Evangelho do Domingo de Ramos da Paixão do Senhor
Evangelho da Procissão
Naquele tempo, 1 Jesus e seus discípulos aproximaram-se de Jerusalém e chegaram a Betfagé, no Monte das Oliveiras. Então Jesus enviou dois discípulos, 2 dizendo-lhes: “Ide até o povoado que está ali na frente, e logo encontrareis uma jumenta amarrada, e com ela um jumentinho. Desamarrai-a e trazei-os a Mim! 3 Se alguém vos disser alguma coisa, direis: ‘O Senhor precisa deles, mas logo os devolverá’”.
4 Isso aconteceu para se cumprir o que foi dito pelo profeta: 5 “Dizei à filha de Sião: Eis que o teu Rei vem a ti, manso e montado num jumento, num jumentinho, num potro de jumenta”.
6 Então os discípulos foram e fizeram como Jesus lhes havia mandado. 7 Trouxeram a jumenta e o jumentinho e puseram sobre eles suas vestes, e Jesus montou. 8 A numerosa multidão estendeu suas vestes pelo caminho, enquanto outros cortavam ramos das árvores, e os espalhavam pelo caminho. 9 As multidões que iam na frente de Jesus e os que O seguiam, gritavam: “Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana no mais alto dos Céus!”
10 Quando Jesus entrou em Jerusalém a cidade inteira se agitou, e diziam: “Quem é este Homem?” 11 E as multidões respondiam: “Este é o Profeta Jesus, de Nazaré da Galileia” (Mt 21, 1-11).
I – Triunfo prenunciativo da
glória da Ressurreição
Ao considerar no Domingo de Ramos a entrada triunfal de Nosso Senhor Jesus Cristo em Jerusalém, devemos ter presente que a Liturgia não é apenas uma rememoração de fatos históricos, mas, sobretudo, uma ocasião para receber as mesmas graças criadas por Deus naquele momento, e distribuídas ao povo judeu que lá se encontrava. Por isso a Igreja Católica estimula os fiéis a repetir simbolicamente essa cerimônia, a fim de se iniciar a Semana Santa com a alma bem preparada.
Na Antiguidade, os grandes heróis militares e os atletas vencedores eram saudados com ramos de palma, para honrá-los pelo triunfo alcançado. Portanto, Jesus quis que sua Paixão, cujo ápice se deu no Calvário, fosse marcada pelo triunfo já na abertura, antecipando a glória da Ressurreição que viria depois.
À vista deste contraste podemos ficar surpresos: como a Igreja combina ambos os aspectos nesta circunstância? Entretanto, isto não nos deve causar estranheza, já que, no extremo oposto, ela contempla a Ressurreição de um modo semelhante. Quando, dentro de poucos dias, estivermos celebrando o magnífico rito da Vigília Pascal, no qual tudo será júbilo, ouviremos no cântico do Precônio notas relativas aos tormentos e à Morte de Cristo: “Foi Ele quem pagou do outro a culpa, quando por nós à morte Se entregou: para apagar o antigo documento, na Cruz todo o seu Sangue derramou. Pois eis agora a Páscoa, nossa festa, em que o Real Cordeiro Se imolou: marcando nossas portas, nossas almas, com seu divino Sangue nos salvou. […] Ó Deus, quão estupenda caridade vemos no vosso gesto fulgurar: não hesitais em dar o próprio Filho, para a culpa dos servos resgatar. Ó pecado de Adão indispensável, pois o Cristo o dissolve em seu amor; ó culpa tão feliz que há merecido a graça de um tão grande Redentor!” 1 Também na lindíssima Sequência Victimæ Paschali laudes, correspondente à Missa do Dia da Páscoa, será dito: “Duelam forte e mais forte: é a vida que enfrenta a morte. O rei da vida, cativo, é morto, mas reina vivo!”2 Assim, o Domingo de Ramos da Paixão do Senhor, pórtico da Semana Santa, contém também o triunfo.
