Havia o demônio ferido mortalmente nossa alma, nela colocando três paixões funestas, da quais decorrem todas as outras. E nosso terno Salvador chegou ao mundo para destruir essa obra do inferno.
Dizer a um moribundo que um médico competente vai arrancá-lo das garras da morte e deixá-lo em perfeita saúde, é por certo dar-lhe uma boa notícia! Infinitamente melhor, entretanto, é a que o Anjo do Senhor comunicou a todos os homens, na pessoa dos pastores de Belém: “Anuncio-vos uma boa nova que será alegria para todo o povo: hoje vos nasceu na Cidade de Davi um Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2, 10-11).
Veio para destruir a obra do demônio
Havia o demônio ferido mortalmente nossa alma, nela colocando três paixões funestas das quais decorrem todas as outras: o orgulho, a avareza e a sensualidade. Sim, meus filhos, nós todos estaríamos sujeitos a estas vergonhosas paixões, como doentes desesperados à beira da morte eterna, se Jesus Cristo não tivesse acorrido em nosso socorro.
E nosso terno Salvador chegou ao mundo na humilhação, na pobreza, nos sofrimentos, para destruir essa obra do demônio, para aplicar remédios eficazes nas cruéis feridas que a serpente infernal nos havia causado. Sim, é este amável Salvador cheio de caridade que veio nos curar e obter-nos a graça de uma vida humilde, pobre e mortificada. E para melhor nos incitar à prática das virtudes, quis Ele mesmo dar-nos o exemplo.
Vemos isso de modo admirável em seu nascimento. Por suas humilhações e sua obediência, dá-nos Ele um remédio para nosso orgulho; por sua extrema pobreza, um remédio para nosso amor aos bens deste mundo; por seus sofrimentos e mortificações, um remédio para nosso apego aos prazeres dos sentidos. Com isto, Ele nos concede a vida espiritual e nos abre a porta do Céu.
Graça preciosa, mas pouco conhecida da maioria dos cristãos. Este Messias, este terno Redentor, vem ao mundo para salvá-lo. Todavia, diz o Evangelho, ninguém quer recebê-Lo, e Ele é obrigado a nascer num estábulo, sobre um punhado de palha. Decerto, não podemos deixar de censurar a conduta dos judeus para com o divino Jesus; quanto mais cruel, porém, é nossa conduta para com Ele! Pois os judeus não reconheciam n’Ele o Messias, e nós O reconhecemos verdadeiramente como nosso Deus.
Vou, pois, demonstrar-vos, primeiro, os grandes bens que seu nascimento nos proporciona; segundo, que Jesus é nosso modelo em tudo quanto devemos fazer.
A primeira chaga de nosso coração é o orgulho
Para entender a grandeza dos bens que o nascimento de Cristo nos acarretou, seria preciso compreender o desgraçado estado no qual nos havia precipitado o pecado de Adão, e isto jamais conseguiremos.
Repito, pois, que a primeira chaga de nosso coração é o orgulho; esta tão perigosa paixão consiste num fundo de amor e de estima por nós mesmos, pela qual nós não queremos depender de ninguém; nada tememos mais do que sermos humilhados aos olhos dos homens; e procuramos tudo quanto possa nos elevar perante eles.
Eis aqui a funesta paixão que Jesus Cristo veio combater por seu nascimento na mais profunda humildade. Quis Ele não só depender de seu Pai e obedecer-Lhe em tudo, mas também obedecer aos homens e de algum modo depender da vontade deles. Com efeito, o imperador Augusto – por vaidade, por capricho ou por interesse pessoal – ordenou que se fizesse o recenseamento de todos os seus súditos, devendo cada família alistar-se em sua cidade de origem. Tamanha foi a obediência de Jesus que, logo após a publicação do edito, a Santíssima Virgem e São José puseram-se a caminho.
Que lição para nós, meus filhos! Deus obedece às suas criaturas e quer depender delas! Oh! Como estamos longe disso! Quantos pretextos alegamos para dispensar-nos de obedecer aos Mandamentos de Deus ou às ordens de seus legítimos representantes! Quanta vergonha para nós, ou antes, quanto orgulho em nunca querer obedecer, mas sempre mandar, de crer que sempre estamos certos e nunca errados!
