Ao comer do fruto proibido, nossos primeiros pais pecaram e entrou no mundo a morte. Por meio de outro alimento, o “Pão descido do Céu”, foi-nos restituída a vida. Na Eucaristia, o próprio Deus Se oferece ao homem como comida, dando-lhe infinitamente mais do que havia perdido.

 

Evangelho do XIX Domingo do Tempo Comum

41 “Murmuravam então dEle os judeus, porque dissera: ‘Eu sou o Pão que desceu do Céu’. 42 Diziam: ‘Porventura não é este aquele Jesus, filho de José, cujo pai e mãe nós conhecemos? Como, pois, diz Ele: Desci do Céu?’. 43 Jesus, replicando, disse-lhes: ‘Não murmureis entre vós. 44 Ninguém pode vir a Mim se o Pai que Me enviou não o atrair; e Eu o ressuscitarei no último dia. 45 Está escrito nos profetas: E serão todos ensinados por Deus. Portanto, todo aquele que ouve e aprende do Pai, vem a Mim. 46 Não porque alguém tenha visto o Pai, exceto Aquele que vem de Deus; Esse viu o Pai. 47 Em verdade, em verdade vos digo: O que crê em Mim, tem a vida eterna. 48 Eu sou o Pão da Vida. 49 Vossos pais comeram o maná do deserto e morreram. 50 Este é o Pão que desceu do Céu para que aquele que dele comer não morra. 51 Eu sou o Pão vivo descido do Céu. Quem comer deste Pão, viverá eternamente; e o Pão que Eu darei é a Minha carne para a salvação do mundo’” (Jo 6, 41-51).

I – Deus Se oferece como alimento

Ao tomarmos um primeiro contato com esta passagem do Evangelho de São João, logo nos deparamos com a surpreendente, obstinada e ilógica incredulidade dos contemporâneos de Jesus, em relação à Sua divindade.

Transcorridos dois milênios, talvez nos seja difícil compreender como podia alguém duvidar da divindade de Nosso Senhor ante provas tão evidentes: cura de todo tipo de doenças, libertação de possessões diabólicas, ressurreições e outros milagres assombrosos, entre os quais a mudança da água em vinho, ou a multiplicação de pães e peixes, ocorrida pouco antes do episódio narrado neste Evangelho do 19º Domingo do Tempo Comum.

Como era, então, possível a alguém contestar as claras afirmações dEle a respeito de Sua divindade e desprezar os Seus divinos atributos? O que levava seus contemporâneos a tomar tal atitude?

Vitral da Catedral de Dijon (França)

Quando no homem prepondera a matéria

A natureza humana é um composto de espírito e matéria — a alma e o corpo —  no qual há uma hierarquia em que a parte espiritual deve governar a material, o que ocorre pela prática da virtude, com o auxílio da graça. Mas, quando o homem se deixa dominar pelas potências inferiores, as paixões desregradas exercem uma tirania sobre a parte mais nobre e elevada, e ele fica entregue ao vício. No primeiro caso predomina o espírito e dizemos estar diante do homem espiritual; no segundo, prepondera a matéria: é o homem carnal, ou como se diz modernamente, materialista.

Detenhamo-nos um pouco no segundo caso, procurando descrever alguns traços da psicologia do homem carnal, para melhor compreendermos a dureza de coração dos contemporâneos de Jesus.

O materialista está voltado principalmente para a fruição sensível da vida. Seus horizontes intelectuais pouco mais abarcam do que a realidade concreta. Dir-se-ia ter perdido a capacidade de ver os fatos em três dimensões, passando a observar tudo apenas num plano só, o dos seus pequenos interesses pessoais e imediatos, sem a profundidade do que é eterno. Por isso, não é capaz de captar as realidades mais elevadas, de ordem sobrenatural. O materialista é um míope do espírito. Torna-se incapaz de elevar o olhar para os grandes horizontes da Fé que Deus lhe oferece misericordiosamente.

