Foi infatigável pregador, missionário e apóstolo. Destacou-se como exímio jurista e homem de Estado, mas também como místico, teólogo, taumaturgo e até como guerreiro. Lutou como um leão contra os próprios defeitos e contra os inimigos da Santa Igreja.
Batalha iminente… Troar de canhões, movimentação de máquinas de guerra. Duzentos mil homens! À frente das tropas, o próprio sultão, Maomé II, avançava. Era a destruição, a carnificina e a barbárie que despencava sobre a Europa. Em vão o Vigário de Cristo lançara o brado de alarme: príncipes, senhores e cavaleiros se fizeram surdos à sua voz. Todos haviam renunciado a uma luta que se afigurava impossível.
Após a conquista de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, em 1453, nada parecia poder barrar a investida turca e o esmagamento da Cristandade europeia, tristemente amolecida. Decerto, varrida e exterminada seria após o próximo golpe que, desta vez, se encaminhava contra Belgrado. Abandonados pelas outras nações cristãs, esmorecidos na esperança, os húngaros estavam decididos a assinar humilhante trégua com os otomanos. Todos desesperavam da situação… exceto um homem.
Quando tudo dava a impressão de estar perdido, Deus enviou um varão providencial que, pelo ardor de suas palavras e calor de sua influência, teria a missão de aglutinar os bons, eliminar suas querelas e interesses pessoais e levá-los a defender a Fé.
Jovem e bem-sucedido governante
João nasceu em Capestrano, na região dos Abruzos, pertencente ao então Reino de Nápoles, em 24 de junho de 1386. Havendo perdido o pai muito cedo, viveu uma infância calma e pura, junto à sua virtuosa mãe.
Quando atingiu a adolescência, partiu para a Úmbria, província vizinha, estabelecendo-se em Perugia, onde estudou por cerca de dez anos Direito Civil e Canônico. Ali deu tais provas de capacidade no exercício da jurisprudência que mesmo seus antigos mestres não enrubesciam em consultá-lo nas questões mais espinhosas.
Com pouco mais de vinte e cinco anos, João foi nomeado governador daquela cidade. De natural retidão, exerceu sua nova missão de forma exímia: “Os pobres nele tiveram sustento, as pessoas de bem um protetor, os desordeiros um juiz severo. Sob sua autoridade, a província inteira recobrou uma segurança que, havia muitos anos, já não conhecia. O roubo desapareceu, os crimes diminuíram, as propriedades e as leis foram enfim respeitadas. Nada podia fazer-lhe transigir com a injustiça”.1
Certa ocasião, prometeram-lhe uma considerável soma de dinheiro se obtivesse ganho de causa a um poderoso senhor da região, dando sentença de morte contra um inocente, seu inimigo. Mesmo sob a ameaça de um punhal, João indignou-se com a proposta e examinou seriamente o caso, declarando, por fim, a inocência do acusado.
Apesar de “pequenas” contrariedades como essa, tudo sorria para o jovem governador. Sucesso na vida, fama na sociedade, promessa de casamento com a filha única de um dos homens mais ricos da cidade. Mas, coisas maiores Deus reservava para ele…
O fracasso e a conversão
Tudo começou a mudar de colorido quando, surgindo dissensões entre os habitantes de Perugia e alguns governantes da sua região natal, João foi incumbido de negociar a paz. Ele não poupou esforços e viagens para cumprir essa tarefa, mas os umbrianos, supondo que João os estivesse traindo, resolveram prendê-lo.
Confinado no alto de uma torre, atado por pesadas cadeias e tendo apenas pão e água como alimento, pensava num meio de escapar à morte… Semelhante ao que faria poucos anos depois Santa Joana d’Arc, João calculou a altura da construção, cortou um tecido em pequenas faixas e atou-as, formando uma espécie de corda pela qual começou a descer, rente à muralha externa. Entretanto, as faixas se romperam, terminando ele por quebrar um pé na queda.
O barulho dos ferros atraiu a atenção dos guardas, que o prenderam novamente, lançando-o, desta vez, num calabouço subterrâneo, onde a água chegava-lhe aos joelhos. Vendo-se abandonado por todos e meditando na instabilidade das coisas humanas, é então que a graça o toca a fundo: aparece-lhe São Francisco de Assis, convidando-o a ingressar em sua Ordem. E João dá a Deus o seu fiat.
“Após esta visão seus cabelos foram miraculosamente cortados em forma de tonsura e ele nada mais quis senão executar a ordem do Céu”.2 João transformara-se num homem novo.
Ingresso na Ordem Seráfica, duras provas
Libertado da prisão depois de pagar um vultoso resgate, para o qual teve de empenhar a maior parte dos seus bens, dirigiu-se ao convento franciscano de Perugia, pedindo ser admitido na Ordem. Tinha então trinta anos.
Ora, a fim de assegurar-se da autenticidade de uma vocação tão súbita, o guardião da comunidade julgou necessário submeter o candidato a algumas provas. Para calcar aos pés o respeito humano, mandou-o atravessar as ruas de Perugia, onde havia pouco recebia tantas honras e louvores, montado num burrico, revestido de andrajos e portando um cartaz no qual se liam seus pecados. As crianças lhe atiravam pedras, o populacho o perseguia com vaias, todos o desprezavam como um louco.
