A glória da Cruz

Contrariando as máximas do mundo, levadas a um paroxismo nos dias em que vivemos, o Divino Redentor nos ensina com palavras e exemplo qual é a única glória verdadeira.

Evangelho do V Domingo da Quaresma

Naquele tempo, 20 havia alguns gregos entre os que tinham subido a Jerusalém, para adorar durante a festa. 21 Aproximaram-se de Filipe, que era de Betsaida da Galileia, e disseram: “Senhor, gostaríamos de ver Jesus”. 22 Filipe combinou com André, e os dois foram falar com Jesus.

23 Jesus respondeu-lhes: “Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado. 24 Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto. 25 Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem faz pouca conta de sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna. 26 Se alguém Me quer servir, siga-Me, e onde Eu estou estará também o meu servo. Se alguém Me serve, meu Pai o honrará. 27 Agora sinto-Me angustiado. E que direi? ‘Pai, livra-Me desta hora!’? Mas foi precisamente para esta hora que Eu vim. 28 Pai, glorifica o teu Nome!” Então, veio uma voz do Céu: “Eu O glorifiquei e O glorificarei de novo!”

29 A multidão que aí estava e ouviu, dizia que tinha sido um trovão. Outros afirmavam: “Foi um Anjo que falou com Ele”. 30 Jesus respondeu e disse: “Essa voz que ouvistes não foi por causa de Mim, mas por causa de vós. 31 É agora o julgamento deste mundo. Agora o chefe deste mundo vai ser expulso, 32 e Eu, quando for elevado da terra, atrairei todos a Mim”.

33 Jesus falava assim para indicar de que morte iria morrer (Jo 12, 20-33).

I – Onde está a verdadeira glória?

As deformações introduzidas na mentalidade moderna a partir da influência do cinema de Hollywood – marcado pelo invariável happy end, esse imaginário final feliz que só acontece nas telas – acentuaram nas últimas décadas, até o paroxismo, a tendência a detestar qualquer gênero de sofrimento, como se padecer ou ter de sacrificar-se fosse o cúmulo da desgraça.

De maneira paralela estimulou-se o desejo fervilhante de gozar a vida, aumentando as posses inescrupulosamente a fim de ter acesso aos mais excêntricos e dispendiosos prazeres. Não vivem assim, submersos em aparentes delícias, as celebridades deste mundo? A técnica mais avançada, sobretudo no campo da cibernética de ponta, as comodidades mais emolientes, as modas mais extravagantes, em suma, todo um universo de diversões frenéticas está ao alcance desse gênero de pessoas.

Eis então a ilusão dos nossos contemporâneos: ser um deles para, supostamente, atingir um patamar inimaginável de felicidade. Trata-se de protagonizar uma espécie de conto de fadas, despojado, porém, dos encantos do luxo aristocrático e ataviado com ostentosas roupas vindas dos arrabaldes da feiura, cuidadosamente rasgadas e sujas.

Entretanto, consiste nisso a verdadeira glória?

O ensinamento do Divino Mestre

Nossos antepassados pensavam de maneira diversa. Cada qual valia pelas virtudes que possuía: honra, coragem, polidez, honestidade, perseverança, para mencionar apenas algumas. E tais atributos tornavam-se ainda mais meritórios quando sobrenaturalizados pela graça, cuidadosamente preservada dos riscos que levariam a perdê-la com o pecado. Assim, os personagens dignos de louvor distinguiam-se pelo fato de darem a vida por uma causa mais alta, tendo sido capazes de afrontar riscos e realizar corajosas renúncias.

Para Jesus, modelo supremo da humanidade, a verdadeira glória consiste na Cruz, na aceitação viril e séria do holocausto levado ao último ponto

Pensemos na honra tributada aos militares que vertiam com valentia seu sangue pelo bem da pátria, na consideração dedicada aos chefes de família que levavam uma existência austera a fim de proporcionar melhores condições para seus descendentes, ou ainda na admiração suscitada pelo exemplo dos cavaleiros de outrora, sempre dispostos a defender com a própria vida os mais débeis e necessitados e, sobretudo, os mais sublimes interesses da Santa Igreja.

