Evangelho do II Domingo da Quaresma
Naquele tempo, 28b Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar. 29 Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante.
30 Eis que dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias. 31 Eles apareceram revestidos de glória e conversavam sobre a morte que Jesus iria sofrer em Jerusalém.
32 Pedro e os companheiros estavam com muito sono. Ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com Ele.
33 E quando estes homens se iam afastando, Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pedro não sabia o que estava dizendo. 34 Ele estava ainda falando, quando apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo ao
entrarem dentro da nuvem. 35 Da nuvem, porém, saiu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que Ele diz!”
36 Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-Se sozinho. Os discípulos ficaram calados e naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto (Lc 9, 28b-36).
I – Somos chamados “ad maiora”
Ao formar o homem à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26), Deus destinou-o a ocupar um elevado lugar na criação, inferior apenas ao dos Anjos. O ser humano, como única criatura dotada de inteligência em todo o universo material, possui uma notável superioridade sobre as outras, além da capacidade de dominá-las, transformá-las e utilizar-se delas com sabedoria, tornando mais perfeita a obra do Criador. É ele o protagonista da História, conforme ressalta a Escritura: “Vosso saber o ser humano modelou, para ser rei da criação, que é vossa obra” (Sb 9, 2). Além dessa prerrogativa de ordem natural, há outro privilégio que lhe confere a mais excelsa dignidade: a filiação divina, concedida pelo Batismo. Com efeito, ao receber este Sacramento, a pessoa torna-se filha adotiva de Deus, participante da natureza divina, membro de Cristo e co-herdeira com Ele e templo da Santíssima Trindade.
Devido ao pecado original e ao estado de prova em que nos encontramos, esses benefícios da natureza e da graça preparam-nos para as horas em que nos cabe dar mostras de fidelidade a Deus, de modo especial quando se abatem sobre nós as tentações, os dramas e as dificuldades. Se alimentarmos um desejo equivocado — quiçá, subconsciente — de fazer com que a glória terrena ou os gozos espirituais sensíveis se tornem uma constante em nossa existência, admitiremos o princípio de que a vida perfeita é a da estabilidade na consolação, sem a menor fímbria de sofrimento. Por seu divino exemplo, Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou como o caminho para a felicidade difere daquele que conceberíamos com base em critérios humanos. Na verdade, só encontramos a perfeita alegria quando abraçamos a santidade, o que implica em transpor a porta estreita e carregar a cruz, por meio da qual se chega à luz.
A esse propósito, é legítimo perguntarmos: como se explica que na luta e no enfrentamento de toda espécie de empecilhos, em favor da glória de Deus, encontremos o sentido de nossa vida? Ou será possível experimentar neste mundo uma situação de fruição completa, tal como pedem as nossas inclinações? A resposta nos é oferecida pela Liturgia do 2º Domingo da Quaresma no conjunto de suas leituras, numa harmonia que se sintetiza em rumar para a bem-aventurança eterna passando pelas provações, pelo combate espiritual e pela dor.
A promessa de um grandioso futuro
Na primeira leitura é relatado o momento histórico em que Deus sela com Abraão uma Aliança, na qual lhe faz grandes promessas. Tendo caído a noite nas longínquas paragens de Canaã, onde armara sua tenda, o patriarca já se havia recolhido quando o Senhor o chamou para fora a fim de contemplar o firmamento. Este, límpido, assemelhava-se a um manto iluminado por uma infinitude de astros reluzentes (cf. Gn 15, 5-12.17-18). Tudo nos leva a crer que ali se podia observar um cenário feérico, configurado pelo Divino Artífice com vistas a emoldurar uma das mais belas comunicações da História da salvação. Era o momento em que Deus reconhecia a retidão de Abraão e o considerava digno de acolher seu plano salvífico, para receber a fé que seria transmitida a toda a humanidade. Num diálogo cheio de poesia, Ele prometeu àquele varão avançado em anos o que as possibilidades humanas lhe haviam negado: descendência, terra e bênção.