Este primeiro aspecto da celebração de hoje nos ensina o quanto é uma falha conceber a Redenção operada por Nosso Senhor centrando-se só na dor. Também, e talvez principalmente, ela comporta o gáudio da Ressurreição, pois, se os padecimentos de Jesus se estenderam da noite de Quinta-Feira até a hora nona de Sexta-Feira, e sua Alma tenha se separado do Corpo por cerca de trinta e nove horas – como se pode deduzir das narrações evangélicas –, o período de glória prolongou-se por quarenta dias, aqui na terra, e permanece por toda a eternidade no Céu.
Foi esta a noção que faltou aos Apóstolos ao verem o Divino Mestre entristecer-Se, suar Sangue e deixar-Se prender por vis soldados; em consequência, O abandonaram. Na verdade, já não mais se lembravam dos reiterados anúncios que Ele lhes fizera a propósito de sua Morte e Ressurreição ao terceiro dia (cf. Mt 17, 21-22; 20, 18-19). Nossa Senhora, pelo contrário, embora cheia de dor e com o coração transpassado por uma espada (cf. Lc 2, 35), não desfaleceu, porque guardava no fundo da alma a certeza de que seu Filho ressuscitaria. E quando Ele saiu do túmulo, na plenitude de sua majestade, seguramente foi Ela a primeira pessoa a quem Jesus apareceu, como já tivemos oportunidade de comentar. 3
Uma clave para considerar a Paixão do Senhor
Contemplemos a Liturgia de hoje com esta perspectiva, revivendo aqueles momentos de gozo em que Jesus entra na Cidade Santa, com vistas a passarmos depois pelas angústias da Paixão e pelas alegrias da Ressurreição. Que as graças derramadas sobre todos os participantes dessa primeira procissão, na qual estava presente o Redentor, desçam sobre nós e cumulem nossas almas, fazendo-nos compreender bem o papel do sofrimento em nossa vida de católicos apostólicos romanos, enquanto meio indispensável para chegar à glória final e definitiva. Dor e triunfo encontram-se aqui magnificamente entrelaçados. “Per crucem ad lucem! – É pela cruz que alcançamos a luz!”
Sendo impossível, no reduzido espaço de um artigo, tecer um comentário detalhado sobre cada um dos Evangelhos que a Igreja propõe para este dia, comporemos uma reflexão, tendo em mente ambos os textos.
Evangelho da Santa Missa
Naquele tempo, 11 Jesus foi posto diante de Pôncio Pilatos, e este O interrogou: “Tu és o Rei dos judeus?” Jesus declarou: “É como dizes”, 12 e nada respondeu, quando foi acusado pelos sumos sacerdotes e anciãos. 13 Então Pilatos perguntou: “Não estás ouvindo de quanta coisa eles Te acusam?” 14 Mas Jesus não respondeu uma só palavra, e o governador ficou muito impressionado.
15 Na festa da Páscoa, o governador costumava soltar o prisioneiro que a multidão quisesse. 16 Naquela ocasião, tinham um prisioneiro famoso, chamado Barrabás. 17 Então Pilatos perguntou à multidão reunida: “Quem vós quereis que eu solte: Barrabás, ou Jesus, a quem chamam de Cristo?” 18 Pilatos bem sabia que eles haviam entregado Jesus por inveja. 19 Enquanto Pilatos estava sentado no tribunal, sua mulher mandou dizer a ele: “Não te envolvas com esse Justo! porque esta noite, em sonho, sofri muito por causa d’Ele”.
20 Porém, os sumos sacerdotes e os anciãos convenceram as multidões para que pedissem Barrabás e que fizessem Jesus morrer. 21 O governador tornou a perguntar: “Qual dos dois quereis que eu solte?” Eles gritaram: “Barrabás”. 22 Pilatos perguntou: “Que farei com Jesus, que chamam de Cristo?” Todos gritaram: “Seja crucificado!” 23 Pilatos falou: “Mas, que mal Ele fez?” Eles, porém, gritaram com mais força: “Seja crucificado!”
