Por seu extraordinário amor à virgindade, Maria Santíssima mereceu ser a Mãe de Deus, mostrando para os séculos futuros quanto esta virtude é fecunda e confere força e coragem, a ponto de plasmar heróis.
Evangelho do IV Domingo do Advento
“Naquele tempo, 26 o Anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, 27 a uma Virgem, prometida em casamento a um homem chamado José. Ele era descendente de Davi e o nome da Virgem era Maria.
28 O Anjo entrou onde Ela estava e disse: ‘Alegra-Te, cheia de graça, o Senhor está contigo!’
29 Maria ficou perturbada com essas palavras e começou a pensar qual seria o significado da saudação.
30 O Anjo, então, disse-Lhe: ‘Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus. 31 Eis que conceberás e darás à luz um Filho, a quem porás o nome de Jesus. 32 Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai Davi. 33 Ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu Reino não terá fim’.
34 Maria perguntou ao Anjo: ‘Como acontecerá isso, se Eu não conheço homem algum?’
35 O Anjo respondeu: ‘O Espírito virá sobre Ti, e o poder do Altíssimo Te cobrirá com sua sombra. Por isso, o Menino que vai nascer será chamado Santo, Filho de Deus. 36 Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice. Este já é o sexto mês daquela que era considerada estéril, 37 porque para Deus nada é impossível’.
38 “Maria, então, disse: ‘Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em Mim segundo a tua palavra!’ E o Anjo retirou-se” (Lc 1, 26-38).
I – Todo movimento tende ao repouso
É inerente ao homem, concebido no pecado, padecer cansaço; o lado animal de nossa natureza facilmente se fatiga. Depois de nossos afazeres diários, sejam trabalhos ou estudos, chegada a noite temos uma necessidade vital de repousar, com maior razão se acordamos cedo. O próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, isento do pecado original e de qualquer outra mancha, quis assumir certas deficiências da natureza humana1 e Se cansava, como no episódio em que O encontramos dormindo na barca (cf. Mt 8, 23-27) ou quando está sentado à beira do poço de Jacó (cf. Jo 4, 6).
A fadiga — esta realidade cotidiana — nos traz à lembrança a consideração de São Tomás de Aquino,2 feita com tanta precisão e sabedoria, de que todo movimento tende ao repouso.
Quantas vezes observamos os jovens se agitando com velocidade e energia, de um lado para o outro! Mas ao crescer e maturar eles adquirem o desejo do sossego e da tranquilidade. O espírito humano busca a paz, em meio à movimentação intensa a que é submetido no decurso da vida. Assim, todos nós aspiramos à estabilidade e à quietude e, por isso, agrada-nos possuir uma propriedade e nela construir uma casa, na qual possamos morar sem nenhuma aflição.
Com frequência os homens têm também a preocupação de fazer perdurar sua memória, deixando neste mundo algo concreto que cruze os tempos e se mantenha através das gerações. Neste sentido, dentre os povos da Antiguidade destacam-se os egípcios: como a Providência deu a teologia e a Religião verdadeira aos judeus, a filosofia aos gregos e o direito aos romanos, àqueles o Senhor havia concedido a ciência. A maior prova dos conhecimentos excelentes que eles cultivavam e do empenho em prolongar seu renome no futuro são as pirâmides, as quais, podendo datar até de 2500 a.C., surpreendem ainda em nossos dias, continuando a ser um mistério seu método de edificação.
Nosso Senhor não erigiu edifícios
Nosso Senhor Jesus Cristo, pelo contrário, não erigiu edifício algum, nem sequer tinha uma casa, conforme declarou: “As raposas têm covas e as aves do céu, ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Lc 9, 58). Entretanto, Ele marcou a História e a dividiu em duas partes!
Ele é o Homem-Deus, em quem está o critério absoluto, o paradigma de tudo, inclusive de como perpetuar uma obra. O que Ele fez? Legou-nos suas palavras — mais tarde anotadas por outros —, é verdade, mas sobretudo recrutou discípulos, formou Apóstolos e os transformou em varões unidos a Deus. O monumento por Ele construído não é material, mas é próprio a permanecer e atravessar os séculos, porque está fundamentado na sua Aliança: “tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (Mt 16, 18).