Pois bem, o Evangelho deste 5º Domingo da Quaresma deita luz sobre essa questão. Para Jesus, modelo supremo da humanidade, a verdadeira glória consiste na Cruz, na aceitação viril e séria do holocausto levado ao último ponto. Nosso Senhor corroborou esse ensinamento com o crudelíssimo exemplo dado na Paixão e, por essa razão, agora Ele enfrenta e destrói os mitos e fantasias com que o demônio procura aprisionar entre suas sórdidas garras os espíritos criados para uma glória mais alta. Não, o homem não nasceu para refocilar-se nos lamacentos pântanos deste mundo, mas para conquistar os sacrossantos cumes do heroísmo. E para isso é mister estar disposto a abandonar os estreitos limites do egoísmo e munir-se com as armas da luz, a fim de travar um magnífico combate.

Como ensinava Dr. Plinio Corrêa de Oliveira, “a vida da Igreja e a vida espiritual de cada fiel são uma luta incessante. Deus dá por vezes à sua Esposa dias de uma grandeza esplêndida, visível, palpável. Ele dá às almas momentos de consolação interior ou exterior admiráveis. Mas a verdadeira glória da Igreja e do fiel resulta do sofrimento e da luta. Luta árida, sem beleza sensível, nem poesia definível. Luta em que se avança por vezes na noite do anonimato, na lama do desinteresse ou da incompreensão, sob as tempestades e o bombardeio desencadeado pelas forças conjugadas do demônio, do mundo e da carne. Mas luta que enche de admiração os Anjos do Céu e atrai as bênçãos de Deus”.1 Por isso ele coroava suas palavras com a epígrafe: “A verdadeira glória só nasce da dor”. Eis a clave para a interpretação do Evangelho de hoje.

II – A glória é a Cruz!

O contexto da passagem de São João recolhida por esta Liturgia não podia ser mais decisivo e, ao mesmo tempo, mais crítico na vida de Nosso Senhor. No capítulo décimo primeiro desse Evangelho, Ele havia restituído a vida a Lázaro, quebrando em mil pedaços a campânula de silêncio com que o Sinédrio procurava envolver sua ação. Em consequência, os líderes judaicos decidiram sacrificá-Lo pelo bem da nação: “Desde aquele momento resolveram tirar-Lhe a vida” (Jo 11, 53).

Jesus entra em Jerusalém aclamado pela multidão. A provocação ao Sinédrio não podia ser maior! O Divino Cavaleiro corria ao encontro de sua Paixão

Contudo, “como um guerreiro com vontade de lutar” (Is 42, 13), após um rápido recuo estratégico Jesus volta a Betânia, onde Maria O unge por segunda vez com perfume puríssimo de nardo. No domingo seguinte Ele entra triunfalmente em Jerusalém, sendo aclamado pela multidão que cobria a estrada com ramos de palmas. A provocação não podia ser mais ousada! O Divino Cavaleiro corria ao encontro de sua dolorosa Paixão, a ponto de os fariseus dizerem entre si: “Vede! Nada adiantou! Reparai que todo mundo corre atrás d’Ele!” (Jo 12, 19).

“Entrada de Nosso Senhor em Jerusalém”, por Pietro Lorenzetti – Basílica de São Francisco, Assis (Itália)

E é em Jerusalém, após o ingresso apoteótico de Nosso Senhor no lombo de um burrico, que os gregos lá presentes por ocasião da Páscoa pedem para vê-Lo.

O prêmio da adoração

Naquele tempo, 20 havia alguns gregos entre os que tinham subido a Jerusalém, para adorar durante a festa.

Com toda a probabilidade, esse conjunto de gregos compunha-se de prosélitos, ou seja, de gentios em vias de conversão ao judaísmo. Movidos por bom espírito a seguir a religião revelada, haviam adquirido os costumes da Antiga Aliança e decidido subir a Jerusalém por ocasião da solenidade. Sem o saber, eles seriam testemunhas da Páscoa mais importante da História, a verdadeira Páscoa do Senhor.

