhor e percebiam que aqueles comentários não estavam à altura d’Ele. Vários dentre eles tinham sido discípulos de São João Batista e sabiam perfeitamente que o Mestre não era o Precursor ressuscitado, pois o haviam conhecido de perto, tendo ouvido de seus lábios: “eis que vem outro mais poderoso do que eu, a quem não sou digno de Lhe desatar a correia das sandálias” (Lc 3, 16). Aliás, ele havia indicado Jesus a Santo André e a São João Evangelista, dizendo: “Eis o Cordeiro de Deus” (Jo 1, 36). Com relação às hipóteses de Cristo ser Jeremias ressurrecto ou Elias — que ainda estava e continua vivo, segundo uma consagrada tradição —, eles também não tinham dúvidas de serem falsas.

Todavia, receosos de perder a consonância com a opinião pública, os próprios Apóstolos evitavam levantar o problema e perguntar sobre as origens de Cristo Jesus. Sabiam que era filho de Maria e José, mas ignoravam onde havia estudado, de onde provinha tanta sabedoria, como conseguira o poder de fazer milagres.

O que lhes faltava para se destacarem dessas opiniões e dar um passo adiante na compreensão do Mestre? Um dom de fé. Com efeito, “a fé aperfeiçoa o olhar interior, abrindo a mente para descobrir, no curso dos acontecimentos, a presença operante da Providência. […] a razão e a fé não podem ser separadas, sem fazer com que o homem perca a possibilidade de conhecer de modo adequado a si mesmo, o mundo e Deus”.6

Uma resposta inspirada

15 “Então Jesus lhes perguntou: ‘E vós, quem dizeis que Eu sou?’ 16 Simão Pedro respondeu: ‘Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo’”.

Nesta segunda pergunta é importante ressaltar como o Divino Mestre Se refere a Si mesmo, pois já não diz “o Filho do Homem”, mas indaga: “quem dizeis que Eu sou?”. Comenta São João Crisóstomo ser esta uma forma de “convidá-los a conceber pensamentos mais altos sobre Ele e mostrar-lhes que a primeira sentença ficava muito abaixo de sua autêntica dignidade”.7

São Pedro, cujo temperamento expansivo o levava a dizer tudo quanto pensava, adiantou-se a responder: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”! Dir-se-ia que esta frase lapidar era uma elaboração da experiência do Apóstolo, fruto de madura e profunda reflexão. Ora, como poderia ele, pelo mero concurso do raciocínio, chegar à conclusão de que fosse Deus aquele Mestre “exteriormente reconhecido como Homem” (Fl 2, 8), que Se cansava, sentia sono, fome e sede?

A fidelidade de Pedro à inspiração do Pai

17 “Respondendo, Jesus lhe disse: ‘Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no Céu’”.

Jesus declara que Pedro é feliz por ter sido aquinhoado pelo Pai, ao lhe ser revelada tão alta verdade. A propósito desta passagem observa Santo Hilário: “A fé verdadeira e inviolável consiste em crer que o Filho de Deus foi engendrado por Deus e tem a mesma eternidade do Pai. […] E a confissão perfeita consiste em dizer que este Filho tomou Corpo e Se fez Homem. Compreendeu, pois, tudo o que expressa sua natureza e seu nome, no que está a perfeição das virtudes”.8

São Pedro foi fiel à inspiração divina e, a despeito das impressões humanas, externou sua fé. Como prêmio por sua correspondência à graça e por tão robusta fé, quis o Mestre outorgar ao Apóstolo um tesouro, como a dizer, na bela expressão de São Leão Magno: “do mesmo modo que meu Pai te manifestou minha divindade, assim também Eu te faço conhecer tua excelência”.9

E foi nesse momento que se tornou clara para todos os Apóstolos a missão que lhes estava reservada: anunciar ao mundo Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus e Homem verdadeiro.

A promessa da invencibilidade da Igreja

18 “‘Por isso Eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la. 19 Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na Terra será ligado nos Céus; tudo o que tu desligares na Terra será desligado nos Céus’. 20 Jesus, então, ordenou aos discípulos que não dissessem a ninguém que Ele era o Messias”.