Embora Abraão houvesse conservado, ao longo das décadas, o desejo de possuir herdeiros e pôr um fim às incertezas da vida errante, foi somente após uma longa espera que Deus determinou o cumprimento desses anseios com uma superabundância acima de qualquer expectativa. O patriarca, apesar de todas as aparências contrárias, aceitou e creu na promessa — “Levanta os olhos para os céus e conta as estrelas, se és capaz… Pois bem, assim será a tua descendência” (Gn 15, 5) —, e recebeu, por esse ato, uma recompensa muito maior do que esperava e podia conceber. “Deus, em seu modo de prometer, na certeza que possui de jamais decepcionar, revela sua grandeza única: ‘Deus não é homem para mentir, nem filho de Adão para Se retratar’ (Nm 23, 19). Para Ele, prometer já é dar, mas em primeiro lugar é dar a fé capaz de esperar que venha o dom; e é tornar, mediante esta graça, quem recebe capaz da ação de graças (cf. Rm 2, 20) e de reconhecer, no dom, o coração do doador”. 1
Às almas eleitas, Deus pede oferecimentos
A partir daquela noite a conduta de Deus para com Abraão distinguiu-se por uma nova característica: ao sustentá-lo com a promessa, passou a pedir dele constantes provas de reciprocidade e entrega, com a intenção de experimentá-lo e de modelar sua existência em função da Aliança: “Anda em minha presença e sê íntegro” (Gn 17, 1). Em um perplexitante paradoxo, transcorreriam ainda longos anos até o nascimento de Isaac (cf. Gn 21, 5), e só na quarta geração os descendentes de Abraão voltariam a ocupar a Terra Prometida (cf. Gn 15, 16). Contudo, mesmo caminhando nessa aparente contradição, até se tornar um homem centenário, ele creu firmemente que a promessa de Deus era ainda mais verdadeira que a própria obtenção dos frutos esperados: “não vacilou, não desconfiou, mas conservou-se forte na fé e deu glória a Deus” (Rm 4, 20). Era indispensável tal adesão de fundo de alma para que o povo eleito tivesse em suas origens um ato de fé tão excelente que o tornasse digno, na pessoa de seu patriarca, da predestinação que lhe estava reservada.
A circunstância que marcou o auge do período de prova de Abraão foi o holocausto de Isaac, pois a fé amadurecida deve ser “purificada pela prova do sacrifício”. 2 Entretanto, outros oferecimentos o precederam, tendo sido um deles realizado logo no dia seguinte à cena acima recordada. Respeitando os costumes daqueles tempos, Deus determinou que Abraão fizesse a oblação de diversos animais cortados ao meio, com as metades postas umas defronte às outras. O versículo 11 denota um importante aspecto dessa passagem e mesmo do conjunto de leituras litúrgicas de hoje: “Aves de rapina se precipitaram sobre os cadáveres, mas Abraão as enxotou” (Gn 15, 11). A presença de animais ávidos por arrebatar as oferendas simboliza as lutas exigidas pela fidelidade à Aliança. Para quem abraça o caminho da justiça, logo surge o inimigo infernal semeando tentações e obstáculos, sendo necessário combatê-lo para que não roube o mérito de nossas boas obras. A luta veio a ser uma constante na trajetória do povo de Israel, um elemento essencial dos episódios da História Sagrada, onde não existe vitória que não seja obtida senão pela peleja. Deus agradou-Se com a firmeza de Abraão, pois fez passar pelo meio das vítimas uma chama e uma tocha — símbolos, no Antigo Testamento, da sua presença 3 — em sinal de aceitação da oferta. Esse combate, como veremos, se estende também ao Novo Testamento e pede dos cristãos uma vigilância que “deve exercitar-se dia após dia na luta contra o maligno; exige do discípulo oração e sobriedade contínua”. 4
O combate do Apóstolo contra os falsos conversos
A segunda leitura (cf. Fl 3, 17-21; 4, 1) recolhe um importante trecho da Epístola de São Paulo aos Filipenses, em cuja comunidade alguns judeus, havia pouco convertidos, ainda se mantinham vinculados às tradições e concepções próprias ao culto antigo, propagando doutrinas erradas com o objetivo de fazer o que bem podemos qualificar de pseudoapostolado antipaulino. Enquanto São Paulo pregava o Redentor, a Boa-nova, os Sacramentos e as maravilhas da graça, os judaizantes queriam, a todo custo, fazer prevalecer os costumes mosaicos: “Eles se ocupam em exercitar sua inimizade contra a Cruz de Cristo, afirmando que ninguém pode salvar-se a não ser por meio das observâncias legais, e com isso reduzem a nada o poder ‘da Cruz de Cristo’”. 5 Um dos motivos que levou o Apóstolo a redigir essa carta foi a necessidade de alertar contra tal corrente nefanda, intenção bastante perceptível nos versículos hoje considerados: “Sede meus imitadores, irmãos, e observai os que vivem de acordo com o exemplo que nós damos. Já vos disse muitas vezes, e agora o repito, chorando: há muitos por aí que se comportam como inimigos da Cruz de Cristo. O fim deles é a perdição, o deus deles é o estômago, a glória deles está no que é vergonhoso e só pensam nas coisas terrenas” (Fl 3, 17-19).
