Evangelho do XIII Domingo do Tempo Comum
51 “Estava chegando o tempo de Jesus ser levado para o Céu. Então Ele tomou a firme decisão de partir para Jerusalém 52 e enviou mensageiros à Sua frente. Estes puseram-se a caminho e entraram num povoado de samaritanos, para preparar hospedagem para Jesus. 53 Mas os samaritanos não O receberam, pois Jesus dava a impressão de que ia a Jerusalém. 54 Vendo isso, os discípulos Tiago e João disseram: ‘Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para destruí-los?’. 55 Jesus, porém, voltou-Se e repreendeu-os. 56 E partiram para outro povoado.
57 Enquanto estavam caminhando, alguém na estrada disse a Jesus: ‘Eu Te seguirei para onde quer que fores’. 58 Jesus lhe respondeu: ‘As raposas têm suas tocas e os pássaros têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça’. 59 Jesus disse a outro: ‘Segue-Me’. Este respondeu: ‘Deixa-me primeiro ir enterrar meu pai’. 60 Jesus respondeu: ‘Deixa que os mortos enterrem os seus mortos; mas tu, vai anunciar o Reino de Deus’. 61 Um outro ainda lhe disse: ‘Eu Te seguirei, Senhor, mas deixa-me primeiro despedir-me dos meus familiares’. 62 Jesus, porém, respondeu-lhe: ‘Quem põe a mão no arado e olha para trás, não está apto para o Reino de Deus’” (Lc 9, 51-62).
I – Jesus parte para Jerusalém
A passagem do Evangelho que a Igreja nos apresenta neste domingo assinala um importante marco na vida de Nosso Senhor.
Até esse momento, encontrava-Se Jesus percorrendo a Galileia, “fazendo o bem” (At 10, 38) em todos os lugares por onde Se deslocava. Duas vezes multiplicou os pães e realizou incontáveis outros milagres. Não deixou um só pedido sem ser atendido, uma alma arrependida sem ser perdoada. Tudo isso acarretou-Lhe uma fama extraordinária, da qual poderia tirar grande proveito.
Entretanto, assinala o padre Truyols, “a partir da segunda multiplicação e, até certo ponto, a partir do sermão do Pão da vida na sinagoga de Cafarnaum, levava uma vida mais retirada, ocupado particularmente em instruir Seus Apóstolos”.1 Foi nesse contexto que se deram os dois primeiros anúncios da Paixão e a Transfiguração no Monte Tabor (cf. Lc 9, 22-45).
Nos versículos hoje selecionados, Nosso Senhor enceta um longo percurso rumo à Judeia, que marcará o início do Seu retorno ao Pai. Desse momento em diante, todos os acontecimentos da vida do Divino Mestre transcorrem em outra clave.
Firmeza no cumprimento da vontade do Pai
51 “Estava chegando o tempo de Jesus ser levado para o Céu. Então Ele tomou a firme decisão de partir para Jerusalém”…
Jesus deixa a Galileia sabendo que essa seria Sua última viagem a Jerusalém, e caminha resoluto em direção à morte, conforme indicam as palavras deste versículo: “Tomou a firme decisão de partir”.2
Desde o primeiro instante de Sua existência terrena, Ele tinha bem presente que Sua missão culminaria na Cruz. Do alto dela, Cristo iria conquistar a vida eterna para nós, criaturas que Ele ama a ponto de querer tornar-nos Seus irmãos; e a Igreja, que já começara a fundar ao escolher os Doze Apóstolos e pregar o Reino dos Céus, será consolidada como centro da História, por todos os séculos.
Perante a perspectiva dos mais terríveis sofrimentos, Jesus não deixa transparecer, em circunstância alguma, a menor lamentação. Em Sua conduta, nada indica arrepio, repulsa ou inconformidade à vista do que está por suceder. Pelo contrário, como bem sublinha o Cardeal Gomá, “sabe Jesus que em Jerusalém O aguardam os tormentos e a morte; apesar disso, sobe para a festa com liberdade absoluta, com vontade decidida e impertérrita, pois sabe ser essa a vontade do Pai”.3
Visando dar-nos a propósito desta passagem uma bela lição moral, o mesmo comentarista acrescenta: “Esta deve ser a nossa disposição de espírito, tão logo se manifeste a vontade de Deus. A convicção da inteligência e a firme resolução da vontade são as forças propulsoras das grandes ações, e a explicação das vidas fecundas”.4
Jesus é a Ordem em substância
52 “… e enviou mensageiros à sua frente. Estes puseram-se a caminho e entraram num povoado de samaritanos, para preparar hospedagem para Jesus”.