Assim eram premiados aqueles que tinham abandonado a ignorância politeísta para abraçar a religião do Deus vivo. Ao subir para adorar o Senhor, depararam-se com Alguém que valia muito mais que o Templo e que estava prestes a realizar seu sacrifício como Sumo Sacerdote dos tempos novos, oferecendo-Se a Si mesmo como Vítima de propiciação pelos pecados, não apenas do povo eleito, mas de toda a humanidade.

Humildade e amor

21 Aproximaram-se de Filipe, que era de Betsaida da Galileia, e disseram: “Senhor, gostaríamos de ver Jesus”. 22 Filipe combinou com André, e os dois foram falar com Jesus.

É interessante notar a atitude dos gregos de não procurarem diretamente o Senhor, mas mediante um dos Apóstolos. Por sua vez, Filipe, a quem haviam interpelado, age de forma semelhante tratando com André, o irmão de Simão Pedro, o melhor modo de transmitir ao Mestre o pedido daqueles prosélitos.

Quando desprovido de humildade, o amor perde sua chama, pois o orgulho torna o homem importuno e mal-educado. Nestes versículos, ao contrário, vemos a harmoniosa conjunção da caridade com o temor reverencial. Os gregos não se dirigem ao Mestre, mas ao discípulo, e este último vai até o Senhor na companhia de alguém mais representativo, propiciando, além do provável encontro omitido pelo Evangelista, um dos discursos mais profundos e belos de Jesus. Com razão afirma São Paulo: “A caridade não é orgulhosa. Não é arrogante. Nem escandalosa” (I Cor 13, 4-5).

A hora da glória

23 Jesus respondeu-lhes: “Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado”.

Santo Agostinho2 afirma que a glória é o conhecimento claro com louvor. Quando algo bom se manifesta de forma patente e causa a exclamação entusiasta de quem admira, então tem-se a glória. Em consequência, afirmar que havia chegado a hora em que o Filho do Homem seria glorificado significava principalmente que o segredo da divindade de Cristo, revelado apenas aos discípulos, tornar-se-ia acessível à multidão.

Chama a atenção que essa “hora” seja a da Cruz e, portanto, do auge da humilhação e do desprezo. Como seria possível manifestar a glória divina em meio ao fracasso? Entretanto, assim foi. Narra São Mateus que, vendo o sucedido no instante da Morte do Senhor, “o centurião e seus homens que montavam guarda a Jesus, diante do estremecimento da terra e de tudo o que se passava, disseram entre si, possuídos de grande temor: Verdadeiramente, este Homem era Filho de Deus!” (Mt 27, 54).

“Lamentação”, por Giotto di Bondoni – Cappella degli Scrovegni, Pádua (Itália)

Os gregos desejavam ver Jesus, mas foi somente após a Paixão, ao contemplarem as pompas fúnebres com que o Padre Eterno, por meio do abalo dos elementos, solenizava a Morte de seu Filho, que alguns pagãos abriram os olhos para o resplendor da divindade até então escondida. De modo admirável e surpreendente, o sangrento mistério do Gólgota tornou-se, de fato, a hora da glória do Filho Encarnado.

Jesus é a divina semente

24 “Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto”.

Nosso Senhor explica aos discípulos a importância de dar a própria vida pela causa de Deus. Ele o fará sobre a Cruz, e cada um de seus seguidores deverá fazê-lo à sua vez, segundo o desígnio da Providência. A morte perde assim sua marca trágica e se transforma em causa de esperança, graças ao martírio sofrido por Cristo.