Diante dos nocivos ensinamentos dos judaizantes, São Paulo não hesita em colocar-se como exemplo para aqueles que ele conduzira ao Salvador, recriminando-os, com autoridade, pelo fato de seguirem outros que não foram chamados a ser modelo na prática da Fé. Suas palavras denotam o sofrimento e a indignação causados pela controvérsia, a ponto de lhe correrem lágrimas pela face enquanto escrevia. A reação é compreensível em alguém de temperamento tão fogoso, impedido pelas circunstâncias de agir pessoalmente com a eficácia desejada, e que percebe o quanto a astúcia dos maus punha em risco a perseverança dos bons.
Por isso, ele também não vacila em denunciar os hipócritas que, por apreço a tradições antigas, insistiam no mero culto exterior já extinto, enquanto menosprezavam a vida da graça. É importante ressaltar que São Paulo, ao apontar para a divinização do estômago por eles propugnada, não se refere ao vício da gula, mas sim ao apego que tinham à Lei Mosaica e aos costumes farisaicos a esse respeito. Afirma que o deus deles é o ventre porque a prática religiosa desses judaizantes resumia-se no controle de tudo quanto pudesse ser ingerido e sua glória naquilo que é vergonhoso, por concederem a primazia à circuncisão, outrora sinal precursor da fé na Paixão de Cristo e já então uma prescrição abolida. Ao praticar com exagerado rigorismo tais costumes, sentiam-se desobrigados de purificar o seu interior, no entanto tão corrompido. A linguagem utilizada por São Paulo é extremamente ousada, pois afronta os que se vangloriavam de seus odres velhos, a ponto de fazê-los rasgar as vestes e de se tornar, para eles, merecedor de um ódio de morte.
A esperança da vida eterna
“Nós, porém, somos cidadãos do Céu. De lá aguardamos o nosso Salvador, o Senhor Jesus Cristo. Ele transformará o nosso corpo humilhado e o tornará semelhante ao seu Corpo glorioso, com o poder que tem de sujeitar a Si todas as coisas” (Fl 3, 20-21). Após invectivar desvios disseminados com tanta astúcia, denunciando a malícia dos falsos conversos, São Paulo oferece uma verdadeira síntese da Liturgia de hoje ao relembrar o chamado dos batizados a serem cidadãos do Céu. Eis aqui uma realização insuperável — e quiçá nem sequer concebida pelo próprio Abraão — da promessa feita por Deus: descendência numerosa, terra e bênção. Tais bens são efêmeros se comparados à eterna bem-aventurança e ao corpo glorioso que, deixando para trás as contingências da nossa natureza mortal, assumirá as características da glória. O Apóstolo empenha-se em elevar as vistas daquela comunidade para a recompensa que a aguarda, certo de que, ao fixá-la na esperança de bens maiores, criaria condições para que não se contaminasse com a influência dos perversos.