24 Pilatos viu que nada conseguia e que poderia haver uma revolta. Então mandou trazer água, lavou as mãos diante da multidão, e disse: “Eu não sou responsável pelo Sangue deste Homem. Este é um problema vosso!” 25 O povo todo respondeu: “Que o Sangue d’Ele caia sobre nós e sobre os nossos filhos”. 26 Então Pilatos soltou Barrabás, mandou flagelar Jesus, e entregou-O para ser crucificado. 27 Em seguida, os soldados de Pilatos levaram Jesus ao palácio do governador, e reuniram toda a tropa em volta d’Ele. 28 Tiraram sua roupa e O vestiram com um manto vermelho; 29 depois teceram uma coroa de espinhos, puseram a coroa em sua cabeça, e uma vara em sua mão direita. Então se ajoelharam diante de Jesus e zombaram, dizendo: “Salve, Rei dos judeus!” 30 Cuspiram n’Ele e, pegando uma vara, bateram na sua cabeça. 31 Depois de zombar d’Ele, tiraram-Lhe o manto vermelho e, de novo, O vestiram com suas próprias roupas. Daí O levaram para crucificar. 32 Quando saíam, encontraram um homem chamado Simão, da cidade de Cirene, e o obrigaram a carregar a Cruz de Jesus.
33 E chegaram a um lugar chamado Gólgota, que quer dizer “lugar da caveira”. 34 Ali deram vinho misturado com fel para Jesus beber. Ele provou, mas não quis beber. 35 Depois de O crucificarem, fizeram um sorteio, repartindo entre si as suas vestes. 36 E ficaram ali sentados, montando guarda. 37 Acima da cabeça de Jesus puseram o motivo da sua condenação: “Este é Jesus, o Rei dos judeus”.
38 Com Ele também crucificaram dois ladrões, um à direita e outro à esquerda de Jesus. 39 As pessoas que passavam por ali O insultavam, balançando a cabeça e dizendo: 40 “Tu, que ias destruir o Templo e construí-lo de novo em três dias, salva-Te a Ti mesmo! Se és o Filho de Deus, desce da Cruz!” 41 Do mesmo modo, os sumos sacerdotes, junto com os mestres da Lei e os anciãos, também zombavam de Jesus: 42 “A outros salvou… a Si mesmo não pode salvar! É Rei de Israel… Desça agora da Cruz! e acreditaremos n’Ele. 43 Confiou em Deus; que O livre agora, se é que Deus O ama! Já que Ele disse: Eu sou o Filho de Deus”.
44 Do mesmo modo, também os dois ladrões, que foram crucificados com Jesus, O insultavam. 45 Desde o meio-dia até as três horas da tarde, houve escuridão sobre toda a terra. 46 Pelas três horas da tarde, Jesus deu um forte grito: “Eli, Eli, lamá sabactâni?”, que quer dizer: “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?” 47 Alguns dos que ali estavam, ouvindo-O, disseram: “Ele está chamando Elias!” 48 E logo um deles, correndo, pegou uma esponja, ensopou-a em vinagre, colocou-a na ponta de uma vara, e Lhe deu para beber. 49 Outros, porém, disseram: “Deixa, vamos ver se Elias vem salvá-Lo!” 50 Então Jesus deu outra vez um forte grito e entregou o espírito.
51 E eis que a cortina do santuário rasgou-se de alto a baixo, em duas partes, a terra tremeu e as pedras se partiram. 52 Os túmulos se abriram e muitos corpos dos Santos falecidos ressuscitaram! 53 Saindo dos túmulos, depois da Ressurreição de Jesus, apareceram na Cidade Santa e foram vistos por muitas pessoas. 54 O oficial e os soldados que estavam com ele guardando Jesus, ao notarem o terremoto e tudo que havia acontecido, ficaram com muito medo e disseram: “Ele era mesmo Filho de Deus!” (Mt 27, 11-54).
II – O contraste entre a Bondade incriada
e a maldade humana
Nosso Senhor Jesus Cristo poderia, com toda justiça, ter-Se exaltado a Si mesmo, sem incorrer em pecado algum – pelo contrário, seria um grande ato de virtude, pois Ele é digno de todo o louvor –, mas renunciou a isso para nos dar o exemplo. E embora as aclamações que Ele permitiu (cf. Lc 19, 39-40) a seus discípulos e ao povo, no Domingo de Ramos, constituam, quiçá, uma exceção a esta regra… quão escassas são em relação ao que realmente Ele merece!
Talvez, por isso, nenhum fato seja mais significativo, no que diz respeito ao contraste entre a maldade humana e a bondade de Deus – Bondade que é Ele em essência –, do que a terrível Paixão do Salvador ter ocorrido pouco depois dessa ovação triunfal.