Israel busca a estabilidade depois de longos e conturbados séculos
Este anelo humano por uma situação segura e estável é exatamente o que transparece na primeira leitura (II Sm 7, 1-5.8b-12.14a.16) deste 4º Domingo do Advento. No decorrer de sua conturbada história, os hebreus sofreram sempre uma tremenda instabilidade: já em seus primórdios, devido a uma grande fome em toda a terra, o patriarca Jacó desceu com a família ao Egito, onde seu filho José era administrador (cf. Gn 47, 1-6), e ali seus descendentes se multiplicaram. Contudo, quando ascendeu ao trono um faraó “que não tinha conhecido José” (Ex 1, 8), impôs-lhes “a mais dura servidão” (Ex 1, 13), pois temia que os filhos de Israel, fortes e numerosos, se unissem aos inimigos do Egito, ao mesmo tempo que percebia constituírem eles uma preciosa mão de obra para o seu reino (cf. Ex 1, 10; 14, 5). Oprimidos e reduzidos à escravidão, viveram em terras egípcias mais de quatro séculos,3 até, em certo momento, surgir Moisés, que por ordem divina os fez sair do Egito e transpor o Mar Vermelho a pé enxuto, enquanto as tropas do Faraó foram deglutidas pelas águas. A partir daí os israelitas começaram a vaguear pelo deserto e nele erraram durante quarenta anos, sem encontrar sua meta, por terem se revoltado contra o Senhor (cf. Nm 14, 32-35). Quem segue a narrativa sagrada utilizando um mapa comprova, com aflição, o percurso que eles fizeram…
Ao chegarem finalmente à Terra Prometida, inúmeras foram as dificuldades e incertezas que lhes coube enfrentar, até ser suscitado Davi, o segundo rei de Israel. Davi sentia o desígnio de Deus sobre si e sabia-se galardoado por sua dadivosidade infinita. Conforme o Senhor lhe mandara dizer, deixou o pastoreio para ser chefe do povo eleito, como consta na primeira leitura de hoje (cf. II Sm 7, 8b). Também ele estava à procura da tranquilidade e, com o auxílio divino, conseguiu livrar-se de todos os inimigos que o cercavam e instalar-se em sua moradia. Mas sendo um homem justo, que mantinha sua atenção voltada para as coisas do alto, queria para Deus mais do que para si e, por isso, disse ao profeta Natã: “Vê: eu resido num palácio de cedro, e a Arca de Deus está alojada numa tenda!” (II Sm 7, 2).
Com efeito, não havia uma construção sólida para acolher a Arca da Aliança, e Davi tinha anseio de edificar um Templo — e não mais uma tenda, como a que até então servira para abrigá-la —, a fim de manifestar a Deus sua gratidão, ou seja, retribuir tudo o que d’Ele recebera, dando estabilidade àquela figura de Deus que, desde os tempos de Moisés, acompanhava constantemente o povo.
A Arca era tão sagrada que só os sacerdotes podiam tocá-la. Qualquer outro que pusesse a mão sobre ela morreria no mesmo instante. Foi o que aconteceu quando Davi mandou trazer a Arca de Baalé de Judá para sua cidade: os bois que puxavam o carro onde ela estava escorregaram e a Arca ia cair ao chão. Certo homem de nome Oza, para evitar que isso ocorresse, a susteve no ar, mas logo caiu morto, ferido pela cólera de Deus (cf. II Sm 6, 1-7). A Arca era um sinal da Aliança de Deus com Israel, um penhor de que o Senhor cumpriria todas as promessas; ela simbolizava, enfim, a presença de Deus entre os homens.
