Santa Clotilde – “A vossa fé é nossa vitória”

Refletindo admiravelmente Nossa Senhora, Clotilde proferiu com submissão seu “fiat”, venceu pela fé e deu à luz a Filha Primogênita da Igreja.

Sentado ao lado do leito onde se debatia contra a morte um ­recém-nascido, estava um jovem rei bárbaro. Com a cabeça apoiada sobre as mãos, tendo o rosto meio coberto pela longa cabeleira que simbolizava a superioridade de sua origem, ele não ocultava seu desespero pela sorte do filho:

— É certo que essa criança também morrerá. Batizado em nome de Cristo, seu destino será o mesmo de seu irmão: a morte! Não conta com a proteção dos deuses.

De fato, o menino, havia pouco regenerado pelas águas batismais, fora atingido por fortes convulsões febris e parecia seguir o caminho de Ingomer, que dois anos antes falecera ainda trajado de branco.

Santa Clotilde – Igreja de São José, Saint-Héand (França)

De joelhos, com a fé ainda mais fortalecida pelo drama, estava a jovem rainha. Em sua alma, o carinho materno aliado à consciência da grandeza de sua missão levavam-na não apenas a aceitar resignadamente aquele sofrimento, como até a “exigir” da Providência um milagre. Sim, não era somente seu filho que estava em risco, mas a salvação de um povo que dependia de suas súplicas; não era apenas sua criança que precisava viver, mas a Filha Primogênita da Igreja que precisava ser “batizada”!

Essa era a missão que Clotilde assumira com a dignidade de rainha. E estava disposta a conquistar todos os milagres para realizá-la.

Princesa de Lyon

Clotilde nascera no Reino de Lyon, território que seu pai, Chilperico, príncipe bárbaro da tribo dos Burgúndios, recebera como herança.

Apesar da pequena extensão do reino, grande era seu legado espiritual e cultural. Lyon fora uma importante cidade sob o domínio dos romanos e transformara-se num pujante centro de catolicidade nas Gálias. Em suas arenas vira borbulhar o sangue de inúmeros mártires como Santa Blandina, São Potino e seus companheiros, e em sua sede episcopal escutara Santo Irineu pregar com sabedoria e eloquência contra a heresia.

O esplendor material da região fora, é verdade, praticamente arrasado pela invasão dos bárbaros, mas o fulgor espiritual não se extinguira com as armas e brilhava como uma esperança de vitória.

Os Bispos da nação, como príncipes da Igreja Militante, tinham bem presente o quanto Cristo contava com seu combate para triunfar. Este era realmente muito árduo, pois não se restringia a destruir o paganismo dos bárbaros, mas também a heresia ariana que criara fortes raízes entre eles.

Santo Avito, Bispo de Vienne, já obtivera grande vitória ao conseguir que reis burgúndios se casassem com jovens de confissão católica. Com esse fim, Clotilde e Chroma – sua irmã mais velha – foram batizadas ao nascer. Entretanto, como seus pais morreram numa guerra fratricida, as pequenas passaram para a tutela do tio. O prelado não desanimou diante do trágico fato, mas colocou todo o seu empenho em formar as duas princesas.

A missão entre os francos

No fim do século V pouco restava do poderio romano. Os triunfos conquistados pela Igreja a partir do Edito de Milão, em 313, pareciam sucumbir sob o avanço das hordas bárbaras e a perfídia dos hereges.

Na Lombardia, Teodorico o Grande, chefe ostrogodo e ariano, dominava grande parte da Itália; no sul da Gália e na Península Ibérica, os visigodos e os vândalos reinavam fazendo prevalecer a heresia, renovando inclusive a perseguição aos verdadeiros católicos. No Ocidente, já nenhum reino professava oficialmente a Fé Católica em sua ortodoxia. Situação desesperadora? Talvez. Mas, sobretudo, vésperas de uma intervenção divina!