A bondade divina manifestada na Paixão
Para salvar a humanidade, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade quis Se encarnar, tornando-Se igual a nós em tudo, exceto no pecado (cf. Hb 4, 15). E, ainda que uma lágrima, um gesto ou até um desejo do Homem-Deus fosse suficiente para redimir um número ilimitado de criaturas, Ele Se humilhou a Si mesmo, fazendo-Se obediente até à morte na Cruz, como afirma São Paulo na segunda leitura deste domingo (Fl 2, 6-11). Aquele que, com um simples ato de vontade, poderia ter impedido a ação dos que promoveram sua Morte – bastaria, por exemplo, deixar de sustentar o ser deles, fazendo-os voltar ao nada –, aceitou todos os ultrajes descritos por São Mateus no Evangelho da Missa.
Experimentamos aqui a misericórdia de Deus, infinitamente solícito em nos perdoar. Se um só de nós houvesse incorrido em alguma falta e todos os demais homens fossem inocentes, teria Ele padecido igual martírio para resgatar esse único réu! Como aponta o Pe. Garrigou-Lagrange, no mistério da Redenção “as exigências da justiça terminam por se identificar com as do amor, e é a misericórdia que triunfa, porque é a mais imediata e profunda expressão do amor de Deus pelos pecadores”. 4
A maldade humana vinga-se do bem recebido
Ante tanta benevolência, vemos o povo contente e reconhecendo autêntica e sinceramente estar ali, de fato, o Messias. Contudo, não de forma profunda, mas superficial e carente de raízes… Se hoje Jesus foi recebido com honras – “Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana no mais alto dos Céus!” –, dentro de alguns dias essa mesma multidão estará na praça, diante do Pretório, preferindo Barrabás Àquele que antes acolhera com regozijo, e gritando “Seja crucificado!”, como lemos no texto da Paixão.
A realeza de Jesus Cristo proclamada em sua solene entrada em Jerusalém tornar-se-ia, no seio desta cidade, pretexto de sua condenação. Herodes escarneceu d’Ele com blasfemas irreverências; Pilatos constatou sua inocência, acovardando-se, porém, diante dos acusadores, e O entregou “à vontade deles” (Lc 23, 25). Com majestoso silêncio, o Salvador suportou a flagelação, as injúrias da coroação de espinhos (cf. Mt 27, 26-31; Mc 15, 15-20; Jo 19, 1-5) e subiu ao Gólgota com a Cruz às costas. Tão pesada era – o peso de nossos pecados! – que, a meio caminho, obrigaram Simão de Cirene a ajudá-Lo a carregar tão ignominioso fardo. Os chefes zombaram d’Ele; os soldados Lhe ofereceram vinagre; um dos malfeitores, crucificado ao seu lado, O insultou.
Por quê? Pelo ódio dos que não querem aceitar o convite para uma mudança de vida. Com efeito, Jesus vinha pregando uma nova perspectiva do Reino de Deus, bem diferente daquela que eles tanto desejavam, e por isso foi rejeitado. Quantos milagres! Quantos benefícios! Paralíticos que andam, surdos que ouvem, cegos que veem, mortos que ressuscitam… tudo realizado por aquelas mãos adorabilíssimas que logo iriam ser atravessadas por cravos horríveis! Eis a lei da natureza humana concebida no pecado, quando recusa a graça de Deus! De si, ela é volúvel. Ora aplaudirá, ora se vingará de suas próprias aclamações.
Não devemos colocar nossa esperança no mundo
Assim, a Paixão de nosso Divino Redentor deixa uma lição para nós: aqueles que, por princípios mundanos, têm como ideal obter o aplauso, colocando sua esperança na aprovação dos homens, erram, porque cometem a loucura de escolher para si uma situação instável. Faltando a prática da virtude, facilmente as aclamações se transformam em ódio.