Neste período, ainda a título de prova, chegou a ser expulso do convento duas vezes, sendo readmitido debaixo de duríssimas condições.
Triturando seu orgulho por tais atos de humildade, não é de admirar que tenha atingido, em voo rápido, sublime perfeição na vida religiosa. “A maneira por que suportou todas essas provações possibilitou-lhe obter sobre si mesmo uma vitória completa. Depois disso nada houve que lhe parecesse difícil”.3
Nas mãos de um santo mestre de noviços
Uma das maiores alegrias de um religioso consiste em ter um superior santo. Submeter-se a alguém que tenha como único objetivo temperar as almas de seus subordinados ora pela alegria do bom convívio, ora pela “correção, grande meio de salvação”,4 é de fato um gáudio incomparável.
Assim, com vistas a elevá-lo e uni-lo mais a Deus, o Bem-aventurado Onofre de Seggiano procurou pô-lo nos trilhos da despretensão dirigindo-lhe todos os dias severas reprimendas. São João guardaria sempre vivo reconhecimento, profunda afeição, verdadeira veneração àquele mestre de noviços: “Eu dou graças ao Senhor, repetia muitas vezes, por me ter dado um tal guia; se ele não tivesse usado para comigo de semelhantes rigores, jamais eu teria adquirido a humildade e a paciência”.5
O método obteve resultados eficazes. Aprendendo a ser um leão contra si mesmo, transformou-se num apóstolo de fogo, cujas palavras arrebatariam multidões. Sua simples presença estremeceria os infernos, seria motivo de pavor para os maus, e de ânimo, entusiasmo e união para os bons.
Reformador franciscano e inquisidor-geral
A obediência o levou a percorrer a Europa inteira, pregando o Evangelho e realizando tarefas da maior responsabilidade no seio dos Frades Menores ou em benefício da Igreja Universal. Foi Comissário Apostólico durante anos, Visitador-Geral da Ordem, Vigário-Geral repetidas vezes. Com Martinho V, grande luta travou a fim de harmonizar os Irmãos Menores Observantes e os Conventuais sob uma mesma regra.
Não era apenas em sua Ordem que se espalhava a divisão. Uma maré montante de novas doutrinas assolava a Igreja, constituindo outro campo de batalha. Além dos fraticelli, já existentes, surgiram os partidários de John Wycliffe, e de Jan Hus, desviando-se, cada qual com suas teorias, dos sãos ensinamentos da tradição eclesiástica. Chegaram a tomar armas e, a fim de impor suas crenças a ferro e fogo, semeavam destruição, pânico e carnificina por onde passavam.
“Todavia, no seio desta noite de trevas e de sangue, em face desses insurrectos fanáticos e desses profetas do inferno, São João de Capistrano se ergueu como a sentinela avançada do Papado, como o flagelo da hipocrisia e da rebelião, como a muralha inexpugnável da verdade católica. O Papa o tinha nomeado inquisidor-geral para toda a Cristandade”.6
Utilizando-se de um método sapiencial, São João de Capistrano procurava esclarecer a doutrina católica aos opositores, organizava discussões públicas que permitiam a todos expor suas ideias e conhecer a verdade da Igreja, e por fim perdoava a todos os que manifestassem arrependimento. Extremamente bondoso, sabia aliar à justiça o bom senso.
A título de ilustração, dois fatos nos permitem conhecer melhor esse modo de proceder.
Encontrava-se João em Breslau, na Polônia, quando alguns hereges, querendo zombar dele, montaram uma paródia: fingindo ser católicos, colocaram um rapaz vivo num caixão, com o intuito de “fazer o milagre” de sua ressurreição. Instruído divinamente, disse-lhes João com um acento terrível: “Que sua herança seja para sempre com os mortos…” Tentaram em vão reanimar o jovem: a vingança divina o tinha golpeado.
Bem diferente foi o ocorrido no povoado de Lach, na Morávia, distante quatro dias de Viena, onde certa vez o Santo pregava. Um casal tivera a infelicidade de perder sua filha Catarina, encontrada depois de dois dias de busca afogada num poço. Ouvindo os rumores dos prodígios operados pelo taumaturgo, não hesitaram em empreender viagem, levando consigo o cadáver. Chegando junto ao homem de Deus, prosternaram-se aos seus pés implorando misericórdia. Bastou João tocá-la para a menina retomar a vida!
A infatigável ação apostólica deste verdadeiro “arauto da divina palavra”7 era tal que, “quando pregava e quando agia, todos imaginavam ver outro São Paulo”.8 Entretanto, todo seu poder de palavra e atração, toda sua capacidade de unir, harmonizar e arrastar demonstrados ao longo dos anos pareciam ter-lhe sido concedidos pela Providência com vistas a um momento auge da História da Cristandade: o cerco de Belgrado.