No norte da Gália, a tribo franco sálica permanecia pagã. Reinava sobre ela Clóvis, filho de Childerico, cuja simpatia pelos costumes do império valera-lhe o título de patrício. Em 486 ele conquistou a Romania – o que restava de província romana na Gália – derrotando Siágrio, governador já pusilânime e sem capacidade de enfrentar os arianos. Nessa conjuntura, Clóvis tornou-se o foco de esperança dos Bispos católicos. São Remígio, Bispo de Reims, escrevera-lhe ao assumir o governo: “Pratica o bem. Sê casto e honesto. Mostra-te cheio de respeito por teus Bispos e recorre sempre a seus conselhos. Se te entendes com eles, teu país se achará bem. […] Se queres reinar, mostra-te digno”.1

Era, porém, indispensável que o monarca franco se convertesse, para que o Cristianismo tivesse um reino. Uma esposa católica parecia o melhor meio de inclinar para a verdade o seu coração. Clotilde, que contava por volta de vinte anos, foi encaminhada pelos Bispos para tal missão.

A tarefa não era fácil. Quem garantia que uma jovem teria sucesso entre um povo bárbaro, no qual a vingança, os assassinatos e a rudeza pagã faziam parte dos costumes?

Clotilde, cujo nome significa guerreira gloriosa, compreendeu bem o desafio e, à semelhança de Maria, deu o seu “fiat”. Já não viveria mais para si mesma, mas para o triunfo da Fé Católica.

No ano de 492, Soissons recebia a rainha que se uniria a Clóvis num matrimônio monogâmico2 e indissolúvel, firmado na promessa de batizar os filhos na Religião materna. A primeira batalha estava ganha!

Da fé de Santa Clotilde diante do filho moribundo dependeu o destino de uma nação
Clóvis e Santa Clotilde – Igreja de Santo Audeno,Rouen (França)

A prova de fé

Eis, porém, que no momento seguinte a vitória parece passar para o lado do paganismo. Ingomer, o primeiro filho daquela união e portador da esperança de uma dinastia cristã, morre logo após o Batismo, e o segundo, Clodomir, nascido em 495, encaminha-se para a mesma sorte. É então que se dá o episódio narrado no início deste artigo.

Após uma noite de tenso combate interior, sem permitir que seu ânimo vacilasse, a rainha obtém o milagre: o menino se acalma, a febre passa e ele adormece tranquilo e saudável. Pela fortaleza, resignação heroica e fé inquebrantável, ela arrancara do Céu que o filho vivesse, mas sobretudo imprimira no coração do rei uma imagem da verdadeira coragem e do poder supremo do único Deus.

O que poderia constituir uma derrota definitiva para o Catolicismo no reino dos francos, Clotilde transforma em vitória pela fé. Assim se abre o caminho que conduzirá Clóvis e a França ao seio da Igreja.

O voto de Tolbiac

No ano de 496, os alamanos – uma tribo germânica – invadiram as terras de Sigeberto, rei de Colônia e aliado de Clóvis. Este, fiel ao concertado entre ambos os monarcas, foi em seu socorro.

No antigo campo romano de ­Tolbiac, hoje Zülpich, deu-se o entrechoque. A ferocidade do combate foi tremenda. Após algumas horas, o massacre do lado dos francos se tornou violento e o exército de Clóvis estava a ponto de ser exterminado.

O chefe franco viu-se numa situação aterradora. Conhecia bem a sorte dos vencidos e sabia que se fosse derrotado não deveria esperar clemência para si, para seu povo e para sua fama, pois passaria para a História como indigno da realeza. Entre os fragores da batalha e o terror que começava a dominar seu exército, veio-lhe à mente a única figura que vira enfrentar um desastre com audácia e dignidade e, numa situação sem saída, obter o impossível: Clotilde! Agarrando-se a seu exemplo, como em uma tábua de salvação, o bárbaro exclamou:

Deus de Clotilde, vinde em meu socorro!