No aramaico não há distinção de gênero entre os substantivos Pedro e pedra, sendo ambos expressos por uma única palavra — kefa’. Ou seja, Jesus disse que Ele iria edificar a Igreja sobre esta kefa’ — pedra — que é Pedro.10

Com tais palavras Cristo dá a Pedro o poder divino, absoluto e inabalável, de sustentar a Santa Igreja. Hoje, transcorridos mais de dois mil anos, passou ela por grandes procelas e convulsões, mas continua de pé e, aconteça o que acontecer, permanecerá firme até o fim do mundo. A Igreja não corre risco de que seu poder seja usurpado pelas hostes infernais, porque está alicerçada nesta promessa. A morte nunca a atingirá! E isto não quer dizer que a Igreja sobreviverá às vicissitudes numa constante agonia. Pelo contrário, ela sempre esteve e estará jovem em todas as eras históricas, quer durante as perseguições romanas, com milhares de mártires subindo ao Céu, do Coliseu ou do Circo Máximo; quer nos esplendores da Idade Média, com o florescer glorioso das catedrais góticas, iluminadas pela policromia dos vitrais e animadas pelo som majestoso do órgão; e inclusive em nossos dias, em que a humanidade jaz num relativismo e materialismo sem precedentes.

A infalibilidade e o poder das chaves

Nesta ocasião Nosso Senhor oferece também a Pedro a garantia da infalibilidade, ao declarar que suas decisões na Terra serão ratificadas no Céu. Ele será assistido pelo Espírito Santo para ensinar a verdade, o que torna impossível à Igreja desviar-se, seguindo falsas doutrinas. Graças a este carisma o Sumo Pontífice não erra quando se pronuncia ex cathedra, “isto é, quando, no desempenho do múnus de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema ­autoridade apostólica que determinada doutrina referente à Fé e à moral deve ser sustentada por toda a Igreja”.11 O Papado tem sido uma das instituições mais combatidas ao longo da História, o ponto no qual se concentra o ódio do demônio e das forças do mal e, ao mesmo tempo, o fator de estabilidade do Corpo Místico de Cristo, único organismo a gozar deste privilégio.

Analisam os autores o alcance do poder das chaves, e muitos defendem que as palavras “na Terra” compreendem tudo o que está nela e debaixo dela, isto é, os vivos e também os mortos. Assim, o Papa tem autoridade para canonizar um Bem-aventurado e fazer com que este receba um acréscimo de glória acidental na eternidade; para aplicar sufrágios específicos aos fiéis que estão no Purgatório e até para excomungar um falecido.12 Era necessário existir um homem com tais atribuições aqui na Terra, a fim de que tivéssemos uma ligação direta com o Céu!

Também aos Bispos e sacerdotes, sob o primado do Papa e em total dependência dele, é concedido o poder das chaves, embora de forma menos intensa que ao Sumo Pontífice. No confessionário, por exemplo, o padre tem a faculdade de absolver ou não o penitente de seus pecados, fazendo com que as portas do Céu se abram para ele ou continuem fechadas. Enquanto o Paraíso Terrestre — criado por Deus para os homens — está guardado por Querubins, desde que Adão e Eva de lá foram expulsos (cf. Gn 3, 24), as chaves do Paraíso Celeste, morada dos Anjos bons, foram confiadas a um homem! Portanto, São Pedro obteve de Jesus muitíssimo mais do que Adão perdera!

Dir-se-ia ser um perigo depositar tal tesouro nas mãos de um homem… Sim, caso não fosse Deus o Doador! Quem o entrega a São Pedro é o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo e, na realidade, é Ele quem governa a Igreja. Se nela houve abusos e desvios ao longo da História, foram por Ele permitidos para provar que, ainda que o elemento humano esteja presente, sempre prevalecerá o elemento divino.

Cristo entrega as chaves a São Pedro – Paróquia de São Vendelino, Fostoria (Estados Unidos)

Duas facetas em São Pedro

Nos versículos subsequentes, que não constam na Liturgia deste domingo, Nosso Senhor anuncia aos Apóstolos, pela ­primeira vez, sua Paixão (cf. Mt 16, 21), quiçá para contrabalançar a euforia em que se encontravam ante aquela grandiosa notícia e impedir que de modo errôneo a tomassem como sinal da realização iminente de seu sonho messiânico. Porém, ao ouvir a descrição dos horrores pelos quais o Mestre haveria de passar, Pedro O tomou à parte (cf. Mc 8, 32) e começou a repreendê-Lo, dizendo: “Que Deus não permita isto, Senhor! Isto não Te acontecerá!” (Mt 16, 22). E Cristo, que pouco antes havia declarado ser Pedro a rocha sobre a qual iria construir a Igreja, agora o repele como a uma tentação: “Afasta-te, satanás!” (Mt 16, 23). Como entender isto?

Faltava a São Pedro uma força do Espírito Santo que lhe infundisse o amor verdadeiro e desinteressado e o preparasse para compreender a Paixão do Salvador. O Apóstolo, que agira tão bem na primeira prova, ao testemunhar com arrojo a divindade de Jesus Cristo, sucumbe nesta outra da aceitação da cruz e da dor. Ele, que fora inteiramente fiel, a ponto de ser constituído a pedra sobre a qual a Igreja seria edificada, torna-se agora pedra de tropeço para o Mestre, que com essa categórica reação visava extirpar dos discípulos a mentalidade antiga da sinagoga e prepará-los para o espírito da Santa Igreja.