Visualização deformada dos contemporâneos de Jesus

É essa impostação distorcida do espírito que levava os contemporâneos de Jesus a verem nEle apenas o filho do carpinteiro José, e nada mais. Eram incapazes de admirar e venerar Suas excelsas virtudes, nas quais não podia deixar de transparecer Sua divindade, por terem o espírito endurecido pela consideração apenas da realidade concreta, imediata e visível. Não podiam admitir que Aquele que tinham visto crescer e vivia entre eles pudesse ser Deus e homem: “Como, pois, diz Ele: Desci do Céu?” (Jo 6, 42).

Era dessa visualização materialista que nascia a impossibilidade de aceitar o maior dom de Deus à humanidade: a Eucaristia, tema deste Evangelho.

Com efeito, as realidades visíveis são imagens das invisíveis e sobrenaturais, como ensina São Paulo: “Desde a criação do mundo, as perfeições de Deus, o Seu sempiterno poder e divindade, se tornam visíveis à inteligência, por Suas obras” (Rm 1, 20). Mas, para ter essa visão do universo é necessário ser homem espiritual.

Ora, carnal e voltada para a realidade concreta, não poderia a maioria dos judeus compreender o que lhes queria dizer Jesus quando falava de um “Pão descido do Céu”, que lhes traria a vida eterna. Para eles, a finalidade única do alimento era sustentar a vida material humana. Seu intelecto dificilmente poderia se alçar a essa verdade transcendente: ao criar o homem com a necessidade de nutrir-se, Deus tinha em vista a instituição da Eucaristia, para poder sustentar, por meio do “Pão descido do Céu”, sua vida sobrenatural.

O alimento favorece a união dos que o partilham

A alimentação, além da finalidade imediata de manter a vida do homem, tem também um importante papel social: o de unir as pessoas. Por exemplo, é em torno da mesa que a família se reúne diariamente e põe em comum, não só os alimentos, mas também os sentimentos, os ideais, o modo de ser e até os problemas caseiros. É à mesa que se desenvolve a conversa e os pais têm uma das melhores ocasiões de ir formando o espírito dos filhos.

O fato de se sentarem todos juntos para fazer a refeição estabelece um especial traço de união entre os membros de uma família, de um grupo de amigos ou de uma comunidade religiosa, que vai além das simples iguarias para valores mais altos. O alimento possui algo que favorece a união daqueles que o partilham. Os vínculos familiares, sociais ou religiosos se fortalecem e a verdadeira amizade se consolida.

É também em torno da mesa que se realizam as comemorações dos pequenos ou grandes fatos da vida.

A morte entrou pelo mau uso do alimento

Mesmo no Paraíso Terrestre, onde o homem tinha os instintos perfeitamente ordenados, é de supor que, se não tivesse havido pecado e a vida se desenvolvesse normalmente, também seria em torno do ato da nutrição que transcorreriam os melhores momentos do convívio social e familiar.

E como o maior dom de Deus à humanidade seria dado sob a forma de alimento, foi através de um elemento nutriente que o Criador quis pôr à prova nossos primeiros pais, para depois conceder-lhes tão alta dádiva: “Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente” (Gn 2, 16-17). É esta a forma característica do agir de Deus. Pede uma pequena renúncia para depois dar, em recompensa, uma infinitude.

Pelo ato de comer o fruto proibido, entrou a morte no mundo; por meio do “Pão descido do Céu”, nos foi restituída a Vida: “Quem comer deste pão viverá eternamente” (Jo 6, 51). O primeiro pecado foi cometido pelo abuso de um alimento, e a salvação eterna nos vem através de outro. A Eucaristia se apresenta como uma resposta, da parte de Deus, ao pecado original, dando aos filhos de Adão infinitamente mais do que haviam perdido: é o próprio Deus que Se oferece em alimento ao homem. Não há possibilidade de um dar-se maior do que na Eucaristia: “E o Pão que Eu darei é a Minha carne para a salvação do mundo” (Jo 6, 51b).

Com tais pressupostos, melhor meditaremos neste trecho do Evangelho, aumentando nosso amor e reconhecimento ao Divino Redentor, pelo imenso dom da Eucaristia.