Com tal intuito deixa ele consignada a doutrina dos corpos gloriosos, matéria amplamente tratada em seus escritos. Fala de nosso corpo humilhado pelos efeitos do pecado original e aponta para a transformação a que será submetido quando, ao ressuscitar, for reunido à alma que estiver na visão beatífica, tendo adquirido a plenitude da liberdade e a impossibilidade de pecar e tornando-se isenta das inclinações para o mal. Com efeito, esse estado de máxima perfeição espiritual está na origem da sublimação do nosso ser material, como ensina São Tomás: “Segundo a relação natural que há entre a alma e o corpo, da glória da alma redunda a glória sobre o corpo”. 6 Ao divinizar-se, a alma não se adapta mais a um corpo padecente, por ter atingido o termo final da vida da graça: a glória.
O início da vida sobrenatural nos é dado pela fé, a qual nos leva a crer naquilo que não vemos, e pela esperança, que nos leva a desejar aquilo que ainda não possuímos, mas um dia receberemos. Ora, a glória é a realização do objeto da fé e a obtenção do objeto da esperança, conforme recorda o padre Garrigou-Lagrange: “Se o próprio Deus, que é o Bem infinito, Se manifestasse a nós, imediata e claramente face a face, não poderíamos não amá-Lo. Ele preencheria inteiramente nossa capacidade afetiva, a qual seria atraída por Ele de modo irresistível. Ela não conservaria nenhuma energia que se subtraísse à sua atração; não poderia encontrar nenhum motivo para desviar-se d’Ele ou até mesmo para suspender seu ato de amor. É a razão pela qual quem vê a Deus face a face não pode mais pecar. […] Só Deus, visto face a face, pode cativar invencivelmente nossa vontade”. 7
Nessa situação o corpo se torna glorioso por acompanhar a alma, pois não pode ficar aquém de sua felicidade, além de assumir as quatro características enunciadas pelo Doutor Angélico: 8 claridade, impassibilidade, agilidade e sutileza. A primeira delas reflete no corpo a luz da visão beatífica, tornando-o fulgurante em virtude da claridade da qual goza o espírito. A impassibilidade diz respeito à imortalidade e à isenção de qualquer dor, pois o corpo torna-se objeto apenas de bem-estar, como fruto de sua perfeita submissão à alma: “Deus tirará toda lágrima de seus olhos; não haverá mais morte, nem luto, nem gemidos, nem dor” (Ap 21, 4). Por fim, a agilidade e a sutileza confirmam a supremacia do espírito sobre a matéria, uma vez que os corpos dos Santos não estarão mais sujeitos às presentes contingências ou aos efeitos físicos impostos pelos outros corpos. Poderão mover-se com máxima rapidez e transpor os obstáculos com toda facilidade. 9
Afirma Santo Agostinho que “a natureza, ferida pelo pecado, gera os cidadãos da cidade terrena, e a graça, que liberta do pecado, gera os cidadãos da cidade celestial”. 10 A segunda leitura, de igual maneira, confirma a indispensabilidade da graça na obtenção da vida eterna e centra-se — como também a primeira — na necessidade de termos os olhos postos no Céu, com uma inteira confiança na realização das promessas feitas por Deus. Ambas as passagens constituem um adequado preâmbulo para a mensagem do Evangelho, cuja insuperável grandeza passaremos a considerar.
II – Promessa, fé e luta
Ao longo de todo o período da vida pública de Nosso Senhor transcorrido até o episódio narrado neste Evangelho, os Apóstolos estavam acostumados a vê-Lo realizar os mais estrondosos milagres. Tais prodígios atestavam, de forma clara, a divindade de Cristo, 11 e sua onipotência seria manifestada ainda com maior esplendor na instituição da Eucaristia. Ao mesmo tempo, Ele acabava de revelar sua próxima Paixão, que traria uma terrível prova: depois de comungarem pela primeira vez, os Apóstolos O veriam preso, julgado, flagelado, coroado de espinhos, carregando a Cruz às costas e crucificado. Como seria possível aos mais próximos seguidores do Divino Mestre que, presenciando esses padecimentos, continuassem a crer na ressurreição ao terceiro dia? Que faria Ele, em sua infinita sabedoria, para manter acesa a fé dos Doze em meio à tormenta que já se delineava no horizonte?
