Evangelho do Natal do Senhor (Missa da vigília)
1 Livro da origem de Jesus Cristo, Filho de Davi, Filho de Abraão. 2 Abraão gerou Isaac; Isaac gerou Jacó; Jacó gerou Judá e seus irmãos. 3 Judá gerou Farés e Zara, cuja mãe era Tamar. Farés gerou Esrom; Esrom gerou Aram; 4 Aram gerou Aminadab; Aminadab gerou Naasson; Naasson gerou Salmon; 5 Salmon gerou Booz, cuja mãe era Raab. Booz gerou Jobed, cuja mãe era Rute. Jobed gerou Jessé. 6 Jessé gerou o Rei Davi.
Davi gerou Salomão, daquela que tinha sido mulher de Urias. 7 Salomão gerou Roboão; Roboão gerou Abias; Abias gerou Asa; 8 Asa gerou Josafá; Josafá gerou Jorão. Jorão gerou Ozias; 9 Ozias gerou Jotão; Jotão gerou Acaz; Acaz gerou Ezequias; 10 Ezequias gerou Manassés; Manassés gerou Amon; Amon gerou Josias. 11 Josias gerou Jeconias e seus irmãos, no tempo do exílio na Babilônia.
12 Depois do exílio na Babilônia, Jeconias gerou Salatiel; Salatiel gerou Zorobabel; 13 Zorobabel gerou Abiud; Abiud gerou Eliaquim; Eliaquim gerou Azor; 14 Azor gerou Sadoc; Sadoc gerou Aquim; Aquim gerou Eliud; 15 Eliud gerou Eleazar; Eleazar gerou Matã; Matã gerou Jacó. 16 Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado o Cristo. 17 Assim, as gerações desde Abraão até Davi são quatorze; de Davi até o exílio na Babilônia, quatorze; e do exílio na Babilônia até Cristo, quatorze.
18 A origem de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua Mãe, estava prometida em casamento a José, e, antes de viverem juntos, Ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo.
19 José, seu marido, era justo e, não querendo denunciá-La, resolveu abandonar Maria, em segredo. 20 Enquanto José pensava nisso, eis que o Anjo do Senhor apareceu-lhe, em sonho, e lhe disse: “José, filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua Esposa, porque Ela concebeu pela ação do Espírito Santo. 21 Ela dará à luz um Filho e tu Lhe darás o nome de Jesus, pois Ele vai salvar o seu povo dos seus pecados”.
22 Tudo isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta: 23 “Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um Filho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel, que significa: Deus está conosco”. 24 Quando acordou, José fez conforme o Anjo do Senhor havia mandado: e aceitou sua Esposa. 25 E sem ter relações com Ela, Maria deu à luz um Filho. E José deu ao Menino o nome de Jesus (Mt 1, 1-25).
I – A preparação imediata para o nascimento de Deus
Depois do período das quatro semanas do Advento, a Missa da véspera do Natal do Senhor propicia que, na perspectiva da comemoração da chegada do Menino Jesus à meia-noite, as graças já comecem a se fazer sentir, enchendo de alegria os nossos corações. Estas graças, distribuídas no mundo inteiro em torno do altar, quando Ele vem até nós todos os dias na Eucaristia, tornam-se mais intensas nesta grande Solenidade na qual celebramos, litúrgica e misticamente, o Verbo que Se fez carne entre nós, jubiloso acontecimento que nos é anunciado pelo cântico dos Anjos.
Jesus Cristo nasceu na plenitude dos tempos, no auge da História, época reservada para Ele por ser a mais oportuna e a mais necessitada
Devemos, portanto, arder do desejo de que o Divino Infante venha não apenas ao presépio da Gruta de Belém, mas ao nosso interior para aí estabelecer sua morada, e que Ele também possa nascer, o quanto antes e de maneira eficaz, no fundo da alma de cada um dos habitantes da terra, realizando o que Ele próprio nos ensinou a pedir na oração perfeita, repetida pela Igreja ao longo de dois mil anos: “Venha a nós o vosso Reino; seja feita a vossa vontade, assim na terra como no Céu” (Mt 6, 10).
