Durante a Paixão o Senhor carregou o lenho da Cruz, que para Ele se converteria em cetro de poder. Com invencível firmeza, ostentou sobre seus divinos ombros, para adoração de todos os povos, o estandarte da salvação.
No sermão anterior percorremos os fatos que antecederam a prisão de Jesus e, conforme prometemos, vamos comentar agora, com auxílio da divina graça, o próprio desenrolar da Paixão.
Lançaram-se os filhos das trevas sobre a verdadeira Luz
Em sua sagrada oração (cf. Jo 17), tinha o Senhor deixado bem claro que n’Ele existiam de modo pleníssimo e veríssimo duas naturezas: a humana e a divina. De uma Lhe vinha o desejo de não sofrer, de outra, o de sofrer.
Tendo, porém, expulsado o temor próprio da fraqueza e confirmado a grandeza da força, retomou a resolução dos eternos desígnios e opôs à fúria do demônio, exercida através dos judeus, sua condição de Servo no qual nada existia de pecado. Deste modo, a causa de todos seria advogada pelo Único no qual havia a natureza de todos isenta do pecado.
Lançaram-se, pois, sobre a verdadeira Luz os filhos das trevas. Embora usassem tochas e lanternas, não escaparam das trevas de sua infidelidade ao não reconhecerem o Autor da luz. Apoderaram-se d’Aquele que Se dispunha a ser preso, levaram Aquele que Se deixava levar. Caso Ele tivesse querido resistir, impotentes se tornariam as mãos ímpias, mas a Redenção do mundo seria retardada. Sem sofrer, a ninguém salvaria Aquele que veio morrer pela salvação de todos.
Consentindo que O fizessem sofrer tudo quanto ousava o furor do populacho instigado pelos sacerdotes, foi conduzido a Anás, sogro de Caifás, e logo após reenviado a Caifás, por ordem de Anás. Depois das caluniosas acusações feitas a Ele e dos falsos testemunhos de pessoas subornadas, uma delegação dos pontífices O levou ao tribunal de Pilatos. […]
O Senhor foi entregue à fúria de seus inimigos
Vencido pela insânia da turba implacável, Pilatos deixou Jesus ser atormentado com desmedidos ultrajes e injúrias sem nome. Depois O apresentou à multidão, flagelado, coroado de espinhos e revestido com um manto de irrisão.
Indubitavelmente, assim agiu por julgar que isso aplacaria o ânimo de seus inimigos, que estes, satisfeitos em seu invejoso ódio, desistiriam de perseguir Aquele que ali viam já tão maltratado. Acirrou-se, entretanto, a ira daqueles que pediam aos gritos a libertação de Barrabás e a crucifixão de Jesus. “Caia o seu Sangue sobre nós e nossos filhos” (Mt 27, 25), rugia em uníssono a multidão. Obtiveram então os maus, para sua própria condenação, aquilo que pertinazmente exigiam. […]
Foi, pois, o Senhor entregue à fúria de seus inimigos e estes, para escarnecer de sua dignidade real, O obrigaram a carregar a Cruz. Cumpria-se assim a previsão de Isaías: “Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado; a soberania repousa sobre seus ombros” (Is 9, 5).
O Senhor carregou, portanto, o lenho da Cruz, que para Ele se converteria em cetro de poder. Para os ímpios isso era objeto de irrisão, mas aos olhos dos fiéis se manifestava um grande mistério, pois o gloriosíssimo vencedor do demônio e onipotente esmagador das forças adversas, resplandecente de beleza, portava o troféu de seu triunfo.
Com invencível firmeza, ostentava sobre seus ombros, para adoração de todos os povos, o estandarte da salvação. Pelo seu exemplo, fortalecia todos os seus seguidores, como que a dizer-lhes: “Quem não toma sua cruz e não Me segue, não é digno de Mim” (Mt 10, 38). […]
Fonte de todas as bênçãos, causa de todas as graças
Ó admirável poder da Cruz! Ó inefável glória da Paixão! Nela se encontra o tribunal do Senhor, o julgamento do mundo, o poder do Crucificado.