Ele Se apresenta aos seus como a semente destinada a dar fruto: se não morresse, não se alcançariam os efeitos da Redenção e sua glória não seria manifestada às nações

São Tomás3 comenta que Nosso Senhor Se apresenta aos seus como a semente destinada a dar fruto: se Ele não morresse, não se alcançariam os efeitos da Redenção. Entre estes, o Angélico enumera três: a remissão dos pecados – “Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados, o Justo pelos injustos, para nos conduzir a Deus” (I Pd 3, 18); a conversão dos gentios – “Quando for elevado da terra, atrairei todos a Mim” (Jo 12, 32); e a abertura das portas do Céu, o acesso à glória por parte da humanidade regenerada pela força de seu Sangue – “Irmãos, temos ampla confiança de poder entrar no santuário eterno, em virtude do Sangue de Jesus, pelo caminho novo e vivo que nos abriu através do véu, isto é, o caminho de seu próprio Corpo” (Hb 10, 19-20).

Perder a vida para conservá-la?

25 “Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem faz pouca conta de sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna”.

Eis um princípio que apavora os homens carnais e medíocres: é necessário morrer para conservar a vida. Além de parecer contraditório, ele exige o máximo sacrifício a fim de alcançar a eternidade feliz, o que causa incomodidade e tédio aos que vivem como brutos, com as vistas voltadas para a terra. Aqueles que aspiram as coisas do Céu, ao contrário, ouvem a máxima de Nosso Senhor como uma clarinada divina que os enche de esperança e ardor.

Eis um princípio que apavora os homens carnais e medíocres: é necessário morrer para o mundo e seus prazeres, a fim de conservar a vida eterna e ganhar o Céu

Ele mesmo poria em prática esse ensinamento, enfrentando a Morte ignominiosa para conquistar o triunfo da Ressurreição, como lembra São Paulo: “Corramos com perseverança ao combate proposto, com o olhar fixo no autor e consumador de nossa fé, Jesus. Em vez de gozo que se Lhe oferecera, Ele suportou a Cruz e está sentado à direita do trono de Deus” (Hb 12, 1-2).

Mas qual vida se perde e qual se ganha? Perde-se a vida temporal, ganha-se a eterna. Abandonam-se os deleites passageiros ligados à boa fama, à comodidade, à segurança e aos ilícitos prazeres opostos à virtude angélica, para abraçar uma vida austera, marcada pela luta e pela perseguição, que implica, de certo modo, em morrer para o mundo mesmo permanecendo nele. Para os que abraçam esse gênero de morte, está reservada a verdadeira vida: o Céu. Por sua vez, os apegados aos regalos de uma existência voluptuosa perderão a alma para sempre nas profundezas terríveis e sinistras do inferno.

Não há honra maior

26 “Se alguém Me quer servir, siga-Me, e onde Eu estou estará também o meu servo. Se alguém Me serve, meu Pai o honrará”.

Os discípulos devem entender o serviço ao Mestre como um seguimento. No Evangelho seguir significa imitar e, por isso, é preciso que cada um dos fiéis se proponha a ir ao encalço do Senhor até o cume do próprio Calvário, tendo entregado tudo. Quem assim agir será honrado por Deus, como explica São Tomás: “O Pai diz: ‘Eu honro aqueles que Me honram’ (I Sm 2, 30). Portanto, aquele que serve Jesus, buscando não seus próprios interesses, mas os de Jesus Cristo, será honrado pelo Pai de Jesus”.4

Quantos se afanam levando a cabo sacrifícios notáveis para ganhar os aplausos dos homens, que terminam revelando-se efêmeros e inconsistentes. Não vale muito mais a pena lutar para conquistar as honras do bom Pai do Céu? Estas nos encherão de uma felicidade sem jaça por toda a eternidade! Cada uma faça a sua escolha.

A sublime e trágica hora de Jesus

27 “Agora sinto-Me angustiado. E que direi? ‘Pai, livra-Me desta hora!’? Mas foi precisamente para esta hora que Eu vim”.

Nosso Senhor manifesta aos discípulos sua angústia, quiçá esperando deles alguma consolação. Sua hora será ao mesmo tempo sublime e trágica.

Sublime porque nela se evidenciará o amor de Deus pelos homens. Suspenso na Cruz e coberto de chagas, Jesus mostrará ao gênero humano até que extremo de radicalidade chega a caridade d’Ele e do Pai para com os pecadores.