Nosso Senhor é a Ordem em substância. Sem nunca Se deixar tomar pelos aspectos fragmentários ou inferiores dos problemas, tudo Ele organizava de forma perfeita nesta Terra, mas ao mesmo tempo fazia-o muito organicamente, respeitando os costumes do tempo e do local.
Numa época em que não existiam os eficientes meios de comunicação de hoje, era preciso mandar mensageiros a fim de providenciarem hospedagem para a grande comitiva que O acompanhava, composta pelos Apóstolos, discípulos, Santas Mulheres e talvez até alguns curiosos.
Das três principais vias que conduziam da Galileia a Jerusalém, Jesus havia optado pela mais curta, que atravessava o Vale de Jizreel e depois a Samaria. Foi num povoado desta região, provavelmente a atual Jenin, que os enviados entraram com o intuito de preparar a chegada do Divino Mestre.
Os samaritanos negam-Lhe acolhida
53 “Mas os samaritanos não O receberam, pois Jesus dava a impressão de que ia a Jerusalém”.
Os habitantes da Samaria adotavam uma atitude de hostilidade face aos judeus, porque havia entre uns e outros grandes divergências a respeito da Lei e dos costumes mosaicos. Um samaritano jamais iria oferecer sacrifícios em Jerusalém; fá-lo-ia sempre no templo erigido no Monte Gerizim, junto à atual Nablus.
Ao saberem que Jesus e Seus discípulos se dirigiam a Jerusalém, deduziram os habitantes daquela aldeia tratar-se de judeus que rumavam ao verdadeiro Templo para adorar a Deus, e resolveram não recebê-los. Fillion, citando Flávio Josefo, afirma que os samaritanos “experimentavam um prazer maligno em maltratar os peregrinos e em retardar e até mesmo impedir sua marcha, o quanto lhes fosse possível”.5 Naquela época, as convicções religiosas eram profundas e levavam com frequência a implacáveis ódios recíprocos.
Reação dos “filhos do trovão”
54 “Vendo isso, os discípulos Tiago e João disseram: ‘Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para destruí-los?’”.
A pergunta de Tiago e João revela, na acertada expressão de um autor francês, “um intemperante zelo”, mas comprova o quanto eles tinham fé na onipotência de Jesus.
Certamente estavam bem presentes na memória dos dois irmãos os episódios dos capitães de Acab sendo devorados pelo fogo do céu por ordem do Profeta Elias, cada qual junto com seus cinquenta soldados (cf. II Rs 1, 9-12); e o dos duzentos e cinquenta príncipes da assembleia, membros do conselho e homens notáveis, sob o comando de Coré, Datã e Abiron, recebendo igual castigo por terem se amotinado contra Moisés (cf. Nm 16, 2.35).
Estando cientes do poder recebido de Nosso Senhor, não surpreende o fato de os filhos de Zebedeu desejarem imitar a atitude do Legislador e do Profeta, os quais eles tinham visto, semanas antes, aparecer junto ao Mestre no Monte Tabor. Com efeito, o “que há de estranho no fato de os ‘filhos do trovão’ quererem lançar raios?”, pergunta-se Santo Ambrósio.6
Arrebatados por uma espécie de “fervor de noviços”, consideravam um dever de justiça fazer cair fogo sobre aquela cidade rebelde. Apontam nesse sentido os comentários de São Jerônimo, São Beda e Tito Bostrense, sintetizados por Maldonado: se os “filhos do trovão” desejaram se vingar, “não foi por sua honra, mas pela do próprio Cristo; e nisso certamente não houve culpa, mas apenas ignorância do espírito cristão e evangélico”.7
A repulsa e a ingratidão fazem parte da vida do missionário
55 “Jesus, porém, voltou-Se e repreendeu-os”.
Tendo sido formados segundo os costumes da Antiga Aliança, estavam os irmãos habituados à pena de talião e julgavam que todo ato de rejeição ao bem devia ser castigado sem demora. Ora, as perspectivas de Nosso Senhor eram outras: “Amai os vossos inimigos… Orai pelos que vos injuriam… Sede misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso” (Lc 6, 27-28.36), ensinara-lhes recentemente. Por isso os repreendeu.