Vitral da Basílica de Paray-le-Monial (França)

II – Eucaristia e vida eterna

41 “Murmuravam então dEle os judeus, porque dissera: ‘Eu sou o Pão que desceu do Céu’. 42 Diziam: ‘Porventura não é este aquele Jesus, filho de José, cujo pai e mãe nós conhecemos? Como, pois, diz Ele: Desci do Céu?’. 43 Jesus, replicando, disse-lhes: ‘Não murmureis entre vós’”.

Estas palavras de Jesus foram pronunciadas na sinagoga de Cafarnaum. No dia anterior, havia Ele operado o prodígio da multiplicação dos pães, figura do milagre muitíssimo mais portentoso da Eucaristia. Maravilhada, a multidão fora ao seu encalço até encontrá-Lo nessa cidade. Porém, interpelado por eles, Jesus censura-lhes seu pouco espírito de fé e sua mentalidade materialista: “Vós Me procurais, não porque vistes milagres, mas porque comestes dos pães e ficastes saciados. Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que dura até à vida eterna, e que o Filho do Homem vos dará” (Jo 6, 26-27).

Ao multiplicar os pães e os peixes, Cristo provara seu poder sobre a matéria, preparando assim o povo para crer na Eucaristia. No entanto, o coração dos Seus ouvintes se endureceu e, diante do anúncio de tão grande dom, duvidaram, aferrando-se às realidades visíveis e concretas. Jesus, para eles, continuava sendo “o filho de José”. E nem a crença, então muito difundida em Israel, de que o Messias viria trazer um novo maná, contribuiu para lhes abrir os olhos e o coração, diante da multiplicação dos pães.

Somente Deus pode mover as almas rumo à perfeição

44 “Ninguém pode vir a Mim se o Pai que Me enviou não o atrair; e Eu o ressuscitarei no último dia”.

Nesta frase tão simples encerra-se um valioso princípio teológico que deve nortear a atividade pastoral dos sacerdotes, assim como o apostolado dos leigos. Todo o bem que possamos fazer se origina numa iniciativa de Deus.

Quantas vezes, em nossa atuação, julgamos ter feito grandes obras, formulado ideias acertadas, falado de forma atraente, escrito palavras sublimes… Tudo isso vem de Deus. Nossa ação produziu algum resultado? Houve almas que se afervoraram, mudaram de vida, abandonaram as vias do pecado? Foi a graça de Deus que agiu nelas e as moveu a aceitarem bem o que foi dito ou feito.

Nosso Senhor usa o termo “ninguém”, o qual não dá margem a exceção. “Ninguém pode vir a Mim se o Pai não o atrair”. O próprio Jesus, o Homem-Deus, tendo embora todo o poder, nos dá um divino exemplo de humildade, atribuindo ao Pai a iniciativa do bem que Ele faz. Inclusive em nossa vida espiritual, todo e qualquer movimento de nossa alma rumo à perfeição se deve a uma ação da graça. É sempre Deus que toma a iniciativa de nos atrair.

Discutem alguns sobre o papel do livre-arbítrio nesta atração sobrenatural exercida por Deus, alegando que o termo “atrair” implica em certa violência. São Tomás responde com sua lógica característica a esta objeção, explicando que pode haver diversas formas de atração, sem violência nem constrangimento. Pode-se atrair alguém por meio de um artifício da inteligência. Mas Deus também pode nos aproximar dEle pelo encanto, pela beleza de Sua majestade. 1

Também o padre Manuel de Tuya destaca o papel da liberdade humana perante a ação da graça: “Deus traz as almas à Fé em Cristo: quando Ele quer, infalivelmente, irresistivelmente, embora de um modo tão maravilhoso que elas vêm também livremente; esse aspecto de liberdade, no homem, se destaca especialmente no versículo 45b”. 2