“O espírito de nossos príncipes vacila”
No início de 1455, os húngaros estavam decididos a assinar uma trégua com os otomanos que ameaçavam invadir a Europa. Sentiam-se abandonados pelo resto do continente e diante dessa grave situação o Legado Pontifício Enea Silvio Piccolomini, futuro Papa Pio II, escreve a São João: “O espírito de nossos príncipes vacila; nossos reis dormem, os povos fraquejam e a barca de Pedro, batida pelas ondas, está a ponto de ser submergida… Cedemos todos à tempestade. O fogo sagrado de vossa palavra é o único que pode nos animar e inflamar. Os chefes das nações estão tímidos e divididos; fazei-lhes ouvir vossa voz”.9
O pedido vinha ao encontro de uma visão profética, na qual Deus revelara a Capistrano que sua vida não seria coroada pelo martírio do sangue, mas sim pelo do trabalho e do sofrimento. Certo dia, “enquanto celebrava uma Missa e pedia luzes para conhecer de onde surgiriam novos Macabeus para a salvação da Europa, ouviu vozes misteriosas, bradando: ‘Na Hungria! Na Hungria!’ Essas mesmas vozes ressoariam também aos seus ouvidos enquanto pregava numa praça pública”.10
Em maio de 1455 partia para Budapeste, onde conseguiu atrair para sua causa um dos mais valentes capitães da época: o voivoda11 da Transilvânia, João Huníades.
Um bizarro exército o acompanha
Tendo se espalhado a notícia de que uma formidável frota invasora se dirigia contra Belgrado, João de Capistrano partiu em sua defesa acompanhado por Huníades e por uma multidão de gente do povo: camponeses e lavradores, pobres e estudantes, monges e eremitas.
Um bizarro exército o cercava. Não possuíam cavalos, lanças ou couraças. “Um levava uma espada, outro a foice e o rastelo ou um pau coberto de ferro; mas em todos havia abnegação e desprezo da morte”.12 Depositavam toda a sua confiança no santo frade, o qual os exortava à constância, à luta pela Fé e ao martírio: “Seja no avanço, seja na derrota, seja golpeando, seja golpeados, invocai o nome de Jesus; porque só n’Ele está a salvação”.13
Tendo João Huníades por cabeça e braço forte, e ao santo frade como coração e alma, a bizarra milícia conseguiu vencer uma primeira batalha no Danúbio, mas logo os otomanos se reagruparam e atacaram com redobrado esforço os muros da cidade de Belgrado.
A vista do imenso exército reunido pelo inimigo era tão esmagadora que o próprio Huníades teve um momento de vacilação: “Meu Pai, estamos vencidos… vamos infalivelmente sucumbir”.14 Mas o capuchino, interrompendo-o, respondeu com voz indignada: “Não temais, ilustre Senhor; Deus é poderoso!”15
O inimigo foge do campo de batalha
Na madrugada do dia 21 para 22 de julho de 1456, após renhidos combates, chegara o momento decisivo. Os cristãos, que até então defendiam a cidade com pedras e flechas, foram tomados por uma inspiração súbita: acumularam madeira e silvado, atearam-lhes fogo e lançaram magotes incandescentes sobre os assaltantes. Estes, cegados pela fumaça e queimados pelas chamas, recuaram espantados, fugindo e caindo nos fossos.
Então, ao comando de Capistrano, todos aclamaram o nome de Jesus e se precipitaram na direção das fileiras inimigas, enquanto o frade repetia seu brado de guerra: “Vitória! Jesus, vitória!” Ferido e vendo seu exército dispersado, o sultão fugiu do campo de batalha, deixando atrás de si vinte e quatro mil mortos, trezentos canhões e muitos despojos.
Pouco tempo depois São João adoece. Num sábado, 23 de outubro de 1456, em inteira serenidade, com os olhos fixos no céu, entrega sua alma ao Deus das vitórias aos setenta anos de idade. Séculos depois, já elevado à honra dos altares, a Igreja o declararia patrono dos capelães militares.16
Santo da combatividade marial
“Humanamente falando, que homem foi em seu século maior do que São João de Capistrano?”, perguntava-se Dr. Plinio Corrêa de Oliveira. E logo a seguir respondia: “Santo, orador, estadista, diplomata, Geral de uma Ordem Religiosa importantíssima, e por fim guerreiro, foi exímio em tudo. E o segredo de sua grandeza está precisamente na santidade, no auxílio da graça que lhe permitiu vencer os defeitos da sua natureza, e aproveitar admiravelmente todos os dons sobrenaturais e naturais que Deus lhe dera”.17
Santo da combatividade marial, João de Capistrano foi um excelente reflexo d’Aquela que é qualificada pela Escritura como “terribilis ut castrorum acies ordinata”18 (Ct 6, 3). Trabalhando contra o relaxamento interno em sua Ordem, tornou-se dela reformador; enfrentando as heresias que assolavam a Igreja, fez-se teólogo e inquisidor; contra o perigo do Crescente invasor, intrépido lutador. Impugnando, por sua ardente palavra, os vícios da sociedade, foi como um novo Apóstolo. E, sobretudo, lutando contra si mesmo, venceu uma peleja superior a todas as outras: a Igreja hoje o reconhece como Santo, e os fiéis, junto a Maria, o honrarão por toda a eternidade! ◊
Notas