A proposta de Tiago e João mostra quão longe estavam ainda os discípulos desse novo Mandamento. Faltava-lhes conhecer e assumir uma das mais dolorosas provações do missionário: a ingratidão, a repulsa e até a perseguição por parte daqueles a quem se quis fazer o bem.
Como observa o Crisóstomo, os Apóstolos “seriam os doutores do mundo e percorreriam as cidades e aldeias pregando a doutrina evangélica, e haveria de lhes ocorrer que alguns não recebessem a sagrada pregação, como se não permitissem que Jesus permanecesse com eles. Ensinou-lhes, pois, que quando anunciassem a celestial doutrina, deveriam estar cheios de paciência e mansidão, sem se mostrar hostis nem irascíveis, nem vingativos contra seus perseguidores”.8
Bem assinala, por sua vez, São Beda: “O Senhor repreendeu neles não o exemplo de um Profeta santo, mas a ignorância de querer vingar-se que havia neles, homens ainda rudes, fazendo-os ver que não desejavam a emenda por amor, mas a vingança por ódio”.9
Não devemos permanecer onde nosso apostolado não é bem aceito
56 “E partiram para outro povoado”.
Estas poucas palavras do Evangelista contêm um importante ensinamento. Durante a viagem, como vimos, estava Jesus formando os Seus discípulos nas lides do apostolado, e quis mostrar-lhes com o episódio anteriormente narrado que o missionário não deve perturbar-se, e menos ainda mostrar-se irritado, quando sua ação evangelizadora é recusada. Isso seria sintoma de amor-próprio, ou de apego às próprias atividades.
Pelo contrário, se acharmos em nosso caminho “aldeias de Samaria”, não queiramos castigá-la com “fogo do Céu” como o fizeram Tiago e João, mas também não percamos tempo onde nossa atividade apostólica é infrutífera.
II – Um pequeno tratado da vocação
Na segunda parte do Evangelho de hoje, as Sagradas Escrituras nos apresentam os casos de três homens desejosos de seguir Nosso Senhor Jesus Cristo, mas sem terem noção da integridade de entrega a ser feita. Esses três episódios podem ter ocorrido em lugares e ocasiões diferentes, como bem observa o padre Truyols, mas quiçá foram reunidos pelo Evangelista devido à sua semelhança. Com efeito, acrescenta esse exegeta, constituem eles, no seu conjunto, um pequeno tratado da vocação divina, isto é, “das condições requeridas para seguir a Cristo”.10
Um oferecimento com segundas intenções
57 “Enquanto estavam caminhando, alguém na estrada disse a Jesus: ‘Eu Te seguirei para onde quer que fores’”.
No primeiro caso, alguém manifesta a Nosso Senhor a disposição de segui-Lo a qualquer lugar e a todo custo. São Mateus aduz um detalhe omitido por São Lucas: era um escriba (Mt 8, 19). À primeira vista, parece tratar-se de uma alma generosa, desejosa de sempre estar com Jesus.
Fillion descreve esse personagem como sendo “entusiasmado, embora superficial e muito confiado em si mesmo”.11 Observa tratar-se de um homem que “fala a linguagem da emoção passageira e irrefletida, que despreza os obstáculos enquanto estão longe e, sem ter sido chamado, se oferece para enfrentá-los”.12
Penetrando mais a fundo a psicologia deste escriba, São Cirilo mostra não estar ele movido pelo desejo de ser discípulo, mas sim pela soberba: “Havia uma grande ignorância nessa pessoa que se aproximou, e ela era excessivamente presunçosa. Certamente não desejava ser de fato um seguidor de Cristo, como muitos outros judeus, mas queria, isto sim, ostentar as dignidades apostólicas”.13
Teofilato, por sua vez, chama a atenção para o seu espírito ganancioso: “Como via que o Senhor levava atrás de si muita afluência, esperava lucrar algo com isso e reunir algum dinheiro, se O seguisse”.14
Desapego e simplicidade no seguimento de Jesus
58a “Jesus lhe respondeu: ‘As raposas têm suas tocas e os pássaros têm ninhos’…”.