Jesus revela no Corpo a glória de sua Alma
Naquele tempo, 28b Jesus levou consigo Pedro, João e Tiago, e subiu à montanha para rezar. 29 Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência e sua roupa ficou muito branca e brilhante.
Tendo em vista prepará-los para os acontecimentos que viriam, Nosso Senhor chamou os três Apóstolos com quem tinha maior familiaridade e os levou ao Monte Tabor. Eles, depois, deveriam fortalecer os outros, narrando-lhes o que testemunhariam.
Embora a oração ocupe um lugar primordial na vida do Mestre, esta não foi seu único objetivo com a subida à montanha. Mais do que isso, pretendia mostrar quem realmente era, conforme ressalta Maldonado: “Cristo costumava subir aos montes para orar, onde a solidão é maior e mais livre é a contemplação do Céu. Não se deve concluir das palavras de Lucas, entretanto, que Cristo subiu só com o propósito de orar, mas que, conforme seu costume de rezar nos assuntos árduos, quis fazê-lo desta vez antes de manifestar a sua glória. […] Não nos esqueçamos, também, que na maior parte das vezes a glória de Deus se manifesta nos montes, que estão mais próximos do Céu e mais afastados da Terra, e não nos vales”. 12
Esta exteriorização da glória divina é um fenômeno que revela o verdadeiro estado da Alma de Jesus, a qual, criada na visão beatífica, possuía desde o primeiro momento da Encarnação o grau supremo da graça capital. Esta é assim denominada por ser Ele a Cabeça do Corpo Místico e a origem da graça da qual vive a Igreja. 13 Sua Alma sempre esteve na contemplação de Deus face a face 14 e, por isso, o normal seria que seu Corpo fosse visto habitualmente em estado glorioso, como um espelho da beatitude de seu espírito, tal como se manifestou no Tabor, à vista de São Pedro e dos filhos de Zebedeu. 15 Foi só por amor a nós que Nosso Senhor quis revestir-Se das características do corpo padecente para operar a Redenção. 16 Então, por certo prisma, o verbo transfigurar não define com exatidão o que se passou, pois, na verdade, Cristo fez cessar a subfigura em que vivia.
No que se refere a alguns outros momentos de sua vida pública, podemos supor que Ele assumiu apenas alguns dos atributos do corpo glorioso, como, por exemplo, quando saiu livremente entre aqueles que o queriam jogar precipício abaixo em Nazaré ou quando andou sobre as águas do Mar de Tiberíades. 17
Moisés e Elias ratificam a Paixão
30 Eis que dois homens estavam conversando com Jesus: eram Moisés e Elias. 31 Eles apareceram revestidos de glória e conversavam sobre a morte que Jesus iria sofrer em Jerusalém.
Participando da glória de Cristo estavam dois expoentes do povo eleito: Moisés e Elias, os máximos representantes da Lei e dos profetas. Eles foram os escolhidos porque “nem a Lei pode existir sem o Verbo, nem profeta algum poderia ter vaticinado algo que não se referisse ao Filho de Deus”. 18 Ambos não somente ratificam que Jesus é o Messias, mas dão o peso de seu testemunho também aos anúncios da Paixão. A conversa que empreenderam com Ele diz respeito à sua Morte e, todavia, os três se encontravam envoltos na glória, a qual revela o fim último: ressurreição e corpo glorioso. “A conversa de Jesus com Moisés e Elias versa exatamente sobre os tormentos que Cristo vai padecer logo em Jerusalém. A Transfiguração, portanto, é a consagração de Jesus para a Cruz e para a morte”. 19 Numa harmoniosa junção, concebível apenas pela inteligência do próprio Deus, unem-se neste episódio dor e glória, conforme recorda São Leão Magno: “Era necessário que os Apóstolos tivessem no coração uma noção clara dessa vigorosa e bem-aventurada fortaleza, e que não tremessem perante a rudeza da cruz que teriam de carregar; seria preciso que não se envergonhassem do suplício de Cristo, nem considerassem humilhante para Ele a paciência com que deveria padecer os rigores de sua Paixão, sem perder a glória de seu poder”. 20
A tentação de uma vida sem esforço
32 Pedro e os companheiros estavam com muito sono. Ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com Ele. 33 E quando estes homens se iam afastando, Pedro disse a Jesus: “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pedro não sabia o que estava dizendo.