A Paixão do Senhor nos mostra, de maneira eloquente, o quanto é preciso pôr nosso empenho em servi-Lo, pouco nos importando se nos atacam ou nos elogiam, se nos recebem ou nos repudiam, mas, isto sim, se Lhe agradamos com a nossa forma de proceder. Ao sermos batizados nos comprometemos – seja por nós mesmos, seja na pessoa de nossos padrinhos – a renunciar ao demônio, ao mundo e à carne, e ficamos marcados pelo sinal do combate. Não firmamos, em nenhum momento, o propósito de nos apoiarmos no aplauso dos outros. Assim sendo, ao celebrar o Domingo de Ramos devemos nos lembrar dessas promessas de luta, que exigem da nossa parte a determinação de enfrentar todas as batalhas que tais inimigos, por nós rejeitados no Batismo, nos apresentarão. E isso significa, a exemplo de Jesus, aceitar e carregar a cruz depositada sobre nossos ombros pela Providência.
A Cruz: de sinal de ignomínia a símbolo de glória
A Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo! Quando aqueles homens malvados e sem piedade passavam diante d’Ele, crucificado, olhavam-No e diziam: “Se és o Filho de Deus, desce da Cruz!” “Ó língua envenenada, palavra de malícia, expressão perversa!” – exclama São Bernardo de Claraval – “[…] Pois, que coerência há em ter de descer, se é Rei de Israel? Não é mais lógico que suba? […] Ou por outra, por ser Rei de Israel, que não abandone o título do reino, não deponha o cetro aquele Senhor cujo império está sobre seus ombros […]. Pelo contrário, se desce da Cruz, não salvará ninguém”. 5
De fato, a um rei não cabe descer, porém, subir sempre. E foi o que fez Nosso Senhor. Ele não desceu, mas subiu e ressuscitou, conforme nos diz mais uma vez a inspirada voz de São Bernardo: “Se a geração má e adúltera busca ainda um prodígio, não lhe será dado nenhum a não ser o do profeta Jonas: não sinal de descida, mas de ressurreição. […] Saiu do túmulo fechado Aquele que não quis descer do patíbulo. […] Por isso, com razão é Ele as primícias dos que ressuscitam, porque de tal modo Se levantou que nunca voltará a cair, tendo já alcançado a imortalidade”. 6
Sim, Ele é Rei, e está sentado em seu trono. Que trono é esse? A Cruz, sinal de ignomínia por constituir o pior castigo, o suplício mais horrível daqueles tempos, considerado pelos judeus como “maldição divina” (Dt 21, 23) e pelos romanos como infamante, a tal ponto que não era aplicado a um cidadão do Império, sendo reservado apenas aos escravos e aos criminosos mais abjetos. 7 No entanto, tão poderoso é este Rei que, posto nesse pedestal de humilhação, Ele o transforma em trono de glória! Hoje em dia, ostentar a Cruz ao peito é uma honra, e nos admiramos ao vê-la sobre as coroas dos reis, nas grandes condecorações ou no alto das catedrais e dos edifícios eclesiásticos: é a exaltação da Cruz!
Ora, sendo partícipes da vida divina, pela graça, somos chamados a trilhar a mesma via do Rei dos reis, ou seja, sem nunca descer, subir para chegar ao Céu, cujas portas nos serão abertas, não por nossos méritos, mas pelos de nosso Redentor.
Ao levar nas mãos, hoje, a palma como símbolo de triunfo, devemos crer que no Juízo Final toda a maldade será julgada e, entrando na eternidade, a História ficará bem definida: ou o gozo da visão beatífica ou o fogo que arderá sem nunca se extinguir. Não há terceira possibilidade.
III – “Per crucem ad lucem!”
Contrariamente à quimera sugerida por certa mentalidade muito alastrada, não é possível abolir a cruz da face da terra, pois, em geral, todo ser humano sofre. Apenas nas produções cinematográficas e demais fantasias do gênero – coroadas sempre pelo happy end – encontramos figuras irreais de pessoas imunes a qualquer incômodo físico ou moral, bem-sucedidas em todos os seus empreendimentos e sem dificuldades no convívio social, não havendo sequer os pequenos aborrecimentos e decepções do cotidiano.
Por mais que se fundem hospitais, por mais que se abram creches ou se construam abrigos para idosos, a dor é nossa companheira e só deixará de existir no Paraíso Celeste. É imprescindível ao homem, portanto, compreender o verdadeiro valor do sofrimento, pois uma impostação equivocada perante ele leva alguns a caírem no abatimento; outros, a revoltar-se contra a Providência; outros – quiçá a maioria – a querer se esquivar de carregar a própria cruz, tentativa que, além de ser inútil, a torna mais pesada, acrescentando-lhe o ônus da inconformidade com a vontade de Deus, que conhece e permite cada uma de nossas angústias.