Vemos aqui as duas facetas de São Pedro: uma, inspirada pelo Espírito Santo, que lhe dá a visão divina das coisas; outra, a da natureza decaída pelo pecado original. Ao anunciar a instituição do Papado, Cristo procura vincar bem a distinção entre o que é a assistência do Paráclito para a infalibilidade e o que é a atuação humana. Querer sustentar a ideia de que todo Papa é santo não corresponde à realidade. O múnus petrino pode servir de caminho para a perfeição, e o ideal é que o Papa trilhe esta via, mas ele não perderá a infalibilidade, ainda que sua conduta não seja virtuosa.

III – E eu, quem digo que é Jesus?

Na segunda leitura, a Liturgia conjuga com a confissão de São Pedro um belo trecho da Carta de São Paulo aos Romanos, que ressalta a desproporção infinita entre a nossa inteligência criada e a Inteligência incriada, que é Deus: “Ó profundidade da riqueza, da ­sabedoria e da ciência de Deus! Como são inescrutáveis os seus juízos e impenetráveis os seus caminhos! De fato, quem conheceu o pensamento do Senhor? Ou quem foi seu conselheiro? Ou quem se antecipou em dar-Lhe alguma coisa, de maneira a ter direito a uma retribuição? Na verdade, tudo é d’Ele, por Ele e para Ele. A Ele, a glória para sempre. Amém!” (Rm 11, 33-36). Assim, esta maravilhosa Liturgia nos indica a atitude perfeita que devemos ter como católicos, neste século XXI: sempre uma postura de humildade diante de Deus, reconhecendo, pela fé, sua grandeza extraordinária e in­comensurável, sua onipotên­cia, onisciência e onipresen­ça, e manifestan­do esta verdade eterna que o Pai Celeste revelou ao Príncipe dos Apóstolos.

A consideração da magnífica cena contemplada no Evangelho sugere ainda um exame de consciência: quem é Jesus Cristo para mim? Que digo eu a respeito d’Ele? Ele é para mim o que São Pedro proclamou em Cesareia e São Paulo exalta nesta leitura, isto é, meu Criador, meu Redentor, em função de quem eu vivo? Ou, à semelhança dos judeus daqueles tempos, terei elaborado um Salvador conforme os meus anseios egoístas e mundanos? Caso eu tenha abraçado o erro, devo hoje pedir graças para retornar ao bom caminho, pois o prêmio eterno está vinculado à fé em Nosso Senhor Jesus Cristo e à total entrega de nossa vida a Ele. É isto que nos faz amar o que Ele ordena e esperar o que Ele promete, como pede a Oração do Dia,13 e nos conduz à glória do Céu.

 

Notas

1 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.108, a.6, ad 3.
2 Cf. FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Vida pública. Madrid: Rialp, 2000, v.II, p.270-271.
3 Cf. TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V, p.368-369.
4 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., q.57, a.5, ad 1; q.58, a.5.
5 Cf. Idem, q.64, a.1, ad 4.
6 SÃO JOÃO PAULO II. Fides et ratio, n.16.
7 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilía LIV, n.1. In: Obras. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo (46-90). 2.ed. Madrid: BAC, 2007, v.II, p.138.
8 SANTO HILÁRIO DE POITIERS. Commentarius in Evangelium Matthæi. C.XVI, n.4-5: ML 9, 748-749.
9 SÃO LEÃO MAGNO. In Natali S. Petri Apostoli, hom.70 [LXXXIII], n.1. In: Sermons. Paris: Du Cerf, 2006, v.IV, p.61.
10 Cf. JONES, Alexander. Comentario al Evangelio de San Mateo. In: ORCHARD, OSB, Bernard et al. (Org.). Verbum Dei. Comentario a la Sagrada Escritura. Nuevo Testamento: Evangelios. Barcelona: Herder, 1957, p.416; LAGRANGE, OP, Marie-Joseph. Évangile selon Saint Matthieu. 4.ed. Paris: J. Gabalda, 1927, p.323-324.
11 Dz 3074.
12 Cf. MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los Cuatro Evangelios. Evangelio de San Mateo. Madrid: BAC, 1956, v.I, p.595-596.
13 Cf. 21º DOMINGO DO TEMPO COMUM. Oração do Dia. In: MISSAL ROMANO. Trad. Portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil realizada e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. 9.ed. São Paulo: Paulus, 2004, p.365.

 

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Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, é fundador dos Arautos do Evangelho.

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