Tomadas pelo torpor — pormenor surpreendente —, as três testemunhas encontravam-se dormindo no início da divina manifestação. Tal sono é simbólico, pois sempre que a cruz, o esforço e o sacrifício nos são apresentados, somos tomados pelo tédio, em consequência de nossa débil natureza humana. Isso também aconteceu, mais tarde, no Horto das Oliveiras, quando os três sucumbiram ao cansaço, na iminência da Paixão, deixando Nosso Senhor sozinho ante o sofrimento (cf. Mt 26, 40). Acordados inesperadamente, ainda sob os efeitos do sono e surpresos pela intensa luminosidade que tinham diante de si, ficaram deslumbrados, a ponto de São Pedro não atinar com uma reação à altura do que se estava passando. Na realidade, com suas palavras ele manifestava, talvez sem plena consciência, certa má tendência de fundo de alma. Arrebatado por ver aquela maravilha, logo quis aproveitar-se dela, demonstrando o desejo de viver ininterruptamente sob o influxo da glória do Mestre. Ele via no usufruto desse gozo a obtenção da felicidade, e se não pediu para fazer três tendas quando o Senhor anunciou a Paixão, não hesitou em fazê-lo nessa hora. Pedro imaginava que já tivesse chegado ao fim do bom combate, quando havia ainda um longo caminho a ser percorrido. Via talvez, na presença de dois varões da estatura de Moisés e Elias, quão fácil seria dotar de supremacia o povo judeu sobre todas as outras nações da Terra. Faltava ao Chefe da Igreja aprender que, antes da obtenção dos frutos da promessa, deve-se trilhar o percurso que a eles conduz, conforme o exemplo dado pelo Redentor.
O Pai também conclama à luta
34 Ele estava ainda falando, quando apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra. Os discípulos ficaram com medo ao entrarem dentro da nuvem. 35 Da nuvem, porém, saiu uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o Escolhido. Escutai o que Ele diz!” 36 Enquanto a voz ressoava, Jesus encontrou-Se sozinho. Os discípulos ficaram calados e naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto.
De dentro da nuvem ouve-se a voz do Pai, que manda escutar seu Filho bem-amado. O que determina que ouvissem? Aquelas predições que tanto desejavam esquecer. Nosso Senhor havia declarado que seria entregue nas mãos dos sacerdotes, dos escribas, dos fariseus, que ia padecer e ser morto para depois ressuscitar ao terceiro dia (cf. Mt 16, 21; Lc 9, 22). Eles tinham medo de pensar nisso, condicionados por uma visão humana de Cristo. Nesse sentido ressalta Romano Guardini: “Ao lermos os Evangelhos, colhemos a impressão de que os discípulos não compreenderam durante a vida do seu Mestre aquilo que estava em causa. Jesus não tinha neles um grupo de homens que verdadeiramente O compreendesse; que vissem quem Ele era e entendessem o que Ele queria. Surgem continuamente situações que nos mostram como permanecia só no meio deles. […] Vemo-los por tal maneira imersos nas representações messiânicas da época que, no último momento anterior à Ascensão […], perguntam ainda ‘se é por esta altura que Ele vai restaurar a realeza de Israel!’ (At 1, 6)”. 21 O Pai, ao ordenar que escutassem o Filho em tudo, incita-os a considerar a árdua realidade da Cruz; a seguir seu Escolhido de acordo com o que era, e não com o que gostariam que fosse.
Concluída a portentosa visão, Jesus permaneceu em oração toda a noite e desceu no dia seguinte, acompanhado pelos três Apóstolos. O silêncio guardado no percurso de volta denota o grande impacto causado pela Transfiguração, pois qualquer comentário a propósito do que tinham visto seria inexpressivo. É oportuno lembrar que, tão logo regressaram, se depararam com um menino possesso, sobre o qual Ele fez um exorcismo que obteve imensa repercussão (cf. Mt 17, 14-20; Mc 9, 14-29; Lc 9, 37-42). Depois daquela grande experiência mística, Nosso Senhor retomou suas atividades de apostolado, pois quis mostrar o sentido mais profundo do que havia se passado. De fato, tendo sido uma graça de tão extraordinário alcance, foi uma preparação para as lutas futuras.