O valor da luta
Compenetremo-nos de que a dor encerra inúmeros benefícios para nossa salvação. Em primeiro lugar, é um poderoso meio para nos aproximarmos de Deus. Com efeito, desde antes da queda, Anjos e homens, por terem sido criados em estado de prova, têm a tendência de fechar-se sobre si, quando deveriam estar constantemente abertos para Deus. E é nisto que consiste a prova. Com o pecado essa inclinação acentuou-se, e cada falta atual aumenta-lhe a virulência.
Por tal razão, as lutas, reveses e aflições surgidas em nosso caminho são elementos eficazes para dirigir nosso espírito ao Bem infinito e escancarar para Ele a porta de nossa alma. Nessas horas experimentamos o poder da oração, sentimos nossa total dependência em relação ao Criador e nos colocamos em suas mãos sem reservas, à procura de amparo e força. Assim considerado, o sofrimento bem pode receber o título de bem-aventurança que nos faz merecer, já neste mundo, a recompensa de libertar-nos de nosso egoísmo e de vivermos voltados para Deus. Ó dor, bem-aventurada dor!
O sofrimento nos torna patente, ainda, o vazio dos bens terrenos, tão passageiros, e nos ensina a não pormos neles a esperança, alimentando em nosso coração o desejo da felicidade eterna. Em sua bondade infinita, o Senhor “nos cumulou de tribulações na terra para nos obrigar a buscar a felicidade no Céu”, 8 assegura Santo Antônio Maria Claret. Se nossa existência transcorresse sem a presença de obstáculos, seríamos como um botão de rosa que nunca houvesse desabrochado ou um bebê que não crescesse nem se desenvolvesse, e jamais atingiríamos a plenitude espiritual de um concidadão dos Santos e habitante do Céu. O sofrimento constitui-se, então, um meio infalível de preparação para contemplar a Deus face a face.
A glória comprada pelo sofrimento
O Verbo onipotente, Unigênito do Pai, ao Se encarnar quis passar pelas vicissitudes da condição humana, para nos dar exemplo de paciência. 9 Sua Alma santíssima, criada na visão beatífica desde o primeiro instante da concepção, já possuía toda a glória, e esta deveria, naturalmente, refletir-se em sua carne. Mas a relação natural entre alma e corpo n’Ele estava submetida à sua divina vontade, à qual aprouve suspender esta lei, 10 realizando um milagre contra Si mesmo, pois preferiu tomar um corpo padecente “a fim de que obtivesse com maior honra a glória do Corpo, quando a merecesse pela Paixão”. 11 Por conseguinte, Ele assumiu aquelas deficiências corporais derivadas do pecado original que não são incompatíveis com a perfeição da ciência e da graça, como o cansaço, a fome, a sede, a morte. 12 Quis nascer numa gruta, onde suportou o frio da noite e outras agruras; quis depois viver de maneira apagada, como Filho de um carpinteiro, sem revelar sua origem eterna; e, por fim, quis sofrer morte violenta para nos redimir. Sujeitando-Se a todos os gêneros de sofrimento humano inferidos de fora, 13 Jesus visava também apontar o combate da cruz como causa de elevação para todos nós, batizados, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo (cf. Rm 8, 17). É o que nos apresenta a primeira leitura (Is 50, 4-7), na disposição de Isaías – pré-figura do Redentor – de enfrentar todos os ultrajes por amor a Deus e ao próximo, certo, todavia, de não ser desonrado nem desapontado, pois o Senhor virá em seu auxílio e lhe concederá a vitória.