O Divino Mestre não se pronuncia sobre a proposta do escriba, nem o admite em Sua companhia. Abstraindo do caso concreto, responde com uma metáfora que deixa sentenciada para todo o sempre a radicalidade com a qual devem se entregar as almas chamadas às atividades missionárias.
As raposas preparam tocas, e os pássaros, ninhos, porque faz parte do instinto dos animais procurar um lugar onde se abrigar. Mas um verdadeiro apóstolo precisa estar totalmente devotado à missão de converter as almas, sem cuidar de suas próprias conveniências. Ocupar-se-ão outros de preparar-lhe o “ninho”, ou a “toca”. A entrega de quem deseja seguir a Cristo deve ser total, dando-se por inteiro, sem nada reservar para si.
Mas, qual a razão de Jesus escolher esses animais, e não outros, para ilustrar sua pregação?
Santo Ambrósio analisa os instintos da raposa, ser astuto e enganoso, e mostra como ela gosta de se ocultar em sua toca para poder surpreender as presas. É bem a imagem do herege, pois este procura encobrir seus erros sob as aparências de boa doutrina, a fim de desviar da verdade aqueles que a procuram.15
Quanto às aves, comenta São Cirilo de Alexandria: “Ele não falou de pássaros físicos e visíveis, mas de espíritos imundos e iníquos que com frequência caem sobre os corações dos homens, arrebatam a semente celeste e a levam longe, a fim de que não produzam fruto algum”.16
Nem nessas tocas, nem nesses ninhos pode o Filho do homem fazer sua morada, pois Ele é a Verdade e o Bem. Jesus jamais agirá como a raposa nem como as aves da metáfora. Pelo contrário, Ele convida com clareza ao Reino dos Céus e expõe com integridade sua doutrina, ainda que a radicalidade do seu chamado contunda quem não tem verdadeira vocação.
Analisada nessa perspectiva, a metáfora elaborada por Nosso Senhor adquire os traços de uma clara rejeição ao pretensioso pedido do escriba, ao qual Ele parece dizer: “As raposas têm esconderijos em seu coração: és um falaz. As aves do céu têm ninhos em seu coração: és um soberbo. Sendo mentiroso e soberbo, não podes seguir-Me. Como pode a falsidade seguir a Simplicidade?”.17
Pensamentos elevados à Jerusalém Celeste
58b “…‘mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça’”.
A expressão “repousar a cabeça” pode ser interpretada aqui como uma alusão ao instinto de sociabilidade, pois o homem descansa ao encontrar alguém com quem possa se abrir e compartilhar suas preocupações e receios. Assim, nesta passagem o Divino Mestre estaria alertando a quem assume as vias do apostolado — ou começa a praticar com integridade as exigências da Fé — para os riscos de, em determinado momento, se sentir só, sem ter quem o auxilie e console. Até mesmo a esse gênero de entrega deve estar disposto todo aquele que almeja ser verdadeiro missionário, a exemplo de Jesus.
Mas essas palavras do Messias também podem ser explicadas no sentido de estarem seus pensamentos nesta terra continuamente elevados para a Jerusalém Celeste. Ensina-nos, assim, que o coração do missionário tem de estar posto por inteiro no plano sobrenatural, evitando “apoiar a cabeça” no simbólico “travesseiro” dos assuntos terrenos.
Uma obrigação moral exigida pela Lei
59 “Jesus disse a outro: ‘Segue-Me’. Este respondeu: ‘Deixa-me primeiro ir enterrar meu pai’”.
Neste segundo episódio, é Jesus quem toma a iniciativa. Ao pousar o olhar sobre um dos que O acompanham, discerne nele o sinal da vocação lhe diz com suavidade toda divina: “Segue-Me”. Isto é, “abandona tudo, deixa para trás o que tens e vem após Mim”.
Vê-se, pelo desenrolar da narração, que as palavras de Jesus penetraram a fundo no espírito daquele homem. Ora, seu pai havia falecido — ou, segundo alguns comentaristas, estava para morrer — e, antes de começar sua vida de missionário, queria ele resolver todos os problemas de família, a fim de poder mais livremente seguir Nosso Senhor.
O pedido não podia ser mais legítimo e razoável. Acaso não manda o Decálogo honrar pai e mãe? Além disto, o sepultamento do progenitor falecido era uma obrigação imposta pela Lei judaica.
Acima do amor ao pai, deve estar o amor a Deus
60 “Jesus respondeu: ‘Deixa que os mortos enterrem os seus mortos; mas tu, vai anunciar o Reino de Deus’”.