No mesmo sentido se pronuncia Santo Agostinho, com o voo próprio de sua inteligência privilegiada, ao comentar com palavras inflamadas esta mesma passagem: “Não disse: ‘Se não o guiar’, mas sim ‘se não o atrair’. Esta violência é feita ao coração, não à carne. De que te admiras? Crê e vens; ama e és atraído. Não penses que se trata de uma violência rabugenta e depreciativa; é doce, suave; o que atrai é a própria suavidade. Quando a ovelha tem fome, não a atraímos mostrando-lhe erva? Ela não é empurrada corporalmente, mas subjugada pelo desejo. Vem tu a Cristo desse modo”. 3

E por que quem atrai a alma é o Pai e quem ressuscita o corpo no último dia é o Filho? São João Crisóstomo esclarece a questão: “O Pai atrai, mas Ele [Jesus] ressuscita. Não porque separe Suas obras do Pai — como poderia ser! — mas sim porque demonstra que o poder de ambos é igual”. 4

Capela do Santíssimo Sacramento na Igreja Nossa Senhora do Rosário do Seminário dos Arautos do Evangelho, Caieiras (Brasil)

A voz do Pai nos atrai e conduz a Cristo

45 “Está escrito nos profetas: ‘E serão todos ensinados por Deus’. Portanto, todo aquele que ouve e aprende do Pai, vem a Mim”.

Uma vez que não acreditavam nas Suas obras, Jesus invoca a autoridade dos profetas, para insinuar que estava se realizando uma das previsões indicativas da chegada da era messiânica.

Fillion assim comenta esta passagem: “O texto citado por Jesus, ‘serão todos ensinados por Deus’, é tomado do profeta Isaías (54, 13) que, num quadro admirável, expõe os benefícios que o Senhor derramará sobre Seu povo na época do Messias. Um de Seus favores mais valiosos consistirá, justamente, em que as almas de boa vontade serão instruídas e atraídas diretamente por Ele”. 5

Gomá y Tomás afirma ser este “divino magistério a forma com que Deus atrairá os homens a Si”. Mas, para que a atração seja eficaz, é preciso ouvir Sua voz “como se ouve a voz do mestre, e aprender, ou seja, prestar humilde assentimento àquilo que se ouve: é a conjugação dos dois fatores da vida sobrenatural, a graça e a liberdade”. 6

Como se fará ouvir essa voz inefável, se não podemos escutá-Lo e falar com Ele, como o fazia Moisés no Sinai e na Tenda da Reunião, onde Deus lhe falava como a um amigo? (cf. Ex 33, 11).

Santo Agostinho, citado por São Tomás na Catena Aurea, explica mais claramente como se realiza esse ensino de Deus: “Muito distante está dos sentidos corporais essa escola na qual o Pai é ouvido e ensina que se vá ao Filho. Porque esta operação, Ele não a realiza pelos ouvidos da carne, mas sim pelos do espírito”. 7

Com efeito — explica a teologia mística —, assim como o corpo tem cinco sentidos através dos quais a pessoa entra em contato com o mundo exterior, pode-se atribuir à alma, figurativamente, sentidos por meio dos quais ela se comunica com o mundo sobrenatural.

É possível, então, ouvir a voz de Deus? Sim. Ele pode falar-nos de diversas formas. Sobretudo, quando nos recolhemos para rezar, para ouvir a Palavra, para elevar a alma até Ele. E Deus fala-nos com mais frequência quando fazemos silêncio à nossa volta, dificilmente Ele Se comunica conosco no meio do tumulto, da agitação do corre-corre. Será, por exemplo, durante uma visita ao Santíssimo Sacramento, durante uma celebração litúrgica, num momento de oração ao fim do dia, quando todo movimento cessa e o silêncio da noite convida à reflexão. E como, por vezes, o silêncio é eloquente! É nesses momentos preciosos que o Pai nos fala e nos ensina a ir ao encontro de Seu Filho.

O Santo Padre Bento XVI, em discurso a uma delegação de Bispos recém-nomeados, ressaltou a importância do silêncio para se poder ouvir a voz de Deus: “Nas cidades em que viveis e trabalhais, frequentemente agitadas e rumorosas, onde o homem corre e se perde, onde se vive como se Deus não existisse, sabei criar lugares e ­ocasiões de oração, onde no silêncio, na escuta de Deus, mediante a lectio divina, na oração pessoal e comunitária, o homem possa encontrar Deus e fazer a experiência viva de Jesus Cristo que revela o autêntico rosto do Pai”. 8

46 “Não porque alguém tenha visto o Pai, exceto Aquele que vem de Deus; Esse viu o Pai”.