Atraístes efetivamente tudo a Vós, Senhor, e, enquanto estendíeis durante todo um dia vossos braços a um povo descrente que Vos contradizia (cf. Is 65, 2; Rm 10, 21), o mundo inteiro foi tocado pela luz divina para proclamar vossa majestade.
Atraístes tudo a Vós, Senhor, quando, por execração ao crime cometido contra Vós, todos os elementos proferiram a mesma sentença: obscureceram os luminares celestes, transformando o dia em noite; movimentos insólitos sacudiram a terra e toda a criação repudiou os ímpios.
Atraístes tudo a Vós, Senhor, porque, quando se rasgou o véu do Templo, o Santo dos Santos separou-se dos indignos pontífices, para a figura transformar-se na verdade; a profecia, na manifestação; e a Lei, no Evangelho.
Atraístes tudo a Vós, Senhor, para que aquilo que se celebrava apenas num templo da Judeia, sob umbrosos simbolismos, passasse a ser celebrado em todas as nações do universo, mediante um sacramento perfeito e manifesto.
Com efeito, agora a ordem dos levitas é mais ilustre, mais ampla a dignidade dos anciãos, mais sagrada a unção dos sacerdotes, porque vossa Cruz é a fonte de todas as bênçãos e a causa de todas as graças. Por ela, da fraqueza os fiéis recebem a fortaleza; do opróbrio, a glória; da morte, a vida.
Agora, cessada a variedade dos sacrifícios carnais, a oblação única de vosso Corpo e Sangue torna desnecessárias todas as outras vítimas, porque sois o verdadeiro “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1, 29). Assim, perfazeis em Vós todos os mistérios, para todos os povos formarem um só reino, da mesma forma como um só é o sacrifício.
“Os que vivem, já não vivam para si”
Confessemos, portanto, aquilo que o Bem-aventurado mestre das nações, Paulo Apóstolo, confessou com gloriosa voz: “Eis uma verdade absolutamente certa e merecedora de fé: Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores” (I Tim 1, 15).
Por isso, aqui é mais maravilhosa a misericórdia de Deus para conosco, porque Cristo não morreu pelos justos nem pelos santos, mas pelos iníquos e ímpios. E como não podia a natureza divina receber o aguilhão da morte, Ele nasceu de nós para assumir aquilo que por nós ofereceria. Com o poder de sua Morte, ameaçava Ele outrora a nossa morte, dizendo pelos lábios de Oseias: “Ó morte, Eu hei de ser a tua morte; ó inferno, Eu hei de ser a tua destruição” (13, 14, Vulgata).
Morrendo, sujeitou-Se Ele de fato às leis do inferno, mas, ressuscitando, as aboliu. Destruiu assim a perpetuidade da morte, fazendo-a passar de eterna a temporária. “Assim como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos reviverão” (I Cor 15, 22).
Desse modo, diletíssimos, faça-se o que diz o Apóstolo Paulo: “Os que vivem já não vivam para si, mas para Aquele que por eles morreu e ressurgiu” (II Cor 5, 15). Agora, como as coisas antigas passaram e tudo se fez novo, ninguém permaneça na vetustez da vida carnal, mas todos nós, progredindo dia após dia, nos renovemos pelo aumento da piedade. Pois, por mais que alguém esteja justificado, enquanto estiver nesta terra terá possibilidade de ser mais excelente. Quem não progride, regride; quem nada adquire, perde algo.
Cuidemos, portanto, de correr na cadência da fé, pelas obras de misericórdia, pelo amor à justiça, a fim de que, celebrando espiritualmente o dia de nossa Redenção, “não com o fermento velho, nem com o fermento da malícia e da corrupção, mas com os pães ázimos de pureza e de verdade” (I Cor 5, 8), mereçamos participar da Ressurreição de Cristo, que vive e reina com o Pai e o Espírito Santo por todos os séculos. Amém. ◊
São Leão Magno.
Excertos do Sermão LIX, sobre a
Paixão do Senhor: PL 54, 337-342