Jesus, entretanto, rejeita o pedido de seu discípulo, utilizando para isto uma expressão enigmática que não pode ser entendida em sentido literal. Com efeito, pergunta-se Santo Ambrósio: “Como podem, porém, os mortos enterrar os mortos se não se entender aqui duas mortes: uma da natureza e outra do pecado?”.18
Das palavras do Divino Mestre, Crisóstomo deduz que o pai havia falecido na infidelidade, isto é fora do amor a Deus e da prática da Lei.Ademais, certamente “havia outros que podiam cumprir essa obrigação, o pai não ficaria por isso sem sepultura”.19
Contudo, a resposta do Divino Mestre àquele discípulo ultrapassa de longe a situação concreta e permanece como uma valiosa lição para todos quantos foram, são e serão chamados a segui-Lo ao longo da História. “Quando Nosso Senhor Jesus Cristo destina os homens à pregação do Evangelho, não quer que se interponha desculpa alguma de piedade carnal ou temporal”, afirma Santo Agostinho.20
Lembremo-nos, nesse sentido, do ensinamento de Santo Ambrósio: “A piedade para com Deus deve estar acima do amor aos pais, aos quais reverenciamos porque nos geraram. Mas Deus nos deu o ser quando ainda não existíamos, enquanto nossos pais foram apenas os Seus instrumentos para nossa entrada na vida”.21Quando alguém ouve a voz de Jesus: “Vem e segue-Me”, deve considerar como “mundo dos mortos” tudo quanto ficou para trás e não mais se interessar pelos assuntos que antes lhe preocupavam. E isto de uma forma radical, pois “quem deseja fazer-se discípulo do Senhor deve recusar as obrigações humanas, inclusive quando pareçam razoáveis, se por causa delas se protela, mesmo em ponto mínimo, a obediência devida a Deus”.22
Além do desapego total dos bens temporais e de um coração elevado à Jerusalém Celeste, Jesus exige do apóstolo a ruptura completa de todos os laços que o vinculavam ao mundo.
Não voltar o olhar para o que abandonamos
61 “Um outro ainda Lhe disse: ‘Eu Te seguirei, Senhor, mas deixa-me primeiro despedir-me dos meus familiares’. 62 Jesus, porém, respondeu-lhe: ‘Quem põe a mão no arado e olha para trás, não está apto para o Reino de Deus’”.
Nosso Senhor serve-Se, neste terceiro episódio, de uma imagem extraordinariamente significativa naquela época. Um sulco sinuoso na terra dificulta tanto a semeadura quanto a colheita. Era preciso, portanto, aplicar muita atenção para traçar uma linha reta com o arado. Por isso, o agricultor não podia ficar olhando para trás.
Da mesma maneira deve proceder quem lavra e semeia nesta terra pretendendo colher frutos na eternidade: tem de estar com os olhos sempre postos no seu fim sobrenatural, sem desviá-los por nenhum motivo. O missionário precisa renunciar completamente aos laços que antes o prendiam ao pecado ou à tibieza e jamais olhar para trás, a fim de que, segundo adverte São Cipriano de Cartago “não nos aconteça de voltarmos ao demônio e ao mundo, aos quais renunciamos e dos quais nos libertamos”.23 Pois, na expressão de São Nilo, “os repetidos olhares para aquilo que deixamos nos fazem voltar ao costume abandonado”.24
III – O segredo da verdadeira felicidade
A Liturgia de hoje aplica-se com mais propriedade às almas consagradas, convidadas pelo Divino Redentor a tudo abandonar para segui-Lo. Mas os mesmos princípios, de radicalidade na entrega e devotamento íntegro aos encargos inerentes ao próprio estado de vida, são aplicáveis a todos os batizados, quer os escolhidos para o sacerdócio ou a vida religiosa, quer os chamados a constituir família e exercer uma profissão.
Em qualquer desses casos, todos nós ouvimos em determinado momento, uma voz interior a nos dizer, com tom aveludado, mas imperioso: “Segue-Me”. Se aceitamos o divino convite, ficaremos, a partir desse instante, amorosamente “confiscados” por Jesus. Pois nossa vida Lhe pertence e nossa entrega a Ele deve ser total.