Os judeus sabiam que ninguém podia ver a Deus face a face, tal como Ele mesmo havia dito a Moisés, quando este Lhe pedira: “Mostra-me a Tua glória” (Ex 33, 18). Pois ver a Deus implicaria na morte: “Não poderás ver a Minha face porque ninguém Me pode ver e permanecer vivo” (Ex 33, 20). Mas Jesus, ao afirmar que tinha visto o Pai — “Esse viu o Pai” —, revelava Sua divindade. Com esta declaração, afirma Gomá y Tomás, “respondeu Jesus à murmuração dos judeus”. 9

“Nosso Senhor com os Discípulos de Emaús” – Catedral de Rouen (França)

Fonte de vida para a alma e para o corpo

47 “Em verdade, em verdade vos digo: O que crê em Mim, tem a vida eterna”.

A expressão “em verdade, em verdade vos digo” era considerada uma espécie de juramento entre os judeus. Algo análogo à fórmula “palavra de honra”, usada na língua portuguesa para conferir mais veracidade a um testemunho ou declaração. Quando Nosso Senhor queria chancelar com Sua autoridade determinada afirmação, fazia-a preceder dessa expressão. Maldonado transcreve as palavras de São Cirilo de Alexandria para interpretar esta passagem: “Sabia Cristo que os judeus eram homens rudes e que nem sequer acreditavam plenamente nos profetas; por isso intercala este juramento, para forçá-los a crer”. 10

Continuando seu lúcido comentário, Maldonado analisa o tempo em que o verbo “ter” é aqui usado por Nosso Senhor: “Diz tem, em vez de terá, porque ainda que não a tenha atualmente [a vida eterna], já tem direito a ela. Porta e caminho para a vida eterna é a fé, diz Cirilo. Portanto, quem crê já passou a porta; se quiser, pode salvar-se; quem não crê, muito longe está da vida eterna; embora queira salvar-se, não poderá se primeiro não vier a fé”. 11

49 “Vossos pais comeram o maná do deserto e morreram. 50 Este é o Pão que desceu do Céu para que aquele que dele comer não morra. 51 Eu sou o Pão vivo descido do Céu. Quem comer deste Pão, viverá eternamente; e o Pão que Eu darei é a Minha carne para a salvação do mundo”.

A interpretação desta passagem originou grande controvérsia ao longo dos séculos. Os que comeram o maná no deserto morreram, como todos os homens, mas também morrem, fisicamente, os que comem o “Pão vivo”. Qual o sentido em que Jesus usa os conceitos de morte e vida?

Maldonado, depois de analisar extensamente as várias opiniões, opta por uma interpretação mais abarcativa. Segundo este eminente exegeta, Jesus usa os referidos conceitos com duplo sentido: “trata-se, ao mesmo tempo, da vida e da morte do corpo e da alma”. 12 Da morte do corpo, quando se refere ao maná, pois os judeus o comeram e todos morreram, como o comum dos homens; e a vida da alma, quando menciona o “Pão vivo descido do Céu”, que dá a vida eterna à alma. Nessa duplicidade de sentido está a “força e a elegância da frase de Cristo”. 13 O uso destas figuras de linguagem, por Jesus, era frequente, segundo Maldonado, e tinha a intenção de “elevar os judeus, que eram carnais, das coisas materiais às espirituais”. 14

Mas o Pão de que fala Nosso Senhor, não dá vida só à alma. Também a dá ao corpo: “Eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6, 54).