II – Um Deus de ascendência humana
Qual o momento histórico escolhido por Deus para Se encarnar?
Segundo São Tomás de Aquino,1 não convinha que o Salvador viesse logo depois da queda de Adão e Eva no Paraíso. Uma vez que a raiz do pecado foi a soberba, era mister que o homem, humilhado diante do espetáculo de sua miséria, reconhecesse a necessidade de um libertador, porque se recebesse de imediato o remédio teria desprezado o Criador, ignorando sua enfermidade. Acrescenta ainda o Doutor Angélico2 que também não seria adequado adiar a Encarnação até o fim do mundo, para não desaparecer totalmente da face da terra o conhecimento e a reverência devida a Deus, bem como a honestidade dos costumes.
A plenitude dos tempos
Concluímos então que, como “Deus tudo definiu segundo sua sabedoria”,3 Cristo nasceu na “plenitude dos tempos” (Gal 4, 4), no auge da História, na época reservada para Ele por ser a mais oportuna e a mais necessitada. É, pois, em função d’Ele, e não apenas observando um critério cronológico, que se dividem as eras e tudo se organiza e se ajusta. Dado que o agir da Providência sobre o mundo se cifra em governar tendo em vista sua própria glória e a salvação dos homens, o papel de Nosso Senhor, enquanto Salvador, O põe mais ainda no centro dos acontecimentos.
Esta missão de Jesus, exercida numa determinada quadra histórica, é posta em especial destaque pela primeira parte do Evangelho – irrelevante na aparência – que a Santa Igreja propõe à nossa consideração nesta vigília. Tendo já explicado em detalhe os versículos 18-25 desta passagem em outro artigo,4 limitar-nos-emos a comentar os versículos 1-17.
Deus e Homem numa só Pessoa
1a Livro da origem de Jesus Cristo…
Um dos principais mistérios da nossa Fé é a união da natureza divina com a humana na Pessoa única do Verbo. Jesus é verdadeiramente Homem, com inteligência, vontade e sensibilidade, além de ter assumido um corpo padecente; e é plenamente Deus, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Em virtude da união hipostática, foi comunicada à humanidade de Cristo, tanto à Alma quanto ao Corpo, a santidade incriada, substancial e infinita do Filho de Deus, como ensina o Apóstolo: “N’Ele habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Col 2, 9). Por essa graça de união, seu Corpo é adorável, e até mesmo os ossos, os cabelos ou as unhas d’Ele, tudo é divino!
Ora, parece desnecessário expor toda a ancestralidade de Nosso Senhor Jesus Cristo desde Abraão, enumerada com cuidado exímio pelo Evangelista, se já sabemos quem Ele é. Para que considerar a natureza humana do Messias, uma vez que o princípio ativo de sua concepção no seio de Maria é o próprio Espírito Santo5 e que, portanto, sua geração é obra divina? Por que incluir esta relação dos antepassados de Jesus, semelhante a um registro de tabelião? Tudo na Sagrada Escritura tem sua razão de sabedoria e foi o Espírito Santo quem inspirou São Mateus a assim escrever, como também São Lucas, o qual, ao contrário do método usado pelo primeiro, parte de São José e remonta até Adão (cf. Lc 3, 23-38).
Ao descrever a genealogia de Nosso Senhor, o Evangelista tinha a intenção de ressaltar a humanidade de Cristo, provando que Ele é verdadeiro Homem, mas concebido por ação divina
Quando a Igreja Católica começou a se expandir pela pregação dos Apóstolos, ao ensinar a doutrina era indispensável preparar muito bem os neófitos. Enquanto hoje as verdades da Religião nos são apresentadas com toda naturalidade, naquele tempo, defender certos conceitos parecia um absurdo. A alguns era fácil admitir que o Salvador fosse Homem; enquanto a outros, como os judeus convertidos, a fé os levava a receber prontamente o dogma da divindade de Nosso Senhor. O grande problema estava em aceitar que Ele fosse Homem e Deus ao mesmo tempo! E surgiam, nos primeiros séculos, questões profundas a esse respeito e objeções contra a Pessoa de Jesus que perturbavam aquela gente, a quem os Apóstolos tinham de instruir: “Será Homem?”; “Onde nasceu Ele?”; “De quem é Filho?”; “Como pode Deus ser Filho de uma mulher?”; “De onde Lhe advém tanta força?”