Eis que, de repente, a flecha de um guerreiro franco atinge mortalmente o chefe dos alamanos e faz reverter a sorte do combate. Os adversários, tomados de pânico, começam a bater em retirada com os francos às costas, perseguindo-os.3

A contenda estava vencida, mas sobretudo estava ganha a batalha de Cristo no coração de Clóvis, pela mediação de Clotilde. Naquela mesma tarde, ele lhe escreveu informando que queria receber o Batismo.

Batismo de Clóvis e da França

Grande foi o zelo do Bispo Remígio e de Clotilde em preparar a tão almejada cerimônia. O ermitão São Waast, que também passara das crenças germânicas ao Catolicismo, ajudou a concluir a instrução do rei, enquanto a rainha providenciou os melhores tecidos e incensos para fazer sentir àquele povo ainda rude a grandeza ímpar do ato.

Acompanhado de suas irmãs, de Thierry, filho do primeiro casamento, e de mais três mil súditos, Clóvis por fim foi admitido à família de Deus na festa da Natividade do Senhor. Nascia na catedral de Reims a França católica, a semente da Cristandade.Regnum Galliæ, regnum Mariæ, nunquam peribit”,4 dizia um escrito da época merovíngia. Estava Clotilde para sempre associada a Maria, mãe da Igreja, ao com Ela dar à luz seu primeiro reino.

Para confirmar a “filiação divina” desse povo, conta a tradição que uma pomba trouxe o óleo para a unção, usado desde então na coroação de todos os reis da França.

“A Fé que confessastes é nossa vitória! Uma nova luz brilha para nós na pessoa de um rei do Ocidente. O Natal do Senhor é também o Natal dos francos; vós nascestes para Cristo no dia que Ele nasceu para vós”,5 escreveu Santo Avito ao rei, festejando o sucesso de tantos esforços.

O Deus de Clotilde não só concedeu a vitória nos campos de Tolbiac, como venceu a batalha de Cristo no coração de Clóvis!
Conversão de Clóvis na Batalha de Tolbiac – Igreja de Santo Audeno, Rouen (França)

Unificação das Gálias

Missão cumprida? Não. A rainha sabia que era apenas o começo. A graça que fora infundida em seu esposo e naquele povo devia transformar uma natureza humana inculta e selvagem. Esse processo não demoraria anos, mas séculos! Cabia a ela, porém, cuidar ao máximo da semente, para que crescesse frondosa e altaneira a árvore.

Para isso, aconselhava Clóvis a empreender a unificação de toda a Gália na Religião verdadeira, expulsando os visigodos arianos do sul. Tal empresa se deu em 507, cumprindo o rei um voto que fizera ao cair doente. Começando a campanha pela conquista da cidade de São Martinho de Tours, terminou com a Batalha de Vouillé, que forçou os visigodos a recuarem para trás dos Pirineus.

Comprando o futuro

Tendo o seu esposo morrido em 27 de novembro de 511, uma nova fase iniciou-se na vida de Clotilde.

A França estava batizada, mas quantos séculos seriam necessários para que se tornasse o Reino Cristianíssimo? Clotilde incentivara ao máximo no rei franco os princípios cristãos; entretanto, teve de assistir com paciência a verdadeiras chacinas, inclusive à morte de parentes, na conquista dos reinos vizinhos para seus filhos.

Presenciou ela o assassinato de seu primo burgúndio Segismundo e de sua família, levado a cabo por ­Clodomir, seu filho. Quando este morreu, acompanhou as disputas ambiciosas de seus filhos Clotário e Childeberto sobre a herança, que culminaram no brutal extermínio dos netos. Teve nos braços o corpo de sua filha trazido de volta após um longo martírio na corte de Toledo tentando converter o esposo, Amalarico. Mais adiante, apenas pôde intervir com suas súplicas e orações para impedir que Thierry e Childeberto trucidassem Clotário em uma contenda…

Ora retirada no mosteiro de Tours, ora em Paris quando o dever a chamava, a santa rainha não vivia mais para o presente; pelas orações e penitência, preparava o futuro da nação. Ela não contemplaria um Carlos Magno, um São Luís IX, uma Santa Joana d’Arc nem uma Santa Teresinha, mas estava convicta de que podia contribuir para as maravilhas futuras e ser, em certo sentido, a mãe desses grandes varões e damas.

