Evangelho do I Domingo da Quaresma
Naquele tempo, 1 Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, Ele era guiado pelo Espírito. 2 Ali foi tentado pelo diabo durante quarenta dias. Não comeu nada naqueles dias e, depois disso, sentiu fome. 3 O diabo disse, então, a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão”. 4 Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem’”.
5 O diabo levou Jesus para o alto, mostrou-Lhe por um instante todos os reinos do mundo 6 e Lhe disse: “Eu Te darei todo este poder e toda a sua glória, porque tudo isto foi entregue a mim e posso dá-lo a quem eu quiser. 7 Portanto, se Te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu”.
8 Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás’”.
9 Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-O sobre a parte mais alta do Templo e Lhe disse: “Se és Filho de Deus, atira-Te daqui abaixo! 10 Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus Anjos a teu respeito, que Te guardem com cuidado!’ 11 E mais ainda: ‘Eles Te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’”.
12 Jesus, porém, respondeu: “A Escritura diz: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’”.
13 Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno (Lc 4, 1-13).
I – Misteriosos paradoxos na vida do Salvador
A vida de Nosso Senhor Jesus Cristo está cheia de misteriosos contrastes. Sendo Ele o próprio Deus, Criador de todo o universo, escolheu para Si a mais bela, a mais pura, a mais perfeita das mães, Maria Santíssima; entretanto, quis nascer numa pobre e insignificante gruta e ter por berço a manjedoura na qual os animais tomavam alimento.
À sua entrada neste mundo, os Céus se manifestaram de maneira portentosa, por meio dos Anjos que apareceram cantando: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14 Vulg.). Contudo, os habitantes de Belém recusaram pousada aos pais do Salvador, alheando-se de tal maravilha. Dos arredores da cidade de Davi, apenas os pastores acorreram ao presépio para adorá-Lo.
Mais tarde, o Menino Jesus foi homenageado pelos Magos provenientes de regiões longínquas, de quem recebeu ricos presentes. Mas pouco depois Ele teve de fugir para o Egito, porque Herodes queria matá-Lo… Quando pôde, afinal, voltar a Israel, estabeleceu-Se na pequena Nazaré, onde passou trinta anos no convívio privado com Nossa Senhora e São José.
Já adulto, ao ser batizado no Jordão os Céus novamente O exaltaram, quando João viu descer sobre Ele o Espírito em forma de pomba e ouviu-se a voz do Pai: “Tu és o meu Filho muito amado; em Ti ponho minha afeição” (Mc 1, 11). Após esse momento de glória, que aos olhos humanos pareceria ideal para inaugurar uma missão pública, o Divino Mestre, pelo contrário, dirigiu-Se sozinho ao deserto, permanecendo ali quarenta dias.
Seu retiro no ermo nos ensina divinas lições de combate ao mal, bem como nos convida a meditar nas graças que Jesus então comprou para nós, com vistas à nossa perseverança. A Liturgia de hoje constitui uma ótima oportunidade para aprofundarmos nesse atraente aspecto da vida do Redentor, pois a Quaresma é tempo não só de penitência, mas também de recordar, com gratidão, os benefícios que d’Ele recebemos.
II – Quarenta dias no deserto, por amor a nós
São Lucas, ao concluir o segundo capítulo de seu Evangelho, sintetiza numa só frase o período decorrido desde a discussão de Nosso Senhor com os doutores da Lei no Templo, quando Ele contava doze anos, até o momento do Batismo: “E Jesus crescia em estatura, em sabedoria e graça, diante de Deus e dos homens” (Lc 2, 52).
No episódio contemplado neste 1º Domingo da Quaresma, encontramos o Salvador na plenitude da idade, com “cerca de trinta anos” (Lc 3, 23); portanto, com o físico e as faculdades intelectuais desenvolvidas e, em sua natureza humana, num relacionamento com o Espírito Santo ainda mais intenso do que quando Menino. Valendo-Se da liberdade inerente à mesma natureza, durante aquelas três décadas Ele fora adequando seus gestos, atitudes, palavras e pensamentos à visão beatífica, na qual sempre estivera sua Alma, de maneira que a divindade resplandecia cada vez mais no seu Corpo, e este se tornava cada vez mais capaz de refletir a Deus.