Uma promessa que superava a generosidade de Davi
Ante a proposta de Davi, Natã aconselhou-o a agir de acordo com o seu coração (cf. II Sm 7, 3); mas, naquela noite, o Senhor comunicou-Se ao profeta, revelando que Davi não levaria a cabo seu intento. Sendo Deus o dono absoluto de tudo, pode por Si mesmo construir um templo para sua glória, sem necessidade alguma do concurso das criaturas. Todavia, vendo o bom desejo de Davi, dar-lhe-ia muito mais que um templo ou um palácio; Ele faria uma casa muito especial para Davi, confirmando sua realeza e prometendo-lhe descendência: “Quando chegar o fim dos teus dias e repousares com teus pais, então suscitarei, depois de ti, um filho teu, e confirmarei a sua realeza. Eu serei para ele um Pai e ele será para Mim um filho. Tua casa e teu reino serão estáveis para sempre diante de Mim, e teu trono será firme para sempre” (II Sm 7, 12.14a.16).
A Davi, que queria levantar um edifício material, Deus mostrava como a perenidade de uma obra provém da Aliança feita com Ele. Sem ela, qualquer ação, ainda que realizada com inteligência, perspicácia e esperteza humana, não atravessa os séculos. É preciso, porém, jamais abandonar esta Aliança de forma alguma, porque ela é considerada pela Providência com carinho e santo ciúme, segundo lemos no Salmo Responsorial do dia: “Guardarei eternamente para ele a minha graça e com ele firmarei minha Aliança indissolúvel” (Sl 88, 29). Tão forte era a relação existente entre Deus e Davi, que Ele, conhecendo tudo como presente, contemplava em Davi — como já vira desde toda eternidade — o próprio Salvador, nascido da sua estirpe após inúmeras gerações.
É justamente nesta particular casa e neste descendente prometidos a Davi que se centra o Evangelho do último Domingo do Advento, numa Liturgia rica em imagens preparatórias para o Natal que se aproxima.
II – Maria, Casa de Deus e fruto da Aliança
A casa erigida por Deus para a tranquilidade de Davi é uma Virgem, oriunda de sua linhagem, chamada Maria. Ela é a Casa de Deus por excelência, Aquela que traz a verdadeira estabilidade e a plenitude da paz. Ela é o prêmio da Aliança que o Senhor firmou com Davi, seu fruto mais extraordinário. Depois d’Ela virá Aquele cuja personalidade não é humana, e sim divina, Aquele que é ao mesmo tempo criatura e Criador, Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Maria Santíssima.
O fragmento de São Lucas que analisaremos a seguir é conhecidíssimo.4 Mas o Evangelho, cujas frases sucintas — ó maravilha! — sempre apresentam aspectos novos, assemelha-se a um caleidoscópio que, embora tenha poucas pedrinhas em seu interior, ao ser girado inúmeras vezes nunca forma uma figura idêntica às anteriores.
Um Deus Encarnado pedia um horizonte à altura
“Naquele tempo, 26 o Anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, 27 a uma Virgem, prometida em casamento a um homem chamado José. Ele era descendente de Davi e o nome da Virgem era Maria”.
Nazaré era uma cidadezinha minúscula, situada numa pequena depressão, em meio às suaves montanhas da Galileia. Suas casas, construídas não no fundo do vale, mas encarapitadas sobre os penhascos, nas encostas do Monte Neby-Sain, davam à paisagem um toque gracioso e encantador. Este monte, o mais alto de todos os que circundam a cidade, tem a peculiaridade de possuir uma vista maravilhosa. “É seguramente” — comenta Fillion — “um dos mais belos e emocionantes [panoramas] de que se possa gozar na Palestina. […] Por todos os lados, vastas extensões, terrestres, aéreas e marítimas, disputam nossa atração; por todos os vales, montanhas, cidades ou aldeias, o mar e sua imensidão. […] Que espetáculo! Quantas vezes Nosso Senhor, durante sua adolescência e juventude, não oraria sobre este altar sublime e dirigiria seus olhares para o mar”!5
Vemos neste detalhe como a Providência, ao escolher uma aldeia sem importância, quis sublinhar a pobreza e o apagamento no qual o Deus Encarnado — Aquele que é a Humildade em essência — preferiu viver durante um longo período, distante das vistas humanas. Para realizar tal desígnio, Ele poderia ter optado por uma região baixa e profunda; mas preferiu habitar num lugar elevado, com panorama amplo, porque sua natureza divina exigia que a natureza humana assumida tivesse um horizonte mais de acordo com a altura d’Ele, Deus!