A intenção de São Mateus foi, pois, mostrar, sublinhar e ressaltar a humanidade de Cristo, provando por essas quarenta e duas gerações que Ele é Homem, nascido de mulher. Homem com genealogia, Homem filho de Adão e de Eva, possuindo a natureza humana íntegra, concebido na carne, mas por mão de Deus, de modo completamente milagroso e inefável. Desta forma, Nossa Senhora, mera criatura, por ter dado seu consentimento e ter fornecido a matéria para a formação do Corpo de Jesus, é Mãe de Deus.
O simbolismo dos números
O número quarenta e dois é simbólico, pois, na verdade, estas gerações abrangem uma enorme faixa de tempo – em torno de uns 2.130 anos, segundo Fillion6 – e devem ter sido muito mais. O Evangelista as divide em três conjuntos de quatorze: a partir de Abraão até Davi, de Davi até o exílio da Babilônia, e deste até o Messias. “Os judeus gostavam de dividir suas genealogias em grupos mais ou menos fictícios, conforme cifras místicas fixadas de antemão”.7 Neste caso, se explica a escolha de quatorze pelo fato de ser duas vezes sete, número tido na literatura judaica como o algarismo simbólico de multiplicidade, de universalidade e de perfeição. Assim, o número perfeito duplicado se repete três vezes, porque três é também um número de perfeição.8 A este respeito é interessante a aplicação de São Remígio: “Dividiu as gerações em séries de quatorze cada uma, porque o número dez significa o Decálogo, e o número quaternário os quatro livros do Evangelho, mostrando nisto a conformidade da Lei com o Evangelho, e repetiu três vezes o número quatorze para nos ensinar que a perfeição da Lei, da profecia e da graça consiste em crer na Trindade Santa”.9
Outra interpretação proposta pelos exegetas baseia-se no intuito que animava o primeiro Evangelista de provar a ascendência davídica de Jesus, pois, “o número quatorze tinha a vantagem de encerrar eminentemente o sete, número sagrado, e de representar o valor numérico do nome de Davi, verdadeira fonte desta genealogia”.10 Com efeito, “dado que as letras hebraicas têm, além do significado verbal, outro numérico, resulta que o nome das letras de Davi em algarismos é o seguinte: Davi = 4+6+4, cuja soma dá quatorze”.11
O depositário da promessa feita a Abraão
1b …Filho de Davi, Filho de Abraão. 2a Abraão gerou Isaac; Isaac gerou Jacó…
Quando estabeleceu uma aliança com o patriarca Abraão, Deus prometeu-lhe sobretudo uma posteridade sobrenatural, pois de sua estirpe nasceria o Salvador esperado
Tendo Deus amaldiçoado a Serpente logo após a queda de Adão e Eva, prometeu-lhes enviar um Salvador (cf. Gn 3, 15), sem ainda fazer uma aliança concreta com eles. Expulsos do Paraíso, durante sua longa existência nossos primeiros pais viram o drama se estabelecer na face da terra, a partir do fratricídio perpetrado por Caim contra seu irmão Abel, bem como todas as desgraças que depois se abateram sobre a humanidade, decorrentes de um mal de que eles mesmos eram os culpados: o pecado!