Nosso Salvador vinha para sofrer
Contudo, avancemos um pouco e veremos algo mais. Após uma longa e fatigante viagem, Maria e José chegaram a Belém. Ora, ao receber seu Deus, seu Salvador, poderia esta cidade pôr limites às homenagens que Lhe prestaria? Não se deveria, nessa ocasião, dizer como na entrada de Jesus em Jerusalém: “Bendito seja Aquele que vem em nome do Senhor! Hosana no mais alto dos Céus” (Mt 21, 9)? Entretanto, nosso Salvador vinha para sofrer, e quis começar nascendo.
Todos O repeliram, ninguém quis dar-Lhe hospedagem. Eis a que ficou reduzido o Senhor do universo, o Rei do Céu e da Terra, desprezado, rejeitado pelos homens, reduzido a emprestar dos animais um alojamento. Meu Deus, que humilhação! Que aniquilamento! Meus filhos, nada nos fere tanto quanto as afrontas, os menosprezos, as rejeições; mas se considerarmos os que o Salvador recebeu ao nascer, teremos coragem de nos queixarmos, vendo o Filho de Deus sujeito a tal humilhação? Aprendamos, pois, a sofrer com paciência e espírito de penitência tudo quanto nos possa acontecer. Quanta honra, para um cristão, poder em algo imitar seu Deus e Redentor!
Avancemos mais, e veremos que Jesus Cristo, longe de procurar o que poderia elevá-Lo aos olhos dos homens, quis, ao contrário, nascer na obscuridade, no olvido. Quis que apenas alguns pobres pastores fossem informados de seu nascimento, por um Anjo que lhes transmitiu essa feliz notícia. À vista de tal exemplo, quem de nós poderia ainda conservar um coração inflado de orgulho e cheio de vaidade, e desejar a estima, os louvores, a consideração do mundo?
Olhai e contemplai esse tenro Menino, vede como Ele já derrama lágrimas de amor, chora por nossos pecados, nossos males. Ah! Que exemplo de pobreza, de humildade, de desapego dos bens terrenos! Trabalhemos, pois, para nos tornarmos humildes, desprezíveis a nossos próprios olhos, nos aconselha Santo Agostinho; se Deus tanto desprezou as coisas criadas, como poderíamos nós amá-las? Se fosse permitido amá-las, Aquele que por nós Se fez homem ter-nos-ia declarado.
Aqui está, meus filhos, o remédio que o Divino Salvador aplica à nossa primeira chaga, o orgulho. Temos, porém, outra que não é menos perigosa: a avareza.
Um estábulo para hospedar um Deus?!
Esta segunda ferida feita pelo pecado no coração do homem é a avareza, ou seja, o amor desregrado às riquezas e aos bens desta vida. Ah, quantas devastações faz no mundo esta paixão! São Paulo, que a conhecia muito mais do que nós, afirma ser ela a fonte de todos os vícios (cf. I Tim 6, 10). Com efeito, não é deste maldito interesse que vêm as injustiças, as invejas, os ódios, os perjuros, os processos, as contendas, as animosidades e a dureza com os pobres?
À vista disso, pode nos espantar o fato de Jesus Cristo, que veio à Terra para sanar as paixões humanas, ter nascido na maior pobreza, na privação de todas as comodidades que parecem tão necessárias aos homens? Primeiro, vemos que Jesus escolheu uma Mãe pobre, e quis passar pelo filho de um pobre artesão. Tendo os profetas anunciado que o Messias nasceria da família real de Davi, permitiu Ele, para conciliar sua nobre origem com seu amor à pobreza, que por ocasião de seu nascimento essa ilustre família tivesse caído na indigência. E não Se contentou com isto: embora bem pobres, Maria e José tinham uma acanhada casa em Nazaré; era muito para Ele, pois não queria nascer num lugar de sua propriedade. Por isso obrigou sua Santa Mãe a viajar até Belém. Ora, parece-nos que em Belém, cidade de seu pai Davi, deveria Ele encontrar algum abrigo, sobretudo entre seus parentes. Não encontrou. Ninguém O reconheceu, ninguém quis ceder-Lhe um alojamento. Para Ele, nada havia ali.
Dizei-me, aonde irá o Divino Salvador abrigar-Se das intempéries, já que todos os lugares estão ocupados? José e Maria procuram em diversos albergues, mas como são pobres, para Eles não há lugar! Oh! Amável Redentor, em que estado de abandono Vos vejo reduzido!