Maria teve a maior plenitude de graça possível
28 “O Anjo entrou onde Ela estava e disse: ‘Alegra-Te, cheia de graça, o Senhor está contigo!’”
A expressão “o Anjo entrou” é sinal de que Maria estava recolhida em sua casa, e decerto rezava. O que disse o Anjo? “Alegra-Te, cheia de graça, o Senhor está contigo!”. É presumível que a frase não tenha sido estritamente esta, e sim muito mais extensa; no entanto, detenhamos nossa atenção nas palavras “cheia de graça”.
Levando em conta o quanto na economia da graça tudo se passa de maneira muito diferente da economia dos homens, devemos considerar que Maria Santíssima recebeu, desde a sua concepção, o máximo da graça que a uma criatura humana é dado ter. E que excelência era esta! Se somássemos toda a graça dos Anjos e dos Bem-aventurados que existiram e existirão até o fim do mundo, já em seu grau consumado, não atingiria a superabundância inicial de Nossa Senhora. Ademais, é preciso lembrar que, a partir do momento de sua criação, Ela possuía a ciência infusa, bem como toda a piedade, todas as virtudes e todos os dons do Espírito Santo, de modo que seu primeiro ato de vontade foi de amor a Deus. À medida que Ela ia progredindo, esta caridade também crescia: a cada segundo seu amor era perfeitíssimo, completo, e Ela chegava à máxima semelhança possível com Deus; e no segundo seguinte Ela avançava mais, tendo sempre em Si a plenitude da graça que poderia conter naquele instante.
Por que e como terminou, então, a Santíssima Virgem o curso desta vida, uma vez que, concebida sem pecado original, Ela não sofreu doença alguma e, por conseguinte, não teve nenhuma causa mortis? Nossa Senhora foi impelida a abandonar a Terra porque era tal a quantidade de graça derramada em sua alma, que se diria ter Ela esgotado toda a capacidade de receber… N’Ela não cabia mais graça.
O profundo significado de uma breve saudação
29 “Maria ficou perturbada com essas palavras e começou a pensar qual seria o significado da saudação”.
Pela narração do Evangelista vê-se que Maria não estranhou a presença do angélico visitante, tanto mais que Se encontrava Ela em estado de oração. Por tal motivo, vários autores6 concordam em afirmar que Maria tinha familiaridade com estes seres celestes e em nada Se alterou; apenas Se perturbou com suas palavras. Sendo o Anjo um embaixador de Deus, compreendia que a saudação era o Senhor quem a mandava transmitir. Talvez até já houvesse visto Gabriel, pois este não se apresentou, como ocorreu na aparição a Zacarias (cf. Lc 1, 19).
Em virtude de sua predestinação como Mãe do Criador, é evidente que corresponde também a Nossa Senhora o título de Mãe de toda a criação e, enquanto tal, estava Ela relacionada com a ordem do universo e com o desenrolar da História, pelo que Ela conhecia a Escritura perfeitissimamente e tinha clara noção dos acontecimentos e das profecias, desde a queda dos anjos no Céu e a expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Ela sabia da iminência do advento do Messias prometido.
É bem provável que estivesse Ela cogitando no Messias, segundo defende São João Eudes: “O Verbo Incriado e Encarnado é o Filho e o fruto do Coração de Maria, antes de ser o fruto de seu seio. […] Este Verbo adorável quer que sua Santa Mãe O produza por uma geração espiritual, antes de produzi-Lo por uma geração corporal; […] para que sua geração temporal tenha maior relação e conformidade com sua geração eterna; e para que sua Bem-Aventurada Mãe possua maior semelhança com seu Pai Divino; e para que o Coração da Mãe seja uma imagem viva e um eco santíssimo do Coração do Pai”.7 Assim, Maria Se extasiava elaborando a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo, a ponto de imaginar como seriam os seus gestos, o porte, a mentalidade, a voz, como Ele faria o bem; Ela só ignorava quem seria sua Mãe e A buscava no horizonte, procurando idealizar também as características d’Ela.