Somente mais tarde firmará Deus uma aliança com Abraão, anunciando-lhe uma descendência mais numerosa que as estrelas do céu e as areias do mar (cf. Gn 15, 18; 22, 17). À primeira vista, pareceria tratar-se aqui de uma posteridade quanto ao sangue, mas, na realidade, ao fazer tal juramento, Deus prometia a Abraão sobretudo filhos na linha sobrenatural, pois de sua estirpe nasceria um Varão extraordinário, o Salvador esperado. Por isso, ao descrever a ascendência de Jesus, São Mateus começa, muito a propósito, no santo patriarca e conclui dizendo:
16 Jacó gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que é chamado o Cristo.
Cristo era justamente o Desejado, vindo para redimir. Excogitar um Deus que se faz Homem supera de tal modo qualquer inteligência – até angélica – que se não fosse a revelação feita pelo próprio Nosso Senhor, nem sequer entraria na especulação dos judeus. Todavia, este insólito acontecimento veio a suceder.
Quatro mulheres estrangeiras
2b …Jacó gerou Judá e seus irmãos. 3a Judá gerou Farés e Zara, cuja mãe era Tamar. […] 5a Salmon gerou Booz, cuja mãe era Raab. Booz gerou Jobed, cuja mãe era Rute. […] 6b Davi gerou Salomão, daquela que tinha sido mulher de Urias.
Em contraposição à destacada referência a Abraão, patriarca do povo eleito, chama a atenção o fato de São Mateus inserir quatro mulheres estrangeiras dentro dessas quarenta e duas gerações: Tamar, que provavelmente era cananeia; Raab, também cananeia; Rute, a moabita; e Betsabeia, mulher do hitita Urias, a qual tudo indica que fosse da mesma origem do marido. Conforme a opinião do Pe. Manuel de Tuya,12 o intuito do Evangelista era sugerir, de maneira indireta, o caráter universal da Encarnação e da Redenção, e de toda a obra messiânica, não circunscrita aos judeus, mas que abarcava as nações pagãs.
Uma genealogia de pecadores
Torna-se praticamente impossível comentar no reduzido espaço de um artigo a genealogia completa. Escolhamos, portanto, um aspecto para maior proveito de nossa vida espiritual.
Percorrendo a sequência dos antepassados do Salvador, encontram-se nomes de alguns cujo número e gravidade dos pecados causa arrepio e espanto à primeira vista
Dentro desta sequência surpreende um ponto, que vai contra um perfeccionismo mal entendido. Segundo este, a linhagem de Nosso Senhor deveria ser a mais elevada e mais excelente em matéria de virtude. Porém, ao analisar alguns nomes à luz da História Sagrada, o número e a gravidade dos seus pecados nos arrepiam.
Um patriarca dominado pela inveja
2b …Jacó gerou Judá e seus irmãos. 3a Judá gerou Farés e Zara, cuja mãe era Tamar.
Judá, um dos doze filhos do patriarca Jacó, deu origem à principal tribo do povo hebreu e é um dos mais ilustres ancestrais de Jesus. Ora, foi por inveja de seu jovem irmão José que ele cometeu um grande crime. Urdiu com todos os outros irmãos a trama para fazer desaparecer o inocente José. Judá apenas defendeu a vida do menino, mas não sua liberdade; pelo contrário, teve inclusive a ideia de vendê-lo como escravo a mercadores ismaelitas (cf. Gn 37, 26-27).
Também, é conhecido o desagradável episódio ocorrido entre ele e sua nora Tamar, a qual, por meios fraudulentos, lhe deu dois filhos, Farés e Zara (cf. Gn 38, 13-30), nomeados igualmente no Evangelho de hoje.
Uma mulher de maus costumes
5a Salmon gerou Booz, cuja mãe era Raab.
O mesmo observamos no caso de Salmon, príncipe dos judeus, casado com a cananeia Raab, mulher de péssimos costumes dos tempos de Josué (cf. Js 2, 1-21). Para tomar posse da Terra Prometida era imprescindível aos israelitas a conquista da cidade de Jericó, considerada inexpugnável. De fato, eles não podiam negligenciar esta fortaleza e seguir adiante, porque seriam atacados pela retaguarda. Josué, então, mandou dois espiões para examinar as possibilidades de dominar a cidade. Estes foram protegidos e bem informados por essa mulher, que habitava numa casa sobre as muralhas, com a condição de ser salva junto com toda sua família quando os judeus assaltassem Jericó.