Mas a hora de Jesus será também trágica, porque justamente isso se dará em meio a um oceano de padecimentos terríveis. Sem dor não há verdadeiro amor neste vale de lágrimas. O sacrifício de si mesmo levado até o último limite é a única prova de um amor desinteressado e santo.

A Cruz e a glória

28 “Pai, glorifica o teu Nome!” Então, veio uma voz do Céu: “Eu O glorifiquei e O glorificarei de novo!”

A súplica de Jesus é como um brado de guerra. Ante a perspectiva dramática da Paixão que se aproxima, seu espírito não se deixa dominar pelo medo; antes, cheio de santa coragem, pede ao Pai que realize a obra da Redenção com tudo quanto ela encerra de sangrento e humilhante. E nisso, justamente nisso, consiste a glória do Pai. Nas chagas, nos desprezos e na morte, o Nome do Pai, que é o Verbo Eterno, manifestar-Se-á de forma refulgente por meio da humanidade desfigurada do Senhor.

Chama a atenção a resposta do Pai, pois ela manifesta o relacionamento das Três Pessoas da Trindade antes e depois da Encarnação. O Pai, gerando o Filho e amando-O com dileção eterna no Espírito Santo, glorificou seu Verbo cercando-O de afeição infinita. Também na Cruz, em meio ao aparente abandono e ao aniquilamento, o Pai cumulará Jesus de afeição no Paráclito, por sua entrega sem limites e sua piedade filial.

Se desejamos ser amados por Deus, já conhecemos o caminho: peçamos força para percorrer a via da dor até o extremo, e então teremos vencido e conquistado a coroa imarcescível da glória.

Nem todos distinguem a voz do Pai

29 A multidão que aí estava e ouviu, dizia que tinha sido um trovão. Outros afirmavam: “Foi um Anjo que falou com Ele”. 30 Jesus respondeu e disse: “Essa voz que ouvistes não foi por causa de Mim, mas por causa de vós”.

A multidão não distingue com nitidez a voz do Pai, pois seus ouvidos interiores não estão prontos para captar a tessitura divina, senão em seus acidentes. Alguns ouvem um som como de trovão, que indica a grandeza imponente e ameaçadora de Deus, especialmente sugestiva para aqueles que não vivem em conformidade com suas leis. Outros percebem tratar-se de uma comunicação sobrenatural, mas a atribuem a um Anjo. Não conseguem intuir a divindade de Jesus, considerando-O menos do que na realidade era: um grande profeta na melhor das hipóteses, jamais o Filho do Altíssimo.

“Crucifixão”, por Fra Angélico – Metropolitan Museum of Art, Nova York

Contudo, a voz do Pai se faz ouvir por eles, para salvá-los. Peçamos a graça de ter nossos ouvidos interiores sempre abertos às sugestões divinas, que não cessam de bater à nossa porta com o intuito de guiar-nos à verdade completa.

A Cruz julga, derrota, atrai, triunfa

31 “É agora o julgamento deste mundo. Agora o chefe deste mundo vai ser expulso, 32 e Eu, quando for elevado da terra, atrairei todos a Mim”.
33 Jesus falava assim para indicar de que morte iria morrer.

Fazendo referência ao tipo de morte que Lhe caberia por determinação do Pai, Jesus anunciou o julgamento do mundo. O que isso significa? Sendo a mais refulgente manifestação do amor, a Cruz se tornaria o parâmetro da radicalidade exigida aos homens no cumprimento dos dois mandamentos que resumem toda a Lei. Já não se poderia amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo sem abraçar a dor e o sofrimento, com entusiasmo análogo ao de Jesus ao carregar o Madeiro Sagrado e deixar-Se nele pregar. Quem amasse a Cruz seria considerado justo, quem a odiasse compraria sua própria condenação.