Ora, a perturbação de Maria mostra como seu espírito era profundo e como Ela pensou não só no sentido imediato do que Lhe fora dito, mas no significado das palavras e em todas as suas consequências, tanto a respeito d’Ela quanto do panorama histórico. Com sua insuperável ciência teológica, logo terá feito uma correlação entre a saudação angélica e a maternidade divina, indagando como Se haver diante daquilo que deduzia…
A todo custo, manter a virgindade!
30 “O Anjo, então, disse-Lhe: ‘Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus. 31 Eis que conceberás e darás à luz um Filho, a quem porás o nome de Jesus. 32 Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai Davi. 33 Ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu Reino não terá fim’. 34 Maria perguntou ao Anjo: ‘Como acontecerá isso, se Eu não conheço homem algum?’”
Para acalmar a inquietação de Maria, o Anjo anunciou o que iria suceder, bem como os traços distintivos do reinado do Messias, os quais, sem dúvida, coincidiam com as meditações feitas por Ela. Talvez até a descrição do Anjo fosse insuficiente, pois a ele quiçá não tenham sido revelados certos detalhes que Ela já havia contemplado. Mas, em meio àquela inesperada comunicação, emergia para Nossa Senhora uma dificuldade: nunca pensara que pudesse ser Ela a Mãe do Messias! Um único receio a deixava troublée, perplexa. Com efeito, desde o primeiro instante de sua concepção imaculada, entre a multiplicidade das graças que Lhe tinham sido dadas, reluzia o extraordinário amor ao estado de virgindade e um chamado altíssimo à perfeita prática da castidade. Logo nos primórdios de sua existência, gozando do uso da razão, Ela fizera voto de virgindade e, quando ingressara no Templo, ainda menina, já Se entregara a Deus enquanto Virgem.
O texto evangélico é muito delicado ao sublinhar que Nossa Senhora não pusera objeção alguma ao plano de Deus, e apenas formulara uma pergunta. Na verdade, se manifestasse outro temor ou levantasse dúvidas sobre qualquer ponto, não seria digna de ser a Mãe de Deus. Ela queria, isto sim, um esclarecimento acerca de como se realizaria este inefável mistério. Atitude bem diferente, por exemplo, da de Zacarias, ao inquirir sobre o nascimento de São João Batista: “Como terei certeza disso? Pois sou velho e minha mulher é de idade avançada” (Lc 1, 18). Ele, porque não deu crédito às palavras do Anjo (cf. Lc 1, 20), permaneceu mudo até o dia da circuncisão do Precursor.
Estava a Santíssima Virgem prometida em casamento a José, como se lê no versículo 27, ou seja, as bodas deveriam estar em preparação. E embora os comentaristas discutam a propósito desta particularidade, não vacilamos em afirmar que São José não só fora informado com precisão do desígnio de Maria, como estava em inteira concordância com ele, tendo os dois já conversado sobre isso e chegado à conclusão de que Deus os preparava para tal: ambos guardariam a virgindade para o resto da vida, até a morte. O “Eu não conheço” expressa isso; do contrário, Ela não interrogaria o Anjo e seria levada à ilusão de que da união conjugal com José nasceria o Messias.
Caso verdadeiramente inédito, pois, naqueles tempos, tanto para o homem quanto para a mulher — com raríssimas exceções, como Santo Elias —, a virgindade não era uma opção cabível. Se a ausência de filhos no matrimônio era interpretada como uma falta de bênçãos da parte de Deus, muito mais o era o não casar-se. Entretanto, Nossa Senhora vinha inaugurando uma via nova e encontrou um esposo ideal, ao ser ouvida sua oração: ele seria a proteção da virgindade d’Ela e Ela seria a proteção da virgindade dele.
De um lado, Maria não queria negar o seu consentimento à mensagem divina transmitida pela voz do Arcanjo; de outro, desejava manter a todo custo a virgindade, receando ofender a Deus ou, ao menos, desmerecer este privilégio, não tanto pelo que este de si importava para Ela, mas pela glória que dava a Deus. Daí a sua perplexidade…
A virgindade, uma virtude amada por Deus
35 “O Anjo respondeu: ‘O Espírito virá sobre Ti, e o poder do Altíssimo Te cobrirá com sua sombra. Por isso, o Menino que vai nascer será chamado Santo, Filho de Deus. 36 Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice. Este já é o sexto mês daquela que era considerada estéril, 37 porque para Deus nada é impossível’”.