“Quando [o Corpo de Cristo] dá a vida à alma, isto é, a graça, outorga ao corpo um penhor e como que início da bem-aventurança, a qual chamamos vida eterna. A bem-aventurança da alma transborda no corpo, como os méritos da alma repercutiram no corpo (Agostinho). […] O Corpo de Cristo, que pela união hipostática com a Divindade tem em si vida infinita e divina, engendra-a também em nós com seu contato físico quando O recebemos realmente no Sacramento da Eucaristia. Põe em nossos corpos uma semente de imortalidade que depois floresce na ressurreição, bastante diferente da dos corpos dos condenados”. 15

Afirmava Santo Irineu que, assim como o grão de trigo tem uma
força germinativa pela qual, lançado à terra, se decompõe e se reproduz, assim também o Corpo de Cristo tem uma eficácia geradora que é comunicada a nossos corpos. E mesmo decompostos e reduzidos a pó, ressurgirão, nascendo de novo. 16 É assim, conclui Maldonado, que o “Corpo de Cristo Sacramentado, que recebemos, torna imortal nosso corpo mortal”. 17

Alimento que comunica a virtude vivificante

Recorramos ainda à ciência teológica e ao talento de Dom Guéranger para melhor explicitar os efeitos maravilhosos e sobrenaturais da Eucaristia, naqueles que a recebem em condições dignas. Como é próprio do alimento aumentar e manter a vida, explica ele, o Verbo de Deus “fez-Se alimento vivo e vivificante, descido dos Céus. Participando Ele mesmo da vida eterna, que Ele haure diretamente no seio do Pai, a carne do Verbo comunica esta vida a quem dela se alimenta. Aquilo que é corruptível por sua natureza, diz São Cirilo de Alexandria, não pode ser vivificado a não ser pela união corporal ao corpo dAquele que é vida por natureza. Do mesmo modo que dois pedaços de cera fundidos pelo fogo passam a ser um só, assim acontece conosco e com o Corpo de Cristo, devido à participação no Seu Corpo e Sangue preciosos. […] Como um pouco de fermento, diz o Apóstolo, leveda toda a massa (I Cor 5, 6), assim este Corpo, penetrando no nosso, o transforma todo inteiro em Si. Nada pode penetrar assim nossa substância corporal a não ser pela comida e a bebida. É este o modo, próprio à sua natureza, pelo qual o nosso corpo adquire a virtude vivificante”. 18

“Nossa Senhora do Santíssimo Sacramento”, Igreja Très-Saint Sacrement, Quebec (Canadá)

III – A mulher eucarística

Embora o Evangelho não mencione Maria, Mãe de Jesus, sabemos pela teologia e pelo Magistério da Igreja que Ela foi a primeira criatura humana a beneficiar-Se desta promessa de Nosso Senhor: “Eu o ressuscitarei”. Pois Maria Santíssima foi assunta ao Céu em corpo e alma.

Maria desejou ardentemente a Eucaristia

Em relação à Eucaristia, Ela não só nunca duvidou — como o fizeram tantos dos Seus coetâneos —, mas desejou ardentemente que chegasse o dia no qual Nosso Senhor cumpriria a promessa de dar Sua Carne em alimento e Seu Sangue como bebida. Em consequência, podemos conjecturar quanto Ela deve ter exultado de alegria ao ouvir o discurso de Jesus na Sinagoga de Cafarnaum,  e recordado o inefável convívio místico que tivera com o Verbo Encarnado, durante os nove meses em que Ele permanecera no claustro materno.

De outro lado, afirma Jourdain: “Pode-se dizer, sem receio de enganar-se, que foi principalmente para Sua Santíssima e Beatíssima Mãe que Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu o Sacramento da Eucaristia. Sem dúvida, Ele o instituiu para toda a Igreja, mas, depois de Jesus, Maria é a parte principal da Igreja”. 19 E assim como Ela deu Seu consentimento para que Seu Filho Se oferecesse como vítima ao Pai, pela redenção do gênero humano, da mesma forma “deu Seu assentimento ao ato pelo qual Seu Divino Filho […] Se entregou a nós como vítima, como alimento e como companheiro de exílio nesta vida”, 20 no Sacramento da Eucaristia.