As palavras de São Paulo aos filipenses, depois de se referir aos tormentos de Cristo, confirmam com maior ênfase este ensinamento: “Por isso, Deus O exaltou acima de tudo e Lhe deu um nome que está acima de todo nome. Assim, ao nome de Jesus todo joelho se dobre no Céu, na terra e abaixo da terra, e toda língua proclame: ‘Jesus Cristo é o Senhor’, para a glória de Deus Pai” (Fl 2, 9-11). Tão excelente é o sacrifício de nosso Salvador, oferecendo-Se a Si mesmo ao Pai como Vítima perfeita, que os efeitos da Paixão excedem em muito a dívida do pecado: “Deus Pai pediu a seu Filho um ato de amor que Lhe agrada mais do que Lhe desagradam todos os pecados juntos; um ato de amor redentor, de um valor infinito e superabundante”. 14 Por causa desse generoso holocausto, no qual Se humilhou e Se esvaziou de sua dignidade divina tornando-Se semelhante aos homens, Nosso Senhor mereceu ser exaltado, pois “quando alguém, por uma justa vontade, se priva do que tinha direito de possuir, merece que se lhe dê mais, como salário de sua vontade justa”, 15 afirma São Tomás.
Reportando-nos ao início da celebração do Domingo de Ramos, vemos que se a entrada triunfal em Jerusalém precedia as humilhações da Paixão, esta, por sua vez, prenunciava a verdadeira glorificação de Jesus, conforme suas próprias palavras aos discípulos de Emaús, depois da Ressurreição: “Porventura não era necessário que Cristo sofresse essas coisas e assim entrasse na sua glória?” (Lc 24, 26).
IV – O combate do católico é sua glória
A lição da Liturgia neste início de Semana Santa deve ser guardada na lembrança até o nosso último suspiro: somos combatentes! Não fomos feitos para apoiar aqueles que põem sua esperança no mundo, mas para defender Nosso Senhor Jesus Cristo. O mundo só nos interessa como objeto de conquista para o Reino de Deus, pois queremos ser apóstolos, a fim de que todos os homens experimentem nossa alegria de cristãos. Alegria proveniente da certeza, infundida pela fé na alma, de um dia recuperar o corpo em estado glorioso e viver a eternidade feliz no convívio com Deus, com Maria Santíssima, com os Anjos e com os Santos.
Embora esta passagem para a bem-aventurança tenha como átrio a morte – destino natural de todo homem –, a convicção de que a cruz conduz à luz, isto é, à vitória e ao triunfo final, torna a alma equilibrada, calma e serena, e dá forças para encarar a morte com confiança, sabendo que no outro lado estará Aquele que por nós morreu na Cruz, pronto a nos receber.
Nesta Semana Santa, unamo-nos a Nosso Senhor Jesus Cristo e façamos companhia a Nossa Senhora nas dores que ao longo dos próximos dias vão se descortinar diante de nossos olhos, com a certeza da glória que atrás delas espera para se manifestar. ◊
Notas
1 VIGÍLIA PASCAL. Proclamação da Páscoa. In: MISSAL ROMANO. Trad. portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil realizada e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. 9.ed. São Paulo: Paulus, 2004, p.275.
2 MISSA DO DIA DA PÁSCOA. Sequência. In: MISSAL ROMANO. Palavra do Senhor I – Lecionário Dominical (A-B-C). Trad. portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil realizada e publicada pela CNBB e aprovada pela Sé Apostólica. São Paulo: Paulus, 2004, p.190.
3 Cf. CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. Uma mulher precedeu os evangelistas. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.75 (Mar., 2008); p.10-17; Comentário ao Evangelho do Domingo da Páscoa na Ressurreição do Senhor – Ano A, no Volume I da coleção O inédito sobre os Evangelhos.
4 GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Réginald. El Salvador y su amor por nosotros. Madrid: Rialp, 1977, p.312.
5 SÃO BERNARDO. Sermones de Tiempo. En el Santo Día de la Pascua. Sermón I, n.1-2. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1953, v.I, p.497-498.
6 Idem, n.5-6, p.500-501.
7 Cf. FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Pasión, Muerte y Resurrección. Madrid: Rialp, 2000, v.III, p.212.
8 SANTO ANTÔNIO MARIA CLARET. Sermones de Misión. Barcelona: L. Religiosa, 1865, v.III, p.197.
9 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.14, a.1.
10 Cf. Idem, ad 2.
11 Idem, q.49, a.6, ad 3.
12 Cf. Idem, q.14, a.4.
13 Cf. Idem, q.46, a.5.
14 GARRIGOU-LAGRANGE, op. cit., p.309.
15 SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., q.49, a.6.