Certos autores dizem não ter Nossa Senhora sequer imaginado, naquela ocasião, que “o Espírito” era a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, porque a Revelação deste mistério ainda não fora feita. No entanto, quem aqui escreve não é desta tese, pois crê que Maria já sabia da existência de três Pessoas em Deus e, quando o Anjo mencionou o Espírito, Ela entendeu claramente seu verdadeiro significado. Só a primeira parte da resposta — contida no versículo 35 — bastava a Maria Santíssima porque, mais que ninguém, Ela acreditava no poder absoluto do Altíssimo; apesar de ser desnecessária para a sua fé, o celeste embaixador deu-Lhe uma prova: sua prima Isabel havia concebido na velhice.
Conhecia Deus o insigne amor à virtude da castidade, sobretudo à virgindade, que Ele mesmo infundira na Santíssima Virgem ao criá-La. Por isso tinha não só de mandar o Arcanjo São Gabriel transmitir uma mensagem — “Sereis Mãe” —, como também de orientar o Anjo acerca do que iria acontecer, para que resolvesse o problema que surgiria no fundo da alma d’Ela, de modo a não sobressaltá-La.
Vemos quanto o apreço pela virgindade está realçado, não só na pessoa da Virgem Maria, mas nas outras duas pessoas envolvidas na Anunciação: São Gabriel e o próprio Deus! Ele, o Onipotente, ao Se encarnar, quis preservar de toda forma a virgindade de sua Mãe Santíssima, demonstrando que se Ele criou o homem e a mulher com vistas ao casamento, Ele ama muito mais a virgindade, de si, do que o matrimônio.
Virgem, Mãe e escrava…
38 “Maria, então, disse: ‘Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em Mim segundo a tua palavra!’ E o Anjo retirou-se”.
Ao ouvir a explicação do Anjo, Maria fez um ato de inteira submissão à vontade de Deus. Nós rezamos estas palavras todos os dias no Angelus, mas talvez sem penetrar no seu sentido mais profundo. Naqueles tempos a escravidão era a condição mais deplorável possível para uma criatura humana, o mais completo opróbrio, pois, segundo o Direito Romano — sob o qual Maria Se encontrava —, o escravo era considerado res, quer dizer, coisa, não tendo direito a nada. Não obstante, Ela Se diz escrava do Senhor com toda a consciência, colocando-Se nas mãos de Deus que, com inteira liberalidade, esperava d’Ela a resposta.
Assim, sem romper em nada seu voto, Nossa Senhora concebe um Filho. O Filho de Deus Se torna Filho d’Ela, como canta Santo Ildefonso com inspirado verbo: “somente Ela é Virgem e Mãe do Deus-Homem, um só Cristo. Engendrando um único Filho em uma e outra natureza, de tal modo que um mesmo seja Filho de Deus e Filho do Homem, e não seja distinto o Filho do Homem do Filho de Deus”.8
Este Divino Filho tem como porta de entrada no mundo a virgindade de Maria Santíssima, porque Ela permaneceu Virgem antes, durante e depois do parto. Como é bela a virtude da castidade, como é admirável o estado de virgindade! Aqui se torna patente quão errônea é a ideia de que a virgindade não produz; ela é, pelo contrário, fértil. Inúmeros fatos na História mostram o quanto a virgindade confere força e coragem, a ponto de plasmar heróis. “Nada há de mais sublime” — exclama São Bernardo — “do que uma virgindade fecunda e uma fecundidade virginal: são dois astros que se enriquecem mutuamente com seus raios. Grande coisa é ser virgem; mas ser Virgem e Mãe transborda todas as medidas”.9
Nossa Senhora, Virgem, passa a ser Mãe da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade e, por conseguinte, Mãe de todos os Anjos e todos os homens que, no decurso dos séculos, abraçam a via da santidade. Estes serão chamados filhos de Maria!
III – E o Templo Se fez carne!