Decerto Ele pressentia as ocasiões de grande comoção que se dariam com a difusão da Boa-Nova em Israel, quando passaria fazendo “o bem e curando todos os oprimidos do demônio” (At 10, 38) através de pregações, milagres e conselhos. Embora o recolhimento fosse o estado habitual no lar da Sagrada Família, onde os afazeres não absorviam as atenções em detrimento do sobrenatural, por amor a nós Jesus preferiu deixar sua Santíssima Mãe, ausentando-Se da tranquila e elevada morada de Nazaré, para mergulhar no silêncio e na solidão do deserto.
Docilidade extraordinária, amor supremo
Naquele tempo, 1 Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, Ele era guiado pelo Espírito.
O deserto da Judeia, além do aspecto desolador próprio às zonas áridas, possui uma paisagem acidentada, naquela época solitária, onde se veem montes, colinas e vales profundos, com numerosas reentrâncias nas quais se refugiavam serpentes, hienas e leões, entre outros animais selvagens. Como sói acontecer nessas regiões, a temperatura cai de maneira acentuada à noite, e Nosso Senhor padeceu sucessivamente longas horas de frio e jornadas de calor abrasado. Quiçá também a chuva O tenha molestado nesse período, embora seja um fenômeno raro ali.
Ao longo de quase seis semanas, o Salvador deslocou-Se por aquelas paragens arenosas, ora detendo-Se junto a um rochedo, ora sentando-Se numa pedra, ora colocando-Se de joelhos e erguendo os braços em oração, com o olhar voltado para o Céu; sem dúvida sempre solene, grave, em contínua contemplação.
É interessante observar o termo empregado pelo Evangelista ao indicar a ação do Paráclito junto a Jesus: “era guiado pelo Espírito”. Não na qualidade de Verbo Eterno, mas enquanto Homem, Ele deixou-Se levar com docilidade extraordinária e amor supremo, mostrando-nos qual deve ser nossa atitude como discípulos seus. Assim, a consideração deste primeiro versículo nos sugere uma prece: “Ó Divino Espírito Santo, guiai nossas almas! Quebrai, se necessário for, todas as nossas resistências interiores. Tornai-nos atentos, amorosos, fiéis, entusiasmados. Conduzi-nos, como a Jesus, a uma perfeição cada vez mais divina!”
A tentação não é sintoma de crise espiritual
2 Ali foi tentado pelo diabo durante quarenta dias. Não comeu nada naqueles dias e, depois disso, sentiu fome.
Por um equívoco frequente, fica-nos a ideia de que a ação do demônio nessa passagem da vida de Nosso Senhor limitou-se às três sugestões descritas pelos Evangelistas. O texto de São Lucas, porém, nos revela algo bem diferente, e nele se apoiam os exegetas para afirmar que o Redentor esteve à mercê de constantes assaltos diabólicos “durante quarenta dias”, dos quais a tríplice tentação constituiu o desfecho.
Arquétipo em matéria de penitência, Jesus fez um jejum absoluto, como nem sequer São João Batista ousara no seu admirável rigor. Decerto foi sustentado por um milagre que O impediu de desfalecer pela falta de alimento, mas que não Lhe aliviou os sofrimentos da fome. Importante lição para nós, sobretudo nestes tempos em que a ascese parece ter desaparecido da face da terra. A mortificação, além de reavivar a lembrança do pecado original e das faltas pessoais, chamando nossa atenção para a gravidade de nossos atos, tempera a vontade, equilibra as paixões, desprende a alma das coisas do mundo, excita-lhe o fervor e dissipa a tibieza.
O espírito assim disciplinado está preparado não só para os grandes voos na oração, como também para vencer o príncipe das trevas, o qual ataca especialmente quem avança no caminho da santidade. Eis um dos aspectos fundamentais dessa passagem: ensinar-nos que a tentação é algo normal e não significa crise ou decadência espiritual; pelo contrário, muitas vezes indica excelentes progressos alcançados pela alma, como ocorreu com o próprio Cristo, contra quem o diabo voltou à carga mesmo após quarenta dias de investidas fracassadas.
Nosso Senhor trata o demônio com desprezo
3 O diabo disse, então, a Jesus: “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão”. 4 Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem’”.