Tendo chegado à residência de Raab emissários do rei de Jericó à procura dos exploradores que lá se hospedavam, ela os escondeu em meio às palhas de linho que tinha no terraço e os fez descer pela janela, servindo-se de uma corda. Por esta razão, quando o Senhor entregou Jericó nas mãos de Josué, a mulher e seus parentes foram poupados da morte e ela passou a morar no seio de Israel (cf. Js 6, 25). “Justificada pelas obras” (Tg 2, 25), Raab, embora estrangeira, abraçou a verdadeira Religião e desposou Salmon, de quem nasceu Booz, bisavô do Rei Davi.
Dois pecados terríveis reunidos num rei santo
6b Davi gerou Salomão, daquela que tinha sido mulher de Urias.
A Sagrada Escritura ressalta que o Rei Davi gerou Salomão, daquela que foi mulher de Urias: Betsabeia. Urias era um famoso general dos exércitos de Davi. Enquanto ele se achava em campanha, o rei, que ficara em Jerusalém, cometeu adultério com Betsabeia, a qual concebeu um filho. Tendo chamado o militar à Cidade Santa, para que sua presença justificasse os fatos, e não sendo bem-sucedido em seu intento, o rei enviou, então, uma carta ao comando militar, ordenando que pusessem Urias no lugar mais arriscado do combate, a fim de que fosse ferido e viesse a morrer. Executada sua determinação, Urias tombou heroicamente na batalha, como era de se prever, e Davi, avisado do ocorrido, acolheu Betsabeia como esposa. O profeta Natã repreendeu o soberano, anunciando-lhe que o menino nascido daquele pecado morreria, e foi o que sucedeu. Contudo, Davi teve com ela um segundo filho, ao qual chamou Salomão (cf. II Sm 11–12, 1-24). É verdade que este não foi o fruto do crime, mas Deus poderia evitar que um antepassado de Jesus fosse filho de Betsabeia, reservando tal honra a outra mulher. Não! Ele permitiu essa infidelidade de um rei santo e quis que o Messias proviesse da descendência dela.
Uma sequência de reis prevaricadores
7a Salomão gerou Roboão; […] 9b Jotão gerou Acaz; Acaz gerou Ezequias; 10a Ezequias gerou Manassés; Manassés gerou Amon…
O Rei Salomão, galardoado por Deus com o dom da sabedoria, decaiu a ponto de se relacionar com numerosas mulheres pagãs, até acabar, em certo momento, ele mesmo entregue à idolatria (cf. I Re 11, 4-10). Uma de suas esposas, Naama, de origem amonita (cf. I Re 14, 21), deu-lhe Roboão por filho, o qual herdou o reino.
Este jovem monarca “abandonou a Lei do Senhor” (II Cr 12, 1), e durante seu reinado o povo de Judá edificou “para si lugares altos, estelas e ídolos Asserás sobre todas as colinas e debaixo de tudo que fosse árvore verde” (I Re 14, 23), para lhes oferecer culto. Igual procedimento seguiram a maior parte dos reis de Judá que lhe sucederam.
Acaz, por exemplo, chegou a fazer passar seu filho pelo fogo numa cerimônia em honra a Moloc, “segundo o abominável costume dos povos que o Senhor tinha expulsado diante dos filhos de Israel” (II Re 16, 3). Também ousou confiscar os bens e objetos sagrados do Templo para dá-los de presente ao rei da Assíria e substituiu o altar de bronze por outro, mandado construir conforme o modelo do altar de Damasco.
Deus poderia evitar que um antepassado de Jesus fosse filho de Betsabeia, mas não; Ele permitiu essa infidelidade de Davi e quis que o Messias proviesse da descendência dela
Manassés, neto de Acaz, foi ainda pior que todos os seus antecessores, pois, além de adorar as divindades dos pagãos e de cair em horrorosos pecados de impureza e de magia, “derramou também tanto sangue inocente, que inundou Jerusalém de uma extremidade a outra” (II Re 21, 16).