O demônio, criatura abjeta e invejosa da recompensa que nos está prometida, muitas vezes se vê incapaz de demover as almas eleitas do caminho da santidade. Neste caso, ele as tenta a praticar a virtude com moleza e a voltar frequentemente as vistas para trás, procurando incutir nessas almas a ilusão de que, assim procedendo, para elas o fardo se tornará mais ligeiro e o sofrimento, menor.
Ora, Nosso Senhor não tolera a tibieza em seus seguidores. Quem vive em função do próprio interesse, ou executa mal os labores na vinha do Senhor, jamais conseguirá ser feliz. Nesta terra, a verdadeira alegria está somente ao alcance daqueles que se dedicam por inteiro ao cumprimento da própria missão.
Ao longo do caminho traçado pela Providência para cada um de nós, todos nos depararemos com alegrias e consolações, mas também com momentos de tristeza e desolação, contingência inevitável neste vale de lágrimas. Não estranhemos quando eles cheguem e, nessas horas de sofrimento, esforcemo-nos especialmente em não olhar para trás, pois nas vias do discípulo de Jesus, leve é o fardo de quem tudo entregou, e pesado o daquele que optou pelas concessões e meios-termos.
Se em determinada situação o peso das nossas obrigações nos fizer cambalear, voltemos confiantes os olhos para Nossa Senhora, na certeza de que Ela nos protegerá e consolará. E quando chegar, por fim, o dia de ingressarmos nas delícias eternas do Céu, compreenderemos o quanto Ela e Seu Divino Filho estão sempre ao lado de quem dedica sua vida a segui-Los de todo o coração.◊
Notas
1 FERNÁNDEZ TRUYOLS, SJ, Andrés. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. 2.ed. Madrid: BAC, 1954. p.388.
2 Para sublinhar a grande determinação de ânimo de Nosso Senhor, a Vulgata serve-se da expressão “et ipse faciem suam firmavit — e Ele firmou o seu rosto”. Trata-se de um hebraísmo que, segundo Maldonado, “alude metaforicamente ao que o touro costuma fazer quando investe decidido contra alguém, como que encolhendo a cabeça para aumentar a firmeza” (MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los cuatro Evangelios – II. Evangelios de San Marcos y San Lucas. Madrid: BAC, 1956, p.523).
3 GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Casulleras, 1930, v.III, p.114.
4 Idem, ibidem.
5 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Vida pública. Madrid: Rialp, s/d., v.II, p.317.
6 SAN AMBROSIO, Exposit. in Luc., apud MALDONADO, SJ, op. cit., p.528.
7 MALDONADO, SJ, op. cit., p.528.
8 SAN JUAN CRISÓSTOMO, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea, v.IV,
9 SAN BEDA, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea, v.IV.
10 Cf. TRUYOLS, op. cit., p.390-391.
11 FILLION, op. cit., p.319.
12 Idem, ibidem.
13 SAN CIRILO DE ALEJANDRIA. Comentario al Evangelio de Lucas, 57, apud ODEN, Thomas C. e JUST Jr., Arthur A. La Biblia comentada por los Padres de la Iglesia – Nuevo Testamento, San Lucas. Madrid: Ciudad Nueva, 2000, v.III, p.242.
14 TEOFILATO, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea, v.IV.
15 Cf. SAN AMBROSIO, op. cit., p.528.
16 SAN CIRILO DE ALEJANDRIA, Comentario al Evangelio de Lucas, apud ODEN e JUST Jr., op. cit., p.242.
17 SAN AGUSTÍN. Comentarios de San Agustín a las lecturas litúrgicas. Valladolid: Estudio Agustiniano, 1985, p.1015.
18 SAN AMBROSIO, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea, v.IV.
19 Cf. SAN JUAN CRISÓSTOMO. Obras de San Juan Crisóstomo. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo (1-45). Madrid: BAC, 2007, p.561.
20 SAN AGUSTÍN, op. cit., p.1015.
21 SAN AMBROSIO, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea, v.IV.
22 SAN BASILIO DE CESAREA, Sobre el bautismo, 1, 4, apud ODEN e JUST Jr., op. cit., p.242-243.
23 SAN CIPRIANO DE CARTAGO, Exhortación al martirio, dirigido a Fortunato, 7, apud ODEN e JUST Jr., op. cit., p.243.
24 SAN NILO, EL MONJE, apud SANTO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea, v.IV.