Satanás, com a perspicácia inerente à sua natureza angélica, já havia notado em Jesus uma força extraordinária. Desconfiado de que fosse o Messias, mas não ciente de ser Ele o próprio Deus, quis testar-Lhe o poder a fim de descobrir sua identidade. Pretendia, além disso, desviá-Lo com muita habilidade, provocando-Lhe o apego à matéria, em especial ao dinheiro, simbolizado na pedra e no pão.
As condições para Nosso Senhor realizar tal prodígio eram as mais favoráveis. Além da necessidade humana – pois, de fato, estava com fome –, poderia obter com facilidade qualquer tipo de alimento a partir daquela pedra ou mesmo sem ela, valendo-Se da onipotência divina, capaz de criar todas as coisas do nada. Para Ele, que em Caná proporcionaria aos noivos o melhor vinho da festa transmutando a água recolhida nas talhas, e que mais tarde saciaria milhares de pessoas multiplicando cinco pães e dois peixes, seria muito simples operar o milagre proposto pelo demônio. Entretanto, precisamente por proceder desse anjo maldito, Jesus não apenas recusa a sugestão, como também corta o assunto de maneira taxativa.
Se, de um lado, é indispensável prestarmos atenção no caráter ardiloso do pai da mentira e execrá-lo, bem como a sua pérfida tática, por outro devemos nos encher de encanto com o modo de Jesus proceder. Ele Se eleva acima da tentação e a despreza, dando uma resposta na qual transparece o quanto seu divino olhar se detém no pão material somente de maneira vaga e fugidia, pois se encontra fixado no verdadeiro alimento, que é a Palavra de Deus.
Cabe a nós imitar esse supremo modelo em face das trampas armadas pelo inimigo de nossa salvação: jamais fitá-las com complacência, nem sequer fazer considerandos a seu respeito. Como tudo o que provém do inferno, a tentação é vil e degrada a alma que não lhe tem horror. Todavia, se adotarmos a estratégia ensinada pelo Divino Mestre, sairemos desses embates fortalecidos e com maior apetência dos bens sobrenaturais.
Resposta cortante e avassaladora
5 O diabo levou Jesus para o alto, mostrou-Lhe por um instante todos os reinos do mundo 6 e Lhe disse: “Eu Te darei todo este poder e toda a sua glória, porque tudo isto foi entregue a mim e posso dá-lo a quem eu quiser. 7 Portanto, se Te prostrares diante de mim em adoração, tudo isso será teu”. 8 Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás’”.
Frustrado no seu primeiro intento, o diabo agora apresenta uma armadilha própria a excitar o orgulho humano, tantas vezes manifesto no vício da ambição. Ao longo da História, quantos potentados levaram a extremos o delírio de possuir e dominar, cometendo toda sorte de injustiças, violências e loucuras para sempre conquistar mais, e chegando, em alguns casos, a fazer-se adorar como deuses! Quantas nações destruídas e quantas perseguições causadas por essa maldita paixão!
Nobre vencedor, Nosso Senhor Jesus Cristo novamente reage a essa tentação de maneira direta, cortante e avassaladora, citando as palavras da Escritura. Ao lembrar o preceito de adorar a Deus e servir somente a Ele, consignado no Deuteronômio, aponta para a necessidade de sermos íntegros no amor, jamais permitindo que nosso coração se prenda aos bens e honras do mundo.
Nunca entrar em discussão com Satanás
9 Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-O sobre a parte mais alta do Templo e Lhe disse: “Se és Filho de Deus, atira-Te daqui abaixo! 10 Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus Anjos a teu respeito, que Te guardem com cuidado!’ 11 E mais ainda: ‘Eles Te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’”. 12 Jesus, porém, respondeu: “A Escritura diz: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’”.
Impressiona ver até que ponto o Salvador Se dispôs a ser tentado por amor a nós, permitindo inclusive ao espírito maligno transportá-Lo para o alto do Templo. Apesar de nos figurar um tanto espantoso que uma criatura tenha tal poder sobre o próprio Deus, algo semelhante ocorre com a Eucaristia, na qual Jesus está à mercê dos ministros que O levam, por exemplo, aos doentes nos hospitais, até mesmo no extremo de, hélas, serem sacerdotes indignos ou propositalmente sacrílegos.
Pelas duas respostas anteriores de Nosso Senhor, o demônio percebeu estar tratando com alguém muito versado nas Escrituras, e que as citava com propriedade. Astuto, resolveu recorrer também ao texto sagrado, sem dar-se conta de que falava com o seu próprio Autor.