Última intercessão

Clotilde pôde utilizar seu poder de intercessão ainda mais uma vez no mesmo ano de sua morte.

Clotário, que assassinara os filhos de seu irmão e, mesmo batizado, praticava a poligamia dos pagãos, resolveu tomar como quinta esposa uma jovem princesa turíngia que trouxera prisioneira ainda pequena. A princesa aceitou a proposta com a intenção de salvar seu irmão, que compartilhava seu cativeiro. Entretanto, após ter se unido a ela, Clotário o massacrou. A jovem fugiu e se refugiou em um convento; o rei a perseguiu, disposta a violar até o sagrado direito de asilo. A rainha-mãe interveio pela última vez e salvou aquela que, ­dentro dos muros monacais, continuaria sua tarefa de zelar pela França: Santa Radegunda.

No dia 3 de junho de 545, Clotilde entregou sua alma a Deus e seu corpo foi se reunir ao de seu esposo e ao de Santa Genoveva na Basílica dos Apóstolos, em Paris.

A rainha, que tudo fizera pelo “batismo” de um povo, continuaria a interceder por ele da eternidade
Santa Clotilde – Igreja de São Vicente de Paulo, Paris

Uma mulher forte

Sobre as damas que se tornam reflexo de Maria Santíssima, afirmou um Pontífice:

“Católicos da França, vossa história, na qual toda a trama é tecida por graças e favores de Maria, vos confere um dever todo especial de velar pela integridade e pureza de vossa herança marial. […]

“É admirável o papel das damas na História da França. Clotilde a liberta do paganismo e da heresia, e pelo Batismo de Clóvis ela é entregue a Cristo! Branca de Castela é a educadora de São Luís, ‘o bom lugar-tenente de Cristo’! Joana d’Arc devolve à França seu lugar no mundo, e seu estandarte leva o nome de Jesus e Maria! […]

“Essas heroínas providenciais cumpriram a sua [missão] pela sabedoria de seu espírito, pela força de sua vontade, pela santidade de sua vida, pela generosidade no sacrifício total de si mesmas, em suma, pela imitação das virtudes de Maria, trono da Sabedoria, Mulher forte, Serva do Senhor, Virgem dolorosa com o coração transpassado pelo gládio, Mãe do Autor da paz e Rainha da paz”.6

Não há dúvida de que Santa Clotilde foi uma mulher forte como a louvada pelas Escrituras. Ela não prefigurou a Virgem à semelhança de Abigail, Judite ou Ester, mas seguiu seu exemplo fazendo perdurar na terra um filão de almas mariais. Almas essas que com seu “fiat” salvam o mundo e, pela sua fé, obtêm ressurreições grandiosas. 

 

Notas


1 BERNET, Anne. Clotilde, épouse de Clovis. Histoire des Reines de France. Paris: Pygmalion, 2006, p.64.

2 O costume pagão da época admitia a poligamia. Clóvis teve uma primeira esposa, mas que já havia morrido quando ele desposou Clotilde.

3 Cf. SÃO GREGÓRIO DE TOURS. Histoire ecclésiastique des Francs. L.II, c.30; BORDONOVE, George. Clovis et les Mérovingiens. Paris: Pygmalion, 2006, p.92.

4 Do latim: “O Reino da França, reino de Maria, jamais perecerá”.

5 BERNET, op. cit., p.161-162.

6 PIO XII. Discurso aos peregrinos franceses vindos a Roma para a canonização de Santa Joana de Valois, 29/5/1950.

 

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