Sendo a mais refulgente manifestação do amor, a Cruz se tornaria o parâmetro da radicalidade exigida aos homens no cumprimento dos dois mandamentos que resumem toda a Lei

A Cruz também manifesta a derrota do demônio, príncipe deste mundo. Nela o Filho de Deus Se humilhou, fazendo-Se obediente até a morte. Com sua perfeitíssima submissão tingida de sangue, Nosso Senhor reparou o pecado de nossos primeiros pais e destruiu o império do impostor por excelência, que é Satanás. A partir de então, quem se abraçasse à Cruz com fé e determinação jamais poderia ser vencido; ao contrário, esmagaria e calcaria aos pés o infernal inimigo.

Por fim o Evangelista menciona a beleza fascinante da Divina Vítima pregada na Cruz, capaz de atrair todos a Si. A força de atração do amor é incalculável, e não houve, não há, nem haverá um amor tão extremado, tão generoso, tão heroico quanto o do Cordeiro Imolado. Como então tantos homens o rejeitam? Eis o mistério da iniquidade: quem pode entender o pecado? (cf. Sl 18, 13).

Amar é coisa séria e exige renúncia e dadivosidade, mas nem todos querem pagar esse tributo, preferindo permanecer comodamente instalados nos exíguos muros do egoísmo

Amar é coisa séria e exige renúncia e dadivosidade. Nem todos querem pagar esse tributo, preferindo permanecer comodamente instalados nos exíguos muros do egoísmo. Ai daqueles que rejeitam o amor do Crucificado, a nós mostrado de forma patente! Ai dos que não querem imitá-Lo no amor a Deus e a seus irmãos! Era melhor que não tivessem nascido, como foi dito a Judas, o traidor (cf. Mt 26, 24). Bem-aventurados, porém, os que amam a Cruz, pois triunfarão com Jesus por todo o sempre!

III – A glória de sofrer com espírito sobrenatural

Em boa medida, nossa existência neste mundo consiste em padecer. A Cruz constituiu, sem dúvida, um desafio de proporções gigantescas para o próprio Jesus, mas Ele o enfrentou com a coragem do mais audaz dos guerreiros, confiado no amor do Pai. Imitemos nosso Salvador.

Imitemos nosso Salvador, que enfrentou padecimentos de proporções gigantescas com a coragem do mais audaz dos guerreiros, confiado no amor do Pai

Ele é nosso modelo, nosso guia, o caminho traçado por Deus para que alcancemos o Céu. É também nossa força invencível, nosso companheiro inseparável. Ninguém carrega sua cruz sozinho, pois Jesus Se faz nosso Divino Cireneu.

Confiemos, pois, em seu auxílio e no de sua Mãe Santíssima, Corredentora do gênero humano, que com Ele nos salvou dos nossos pecados. ◊

 

A verdadeira glória só nasce da dor

Plinio Corrêa de Oliveira

Ao longe, uma multidão assiste – com o habitual enlevo, é natural – a um desfile dos granadeiros da rainha em seu uniforme de gala.

De há muito, a tática militar tornou inúteis fardamentos como este: calças pretas, dólmãs vermelhos com cinturão e ornatos brancos, luvas brancas, grande gorro de pele. Mas ele se conserva para efeitos morais: manter a tradição do exército e fazer sentir ao povo o esplendor da vida militar.

A glória, com efeito, deve exprimir-se por símbolos. Deles Se serve Deus para manifestar aos homens a sua própria grandeza. E nisto, como no mais, devemos imitar a Deus. Ora, o uniforme dos granadeiros, sua marcha impecavelmente cadenciada e alinhada, a ufania com que o porta-bandeira conduz o pendão nacional e o baliza indica o rumo da marcha, o rufar dos tambores e o toque dos clarins, tudo em uma palavra, exprime a beleza moral inerente à vida militar: elevação de sentimentos, abnegação até o sangue, força de empreender, arriscar e vencer, disciplina, gravidade, heroísmo enfim.

“Trooping the Colour” no ano de 2018

Há glória, e verdadeira glória, a brilhar em todo este ambiente.