Ao mencionar um trecho do Salmo 90, Satanás visava novamente o orgulho, desta vez tocando as cordas do instinto de sociabilidade. Pretendia ele instigar Jesus a realizar algo grande, capaz de maravilhar as multidões, e para isso tentou insuflar o desejo excessivo da estima alheia, como se dissesse: “O que pensarão os outros, vendo-Te cair dos ares e pousar de mansinho junto ao Templo? Todos Te admirarão! Que triunfo!”
Quantas vezes o anseio desmedido de ser valorizado pelos demais leva o homem a atos irrefletidos, que terminam em desastre e frustração!
O Divino Mestre desmonta este último ardil com uma passagem do Antigo Testamento muito simples e clara, ensinando-nos a não entrar em discussão com o demônio nas horas em que ele explora o nosso amor-próprio: “Não tentarás o Senhor teu Deus”.
Vencida a tentação, a luta continua
13 Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno.
Humilhado e derrotado, o tentador se retira, mas não definitivamente. Ele retornará “no tempo oportuno”, com embustes diferentes, pois os utilizados no deserto nada haviam logrado.
Assim também sucede conosco, como alerta São Pedro: “Vosso adversário, o demônio, anda ao redor de vós como o leão que ruge, buscando a quem devorar” (I Pd 5, 8). Se, por desgraça, a alma cede, o diabo intensifica ainda mais suas solicitações, alterando o modo de apresentá-las, de maneira a empurrar o pecador a novos abismos de mal. Quando, pelo contrário, a pessoa resiste, os golpes do maligno vão se tornando cada vez mais inúteis e fugazes. Quem, em meio às lutas da vida espiritual, procura ser perfeito à semelhança do Redentor, gozará, como Ele, da paz, da liberdade e da vitória.
III – A melhor defesa contra as ciladas de Satanás
Até a vinda de Nosso Senhor ao mundo, o povo eleito estava adstrito à Lei, a qual indica o caminho da santidade, mas não proporciona as forças para trilhá-lo. A partir do momento em que “o Verbo Se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14), uma nova vitalidade sobrenatural passou a circular nas almas sedentas de alcançar a sublime meta do Céu: a graça, com a qual nos tornamos capazes de vencer qualquer tentação. Se dispomos desse auxílio, nada devemos temer, como afirma São Paulo: “Tudo posso n’Aquele que me conforta” (Fl 4, 13).
O grande empecilho para sermos sempre triunfantes sobre o demônio não está, portanto, na nossa fraqueza, nem no ímpeto do mal em tentar nos perder, mas no fato de deixarmos de depositar nossa confiança em Deus. É um verdadeiro desatino querer empregar as qualidades e forças humanas como instrumento essencial, ou às vezes único, no combate contra os infernos.
Por isso, temos necessidade absoluta de nos aproximar dos Sacramentos com a máxima frequência, de recorrermos à mediação de Nossa Senhora e à intercessão dos Santos, nossos padroeiros celestes, de procurarmos o convívio com os Anjos; enfim, de estarmos o dia inteiro com a nossa primeira atenção posta no sobrenatural.
Deus promete amparar aqueles que se abandonam a seus cuidados, e os acompanha como Pai nas dificuldades e agruras, conforme canta o Salmo Responsorial deste domingo: “Porque a Mim se confiou, hei de livrá-lo e protegê-lo, pois meu nome ele conhece. Ao invocar-Me hei de ouvi-lo e atendê-lo, e a seu lado Eu estarei em suas dores” (Sl 90, 14-15).
Em suma, a Liturgia de hoje nos convida a combater o bom combate, seguindo os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo, com uma fé cheia de amor na força d’Ele, que dobrou Satanás no deserto e que também o vencerá em nossas almas. Por maiores que tenham sido as nossas concessões ao pecado, ofereçamos ao Redentor nesta Quaresma o nosso desejo de reparar tudo, abandonando para sempre qualquer laço com o inferno.
Ouçamos o conselho que o Divino Mestre nos dirige neste Evangelho: “Meu filho, aprende de Mim: quando Satanás te tentar, põe-Me entre ti e ele. Em vez de considerar o horror do mal, para o afastar, pensa na grandeza do bem, e eleva-te até ele. Pensa em Mim, pensa em minha Mãe e sê perfeito como o teu Pai Celeste é perfeito”. ◊