No momento da aceitação, quando Maria pronuncia seu “Fiat!”, conclui-se de forma maravilhosa e superabundante, como não se podia imaginar, a promessa de Deus a Davi, baseada numa Aliança indissolúvel, e a realeza se torna eterna. O Pai concede à humanidade o Templo por excelência! É assim que Deus trata aqueles que são seus verdadeiros amigos, filhos e servos; que premeia os que, tendo noção clara de sua dependência em relação a Ele, Lhe entregam tudo o que é seu: sempre lhes outorga muito mais do que eles ofertaram!
O rei Davi julgava dar o máximo a Deus dedicando-Lhe um templo; mas o Senhor queria que ele Lhe oferecesse sua linhagem, porque Ele mesmo, Deus, já lhe preparara uma posteridade especialíssima. E ao confiá-la ao Senhor, Davi mereceu ser antepassado do Salvador, isto é, do próprio Deus.
Maria Santíssima aspirava a ser escrava da Mãe do Messias; Deus, porém, mandou um Anjo para convidá-La a uma escravidão muito maior… a escravidão a Ele! Nossa Senhora compreendeu no primeiro instante, ao receber o anúncio do Anjo, que aquele Filho, embora fosse d’Ela, deveria ser totalmente restituído a Deus, porque Ele era o Filho de Deus e, sendo Ela também de Deus, o Filho muito mais pertencia a Ele do que a Ela… E, portanto, Ela tinha de conduzi-Lo, em tudo, de pleno acordo com a vontade do Pai a respeito do destino deste Filho… Foi-Lhe revelado ainda que Ele iria sofrer a terrível morte de Cruz. E Maria tudo consentiu por amor a Deus, sabendo que Ele queria, desta maneira, redimir o gênero humano!
A estabilidade está na santidade
Assim precisamos ser nós, que saímos de Deus e temos de voltar para Ele. Se buscamos a estabilidade, é sobretudo porque somos criados para servir, louvar e reverenciar a Deus, e mediante isto salvar nossa alma, a fim de vivermos com Ele e contemplá-Lo face a face por toda a eternidade.
Na Liturgia de hoje Deus nos chama à santidade e quer de nós um fiat, como o de Nossa Senhora, uma entrega radical, cheia de fogo e entusiasmo: “Faça-se em Mim segundo a tua palavra!”. Só na correspondência à graça e na fidelidade à fé, ou seja, sendo santos, obteremos a estabilidade e cada um de nós será “templo de Deus” (I Cor 3, 16), sempre belo e em ordem, como Nosso Senhor Jesus Cristo Homem é soberanamente o Templo de Deus. ◊
Notas
“Pela genealogia de José, Maria possuía parentesco com ele, e a origem de Maria (Mãe de Jesus) também precisava ser demonstrada…”
Jerônimo – Século IV da Era Cristã.
“… (Jesus) é Aquele que existia Antes do luzeiro da manhã e da lua. Todavia, ele se dignou nascer feito homem daquela virgem (Maria) da descendência de Davi, para, por meio desta sua economia, destruir a serpente perversa”.
Justino de Roma – Século II da Era Cristã.
“E cumpriu o que foi prometido a Davi, pois Deus havia se comprometido a suscitar de fruto do seu seio um rei eterno, cujo reino não teria fim. Este Rei é Cristo, filho de Deus, feito filho do homem, isto é, nascido, como fruto, da virgem descendente de Davi; e se a promessa foi do fruto de seu seio – a saber, um rebento da concepção característica da mulher, e não fruto do homem nem dos rins, como é característico do varão – era pra anunciar o que era de único e próprio na produção deste fruto de um seio virginal procedente de Davi…”
Irineu – Século II da Era Cristã.
Acerca de seu Filho, que Nasceu da Descendência de Davi segundo a carne,
Romanos 1:3
“..O SENHOR Jurou a Verdade a Davi, e Não o enganou:”Porei em Meu Trono o Fruto do teu Seio.Uno e Idêntico é CRISTO DEUS, Fruto do Seio de Davi, isto é, da Virgem, Descendente de Davi..Maria…”
Irineu de Lião-180 da Era Cristã.