Mas, afinal, a glória é isto? Consiste em vestir um uniforme anacrônico, executar manobras que já não têm nenhuma correspondência real com a batalha moderna, tocar tambores e clarins, e pisar firme no chão para adquirir para si e dar aos outros a impressão de que se é herói? Em avançar “corajosamente” num campo sem obstáculos nem riscos, como quem vai de encontro a um inimigo que não está presente, e ganhar por prêmio os aplausos inebriantes da multidão? Isto é glória? Ou é teatro, representação, opereta?

Temos em nosso segundo clichê a outra face da glória militar. Imerso inteiramente na tragédia da luta armada, este jovem soldado da guerra da Coreia parece não ter idade definida. Da mocidade tem ele a robustez. Mas o viço, o brilho, a louçania sumiram. Sua pele, curtida por dias intérminos de sol, noites inteiras de vento e tempestade, parece ter tomado uma consistência não muito diversa do couro. No traje, nem a mais leve preocupação de elegância: tudo está disposto para agasalhar contra a rudeza do clima e permitir movimentos desembaraçados e ágeis, na lama, no mato, na escarpa dos morros, sob a ação implacável dos bombardeios.

A luta, a resistência e o avanço são os objetivos a que tudo neste homem está ordenado. Sua fisionomia de há muito não é iluminada por um sorriso, seu olhar parece imobilizado na vigilância contínua contra os homens e os elementos.

Soldado comentado por Dr. Plinio

Nele não há a preocupação dos grandes lances, nem dos gestos teatrais. Está voltado para as mil trivialidades da vida cotidiana autêntica das guerras. Não quer ele representar para si ou para os outros um grande papel. Quer a vitória de uma grande causa. É o que explica sua seriedade, sua dignidade e sua força de resistência.

Ele todo está penetrado até as últimas fibras por um grande cansaço e uma grande dor. Mas um cansaço menor do que a inflexível resistência de alma e corpo que o supera e vence. Uma dor conscientemente sentida, e aceita até seus últimos limites e consequências, por amor à causa por que ele está lutando.

Esta é a face dolorosa e talvez trágica da vida militar. Nisto é que está o mérito, daí é que nasce a glória.

Uniformes vistosos, armas luzentes, marchas cadenciadas, desfiles aparatosos, clarins, tambores, aplausos sem fim de uma assistência inebriada, tudo isto são exterioridades legítimas, necessárias até, na medida em que exprimem um desejo de lutar e de se sacrificar pelo bem comum. Mas tudo isto não passaria de opereta, se esta coragem não fosse autêntica e provada, como o é, aliás, pelos granadeiros da Rainha Elizabeth.

Considerações de ordem natural, é certo. Nelas podemos, porém, colher matéria para nos elevarmos a um campo mais alto.

A vida da Igreja e a vida espiritual de cada fiel são uma luta incessante. Deus dá por vezes à sua Esposa dias de uma grandeza esplêndida, visível, palpável. Ele dá às almas momentos de consolação interior ou exterior admiráveis.

Mas a verdadeira glória da Igreja e do fiel resulta do sofrimento e da luta.

Luta árida, sem beleza sensível, nem poesia definível. Luta em que se avança por vezes na noite do anonimato, na lama do desinteresse ou da incompreensão, sob as tempestades e o bombardeio desencadeado pelas forças conjugadas do demônio, do mundo e da carne. Mas luta que enche de admiração os Anjos do Céu e atrai as bênçãos de Deus. ◊

Extraído de: Catolicismo.
Campos dos Goytacazes. Ano VII.
N.78 (jun., 1957); p.7

 

 

Notas


1 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Ambientes, Costumes, Civilizações: A verdadeira glória só nasce da dor. In: Catolicismo. Campos dos Goytacazes. Ano VII. N.78 (jun., 1957); p.7.

2 Cf. SANTO AGOSTINHO. Contra Maximinum arianorum episcopum. L.II, c.13, n.2: PL 42, 770.

3 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Lectura super Ioannem, c.XII, lect.4.

4 Idem, ibidem.

 

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