Amon, seu filho, seguiu as pegadas do pai, prostrando-se diante dos falsos deuses (cf. II Re 21, 21) e mantendo, inclusive, pessoas de má vida dentro do próprio Templo de Jerusalém, as quais não apenas exerciam execráveis funções, mas teciam vestes para o ídolo Asserá (cf. II Re 23, 7).
A lista de pecados cometidos por estes reis infiéis poderia ser muito alongada. Não obstante, parecem suficientes os fatos acima descritos para compreendermos a “qualidade” de alguns dos ancestrais de Nosso Senhor Jesus Cristo, que São Mateus não julgou dever deixar de lado na genealogia, e, por inspiração do Espírito Santo, mencionou explicitamente.
III – Fez-Se Homem para nos divinizar
Ao constatar todas essas abominações ficamos impressionados e logo nos perguntamos qual a razão de Deus as haver tolerado. Por que teria o Salvador consentido e querido que na sua linhagem constasse gente de vida dissoluta? Ele conhecia esses horrores desde toda a eternidade e podia eliminá-los num instante.
Ele veio reparar e salvar
No entanto, não os eliminou e permitiu sua realização para tornar mais clara a ação da Providência: Jesus, nascendo de uma Virgem concebida sem pecado original, sob os cuidados de São José, varão santíssimo, veio reparar as iniquidades de Adão e Eva, de todos os seus antepassados e da humanidade inteira. Ele veio, sobretudo, para salvar os pecadores e, admitindo-os na sua ancestralidade, quis dar a entender o quanto Deus não aceita só os inocentes, como também os que incorrem em faltas.
Jesus veio sobretudo para salvar os pecadores e, admitindo-os na sua ancestralidade, quis dar a entender o quanto Deus não os rejeita
“Ele veio à terra”, diz São João Crisóstomo, “não para fugir de nossas ignomínias, senão para tomá-las sobre Si. […] Não só é justo que nos maravilhemos de que Ele assumisse a carne e Se fizesse Homem, mas de que Se dignasse ter tais parentes, sem em nada envergonhar-Se de nossas misérias. Desde o berço, pois, proclamou que não Se envergonha de nada do que é nosso”.13
Assim, Ele põe um ponto final nesse encadeamento de misérias com uma glória extraordinária, porque se os homens fossem perfeitos não se justificaria a Redenção, conforme canta a Igreja na Liturgia da Páscoa: “Ó pecado de Adão indispensável, pois o Cristo o dissolve em seu amor; ó culpa tão feliz que há merecido a graça de um tão grande Redentor!”14
Para ser perdoado, é mister reconhecer as próprias misérias
Entre esses pecadores está Davi, que por meio de um sublime arrependimento mereceu passar para a História como o penitente.
Portanto, da nossa parte o que é preciso? Humildade, reconhecimento dos próprios defeitos, pedido de perdão e penitência. Devemos confiar na bondade infinita e no desejo de perdoar de Nosso Senhor, pois nisso Ele Se alegra. Nunca desesperemos caso o pecado venha a tisnar nossa vida, porque, ainda que tenhamos errado, se soubermos implorar misericórdia e reparar a ofensa, daí sairão maravilhas, tal como da ascendência de Jesus nasceu Deus! Se formos inteiramente inocentes, estejamos certos de que esta inocência provém da graça; se cairmos em alguma falta, lembremo-nos de que Nossa Senhora pode nos purificar, cobrindo-nos com seu manto e tornando-nos capazes de obras grandiosas.
Quantos Padres e Doutores15 comentam o mistério de Deus Se ter feito Homem a fim de nos fazer deuses! Com efeito, é o que se dá no instante em que as águas do Batismo são derramadas sobre nossa cabeça: a natureza divina é infundida em nós.