III – As consolações nos sustentam rumo à vitória final
A Liturgia deste domingo, ao recordar a promessa feita a Abraão, as palavras de São Paulo e a cena da Transfiguração, nos ensina que as graças místicas recebidas por nós no decorrer da vida espiritual não nos são dadas com a finalidade de estabelecer uma existência agradável nesta Terra, na qual gostaríamos de montar uma tenda para permanecer em estática contemplação, mas para que, através delas, tenhamos forças para enfrentar os embates da vida em vista do fim para o qual fomos chamados. Na verdade, a via mística é uma pré-figura da bem-aventurança eterna, e não um gozo da vida terrena. A felicidade neste mundo decorre da luta contra o mal existente dentro e fora de nós e, sobretudo, da luta pela glória de Deus, de modo que essas consolações nos são oferecidas para alimentar a virtude da esperança.
Ressaltando a importância de tais graças, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira afirma que elas “são uma espécie de prenúncio da visão beatífica no Céu, e têm por efeito fazer com que as nossas almas fiquem muito mais abertas à compreensão sobrenatural, à compreensão do maravilhoso, ao desejo das grandes coisas, dos grandes feitos, dos grandes lances”. 22
Por esta razão, estejamos atentos às manifestações divinas em nossa vida, dissipando qualquer torpor que nos impeça de percebê-las e crescendo na certeza de que, após as lutas passageiras da vida terrena, aguardam-nos as alegrias do convívio eterno com Deus, para o qual fomos chamados. No Céu, onde não será necessário armar tendas, nossa morada é preparada pelo Divino Mestre para fazer perdurar eternamente as alegrias de sua esplendorosa Transfiguração! ◊
Notas
1 RAMLOT, OP, Marie-Léon; GUILLET, SJ, Jacques. Promesas. In: LÉON-DUFOUR, SJ, Xavier (Org.). Vocabulario de teología bíblica. Barcelona: Herder, 1996, p.731.
2 CCE 1819.
3 Cf. COLUNGA, OP, Alberto; GARCÍA CORDERO, OP, Maximiliano. Biblia Comentada. Pentateuco. Madrid: BAC, 1960, v.I, p.192.
4 MOLLAT, SJ, Donatien. Velar. In: LÉON-DUFOUR, op. cit., p.925.
5 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Epistolam Sancti Pauli Apostoli ad Philippenses expositio. C.III, lect.3.
6 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.14, a.1, ad 2.
7 GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Réginald. L’éternelle vie et la profondeur de l’âme. Paris: Desclée de Brouwer, 1953, p.25.
8 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. In Symbolum Apostolorum. Art.11.
9 Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, op. cit., p.332-333.
10 SANTO AGOSTINHO. De Civitate Dei. L.XV, c.2. In: Obras. Madrid: BAC, 1958, v.XVI-XVII, p.998.
11 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.43, a.4.
12 MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los Cuatro Evangelios. Evangelio de San Mateo. Madrid: BAC, 1950, v.I, p.607-608.
13 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.8, a.1.
14 Cf. Idem, q.9, a.2.
15 Cf. Idem, q.45, a.2.
16 Cf. Idem, q.14, a.1, ad 2.
17 Cf. Idem, q.45, a.1, ad 3.
18 SANTO AMBRÓSIO. Tratado sobre el Evangelio de San Lucas. L.VII, n.10. In: Obras. Madrid: BAC, 1966, v.I, p.350.
19 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Vida pública. Madrid: Rialp, 2000, v.II, p.286.
20 SÃO LEÃO MAGNO. Hom. Sabb. ante II Dom. Quadr. Sur la Transfiguration, hom.38 [LI], n.2. In: Sermons. Paris: Du Cerf, 1961, v.III, p.16.
21 GUARDINI, Romano. O Senhor. Lisboa: Agir, 1964, p.70-71.
22 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Palestra. São Paulo, 19 nov. 1989.