A Igreja é chamada a imitá-La

“Maria é mulher ‘eucarística’ na totalidade da sua vida” — afirma o servo de Deus João Paulo II na Encíclica Ecclesia de Eucharistia. Por isso, “a Igreja, vendo em Maria o seu modelo, é chamada a imitá-La também na sua relação com este mistério santíssimo”. 21

Acrescenta pouco adiante o Pontífice: “De certo modo, Maria praticou a Sua fé eucarística ainda antes de ser instituída a Eucaristia, quando ofereceu o Seu ventre virginal para a encarnação do Verbo de Deus. […] E o olhar extasiado de Maria, quando contemplava o rosto de Cristo recém-nascido e O estreitava nos Seus braços, não é porventura o modelo inatingível de amor que deve inspirar todas as nossas comunhões eucarísticas?”.22

Explica ainda que Maria viveu a “dimensão sacrificial da Eucaristia”, não apenas no Calvário, mas ao longo de toda a Sua existência ao lado de Cristo. “Preparando-Se dia a dia para o Calvário, Maria vive uma espécie de ‘Eucaristia antecipada’, dir-se-ia uma ‘comunhão espiritual’ de desejo e oferta, que terá o seu cumprimento na união com o Filho durante a Paixão e manifestar-se-á depois, no período pós-pascal, na Sua participação na Celebração Eucarística, presidida pelos Apóstolos, como ‘memorial’ da Paixão”. 23

Por isso, viver o memorial da morte de Cristo na Eucaristia implica em receber constantemente Maria como Mãe. “Significa ao mesmo tempo assumir o compromisso de nos conformarmos com Cristo, entrando na escola da Mãe e aceitando a Sua companhia. Maria está presente — com a Igreja e como Mãe da Igreja — em cada uma das Celebrações Eucarísticas. Se Igreja e Eucaristia são um binômio indivisível, o mesmo é preciso afirmar do binômio Maria e Eucaristia”. 24

Que estas belas e profundas considerações tão eucarísticas e mariais nos ajudem a melhor nos compenetrarmos da sublimidade deste imenso dom de Deus à humanidade e do papel de Maria na devoção eucarística dos fiéis, sejam eles leigos ou sacerdotes. 

 

Notas

1 Cf. AQUINO, São Tomás de. Super Evangelium S. Ioannis lectura. c. 6, l. 5.
2 TUYA, OP, Pe. Manuel de. Biblia Comentada – II Evangelios. Madrid: BAC, 1964, p. 1107.
3 AGOSTINHO, Santo. Sermo 131, n. 2.
4 JOÃO CRISÓSTOMO, São. Homilia 46 in Homilías sobre el Evangelio de San Juan. Madrid: Ciudad Nueva, 2001, V. 2. p. 175.
5 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo – II Vida pública. Madrid: Rialp, 2000, p. 245.
6 GOMÁ Y TOMÁS, Card. Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Rafael Casulleras, 1930, V. 2. p. 384.
7 Apud AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea.
8 BENTO XVI. Discurso aos participantes na reunião dos Bispos nomeados no último ano, 22/9/2007.
9 GOMÁ Y TOMÁS, Op. cit., p. 385.
10 MALDONADO, SJ, Pe. Juan de. Comentarios a los cuatro Evangelios – III Evangelio de San Juan. Madrid: BAC, 1954, p. 398.
11 Idem, p. 398.
12 Idem, p. 405.
13 Idem, p. 405.
14 Idem, p. 406.
15 Idem, p. 407.
16 Cf. idem, p. 408.
17 Idem, p. 408.
18 GUÉRANGER, OSB, Dom Prosper. L’Année Liturgique – Le temps après la Pentecôte. Tome I. Tours: Maison Alfred Mame et fils, 1921, p. 307-308.
19 JOURDAIN, Abbé Z.- C. Somme des grandeurs de Marie – Marie dans la Sainte Église. Paris: Hippolyte Walzer, 1900, p. 561.
20 Idem, p. 562.
21 JOÃO PAULO II. Ecclesia de Eucharistia, n. 53.
22 Idem, n. 55.
23 Idem, n. 56.
24 Idem, n. 57.
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Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, é fundador dos Arautos do Evangelho.

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