Nosso coração, gruta inóspita na qual Deus quer nascer
Peçamos que o Menino-Deus transforme nossas almas, grutas inóspitas e frias por suas misérias, mas escolhidas para serem por Ele habitadas
O Natal do Menino Jesus, máximo acontecimento em toda a História da criação, vem penetrado pelo pensamento da misericórdia, da bondade e do perdão concedido a quem pede. A Missa da Vigília, que dá início à Solenidade, traz este ponto à nossa lembrança, apresentando-nos uma genealogia na qual encontramos a marca do insuperável amor de Deus para com a humanidade. Por isso permaneçamos na expectativa de sua chegada que se verificará nesta noite santa. Ele nascerá liturgicamente, mas descerá também ao coração de cada um de nós. Entretanto, nós não podemos dizer-Lhe: “Vinde agora, Senhor, nascer dentro do palácio de meu coração!…” Antes, para que Ele possa vir com todo esplendor, é preciso que nossa alma se reconheça como é: uma gruta fria, inóspita, oferecendo-Lhe apenas uma pobre manjedoura cheia de palha, símbolo de nossa miséria e de nossas deficiências, escolhidas por Ele para ser recebido e que tanto deseja transformar! ◊
Notas
1 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.1, a.5.
2 Cf. Idem, a.6.
3 Idem, a.5.
4 Cf. CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. Dois silêncios que mudaram a História. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.108 (dez., 2010), p.10-17; Comentário ao Evangelho do IV Domingo do Advento – Ano A, no Volume I da coleção O inédito sobre os Evangelhos.
5 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., q.32, a.2; a.3, ad 1.
6 Cf. FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Infancia y Bautismo. Madrid: Rialp, 2000, v.I, p.172.
7 Idem, p.173.
8 Cf. TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V, p.418; 878; SCHUSTER, Ignacio; HOLZAMMER, Juan B. Historia Bíblica. Antiguo Testamento. Barcelona: Litúrgica Española, 1934, t.I, p.88-89; 586-587, nota 7; TUYA, OP, Manuel de; SALGUERO, OP, José. Introducción a la Biblia. Madrid: BAC, 1967, v.II, p.37-38.
9 SÃO REMÍGIO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Matthæum, c.I, v.17.
10 LE CAMUS, Emile. La vita di N. S. Gesù Cristo. 3.ed. Brescia: Vescovile Queriniana, 1908, v.I, p.130.
11 TUYA; SALGUERO, op. cit., p.38. No alfabeto hebraico antigo não havia registro de vogais, além de receber cada letra um valor numérico. E sendo o nome Davi – דוד – escrito em hebraico com as letras dalet (ד) e waw (ו), respectivamente com o valor de 4 e 6, somavam o simbólico resultado de 14.
12 Cf. TUYA, op. cit., p.24.
13 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo. Homilía III, n.2. Madrid: BAC, 2007, v.I, p.42.
14 VIGÍLIA PASCAL. Proclamação da Páscoa. In: MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da terceira edição típica realizada e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. Brasília: CNBB, 2023, p.280.
15 Cf. SANTO AGOSTINHO. Sermo CXCII. In Natali Domini, IX, c.1, n.1; SÃO LEÃO MAGNO. Sermo XXVI. In Nativitate Domini, VI, c.2; SANTO IRINEU DE LYON. Adversus hæreses. L.III, c.19, n.1; SANTO ATANÁSIO DE ALEXANDRIA. Oratio De Incarnatione Verbi, 54; SÃO CIPRIANO DE CARTAGO. Quod idola dii non sint, 11; SANTO HILÁRIO DE POITIERS. De Trinitate. L.IX, n.3; SÃO GREGÓRIO NAZIANZENO. Oratio XL. In Sanctum Baptisma, n.45; SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA. Thesaurus de sancta et consubstantiali Trinitate. Assertio XXIV; SÃO TOMÁS DE AQUINO. Officium Corporis Christi “Sacerdos”. Vesp. I, lect.1.