José e Maria procuraram solicitamente por todos os lados. Descobriram por fim um estábulo ao qual se recolhiam os animais durante o mau tempo. Era inverno, estava todo aberto, quase como nas ruas. Como! Um estábulo para hospedar um Deus?! Sim, meus filhos, foi lá que Deus quis nascer. Ninguém mais do que Ele merecia nascer no mais esplêndido palácio, mas isto não satisfaria seu amor à pobreza. Um estábulo será seu palácio, uma manjedoura será seu berço, de um pouco de palha se comporá seu leito, seus únicos ornamentos serão míseros tecidos, pobres pastores formarão sua corte. Dizei-me se podia Ele dar-nos uma mais bela lição do menosprezo que devemos ter aos bens e riquezas deste mundo. Podia Ele melhor nos ensinar o amor que devemos ter à pobreza e ao menosprezo?
As riquezas são o instrumento de todas as paixões
Ó vós que estais tão apegados às coisas da Terra, escutai a lição que este Divino Salvador nos dá; e se ainda não O ouvis falar – recomenda-nos São Bernardo –, escutai este estábulo, escutai seu berço e os panos nos quais está envolto. O que nos diz tudo isto? O que nos dirá um dia o próprio Jesus Cristo: “Ai de vós, ricos do mundo!” (cf. Lc 6, 24). Ah! Para aqueles que prendem o coração aos bens terrenos, como é difícil salvar-se! Mas, talvez me perguntareis, por que é tão difícil aos ricos de coração salvar-se? É porque as pessoas ricas, se não têm o coração desapegado de seus bens, ficam cheias de orgulho, menosprezam os pobres, aterram-se à vida presente, falta-lhes o amor a Deus. Digamos melhor: as riquezas são o instrumento de todas as paixões.
Ah! Ai dos ricos, porque lhes é tão difícil salvar-se! Rezemos, pois, a este Menino deitado sobre um punhado de palha, privado de tudo quando é necessário à vida humana. Tenhamos cuidado de nunca prender nossos corações a coisas tão vis e desprezíveis porque, se tivermos a infelicidade de não saber usá-las bem, elas serão a perda de nossa pobre alma. Que nosso coração seja pobre, a fim de poder participar do nascimento do Salvador. Vós vedes que Ele chama apenas os pobres e só depois de longo tempo chegam os ricos, para nos ensinar que as riquezas nos afastam de Deus, quase sem percebermos.
Convenhamos em que este estado do Salvador deve ser bem consolador para os pobres, pois eles têm um Deus por pai, modelo e amigo. Mas, se querem receber a recompensa prometida aos pobres, que é o Reino dos Céus, devem eles imitar seu Redentor, aceitar, suportar sua pobreza com espírito de penitência, não murmurar, não invejar os ricos, mas, pelo contrário, lamentá-los porque está em grande perigo sua eterna salvação; não devem os pobres maldizer os ricos, mas sim seguir o exemplo de Cristo Jesus que voluntariamente Se reduziu à última miséria. Ele não Se queixou, mas, ao invés, deplorou a infelicidade dos ricos. Com isso, meus filhos, Ele curou duas chagas que nos fez o pecado: orgulho e avareza.
Se acreditais, deveis imitá-Lo
Cristo foi além. Quis Ele curar também a terceira chaga que nos fez o pecado: a sensualidade.
A sensualidade consiste no amor desregrado aos prazeres proporcionados pelos sentidos. Desta funesta paixão é que nascem o excesso no beber e no comer, o amor às facilidades, às comodidades e à vida mole, bem como a impureza. Numa só palavra, tudo quanto a Lei de Deus nos proíbe.
Que fez nosso Salvador para curar-nos dessa perigosa doença e desse vício? Ele nasceu nos sofrimentos, nas lágrimas e nas mortificações; nasceu à noite, na mais rigorosa estação do ano, e logo foi deitado sobre um punhado de palha, num pobre estábulo todo aberto. Ah, homens sensuais, glutões e impudicos, entrai nesse recanto de miséria e aí vereis o que fez um Deus para vos curar.
Acreditais, meus filhos, que lá está vosso Deus, vosso Salvador, vosso amável Redentor? Sim, me respondereis. Mas, se acreditais, deveis imitá-Lo. […]
Como é feliz quem toma Jesus por modelo, desde o berço até à Cruz! Quantos motivos tem de se encorajar! Quantas coisas a imitar! Que armas poderosas para expulsar os demônios! Digamos melhor: a vida de imitação de Jesus Cristo é uma vida de santo. ◊
Excertos do Sermão sobre o Mistério, para o
Dia de Natal. Sermão II