Terceira Revolução – “A Rússia espalhará seus erros pelo mundo…”

Tendo abolido as desigualdades eclesiásticas e aristocráticas, o processo revolucionário visava, em sua terceira fase, derrubar a que restava no campo social e econômico. E suas consequências ainda se fazem sentir em todo o orbe.

Os albores do século XIX encontram a humanidade entorpecida pelo hálito mórbido da Revolução Francesa, que a fez imergir no binômio medo-simpatia: medo devido ao terror imposto pela virulência dos revolucionários contra qualquer obstáculo que se lhes opusesse pelo caminho, e simpatia pelo bafejo de liberdade, proclamada como princípio absoluto “para justificar o livre curso das piores paixões e dos erros mais funestos”.1

Sua brisa mefítica continua a soprar. Agora, porém, sob a aparência dos bons ares do progresso trazido pela Revolução Industrial, precursora de um futuro que acabará com o sofrimento, no qual “o homem terá superado o mal pela ciência e terá transformado a terra em um ‘céu’ tecnicamente delicioso,”2 vendo atendidas as veleidades de seu coração cada vez mais afastado da eternidade.

Sob a bandeira do progresso, avança a hidra revolucionária

A ânsia pelo gozo da vida e pelos prazeres característica do espírito burguês que permeava a sociedade, sobretudo com a ascensão fulgurante de inúmeros parvenus e demais espécies de oportunistas, ferira gravemente a “superfície” das almas, permitindo à Revolução avançar célere para atingir-lhes o núcleo. Deslumbradas com o desenvolvimento técnico, inebriadas pelas inovações da máquina e pela produção industrial que iam dando “ao homem possibilidades que outrora desejava e não podia alcançar, porque eram mais ou menos próprias ao milagre”,3 as massas iludiam-se com a utopia forjada sob a bandeira do progresso.

Como observa Dr. Plinio, não deixou de haver teóricos a sustentar que “as utopias são necessárias e o homem não vive sem elas, ainda que saiba serem utopias; daí, por exemplo, a concepção do Céu, dizem. A utopia, entretanto, é engendrada por uma tendência mórbida: porque não aceita a verdade religiosa, então engendra a ideia de que o Céu é o paraíso de umas tantas tendências que procura realizar nesta vida. E o mundo que a Revolução Industrial visou é uma utopia que ela procurou realizar”.4

A modernidade não queria se dar conta, todavia, de que estava sendo montado um imenso teatro para a nova ofensiva da Revolução em seu terceiro grande lance: “O orgulho, inimigo de toda superioridade, haveria de investir contra a última desigualdade, isto é, a de fortunas”.5 Era o comunismo que ia sendo urdido como demagógico defensor das classes operárias, elas próprias um produto artificial do desenvolvimento industrial, que arrancara verdadeiras multidões da preservação de suas origens geralmente rurais e as lançara nos arredores das fábricas nas grandes cidades.

Para esse passo, se fomentaria no operariado o espírito igualitário e de revolta, liberal e ateu, transpondo para o campo social e econômico as máximas de falsa justiça e liberdade propaladas nas Revoluções anteriores. Deste modo, a hidra revolucionária avançava, fazendo penetrar suas sinistras cabeças em todos os âmbitos da sociedade e engolindo o que ainda restava da Civilização Cristã.

Pródigo na elaboração das metáforas, Dr. Plinio compara a ação revolucionária com um incêndio que se propaga em uma floresta. Não são “mil incêndios autônomos e paralelos, de mil árvores vizinhas umas das outras”, diz ele, mas um fato único, que engloba na “realidade total os mil incêndios parciais, por mais diferentes, aliás, que cada um destes seja em seus acidentes”.6 Foi o que se deu na eclosão dos episódios pré-comunistas que emergiam do mundo post Revolução Francesa, em franco processo de desagregação moral.

Caldo de cultura preparatório

Esses episódios acidentais não constituíam senão o fenômeno de “combustão da floresta”, estabelecendo o caldo de cultura preparatório para a explosão comunista. Assim os descreve Dr. Plinio: “Da Revolução Francesa nasceu o movimento comunista de Babeuf. E mais tarde, do espírito cada vez mais vivaz da Revolução, irromperam as escolas do comunismo utópico do século XIX e o comunismo dito científico de Marx”.7

Conforme mencionado no artigo anterior, François Noël Babeuf, jornalista ateu francês, atuou na Revolução Francesa como jacobino e defendia ideias de igualitarismo radical. Fundou a Conjuração dos Iguais, em 1795, cujo objetivo era manter os ideais revolucionários e garantir a coletivização da terra e das propriedades. Ainda não estavam em voga os termos anarquismo ou comunismo, mas posteriormente foram usados para definir o cunho de seu movimento, considerado o primeiro “partido comunista” da História e precursor dos levantes proletários que pululariam menos de um século depois.

Suas ideias inspiraram o chamado socialismo utópico, cujos pensadores mais exponenciais foram Saint-Simon, Charles Fourier e Robert Owen. Friedrich Engels rejeita essa concepção, pelo fato de não apontar para a luta política e revoltosa do proletariado. No entanto, reconhece sua importância, por apresentar alternativas comunistas para a sociedade industrial, ao criticar a situação operária e alimentar o mencionado desejo das utopias.

Com efeito, o objetivo da Revolução era “incendiar a floresta” inteira: “Um mundo em cujo seio as pátrias unificadas numa República Universal não sejam senão denominações geográficas, um mundo sem desigualdades sociais nem econômicas, dirigido pela ciência e pela técnica, pela propaganda e pela psicologia, para realizar, sem o sobrenatural, a felicidade definitiva do homem: eis a utopia para a qual a Revolução nos vai encaminhando”.8

O comunismo mostra sua cara

Foi o comunismo dito científico de Karl Marx, com a colaboração do mesmo Engels, contudo, que propôs práticas concretas de luta de classes, estabelecendo a burguesia – outrora a vanguarda revolucionária! – como nova classe opressora dos trabalhadores. Hélas… É assim que a Revolução premeia e fagocita seus próprios mentores. Tal foi o teor do Manifesto comunista de 1848, representativo do programa e dos propósitos da Liga dos Comunistas: conscientizava o proletariado da necessidade de se insurgir contra a propriedade privada dos meios de produção e o incitava a batalhar por uma nova organização social.

A primeira toma de poder operário de caráter socialista dos tempos modernos foi a Comuna de Paris, em 1871, por ocasião da derrota francesa na Guerra Franco-Prussiana. Este governo proletário e ateu, que durou apenas setenta e dois dias e foi fortemente reprimido por Adolphe Thiers, presidente da república gaulesa, esboçou o paradigma para experiências revolucionárias futuras, tais como a Revolução Russa de 1917 e a Revolução Chinesa de 1949.

“Um mundo em cujo seio as pátrias unificadas numa República Universal não sejam senão denominações geográficas, um mundo sem desigualdades sociais nem econômicas, dirigido pela ciência e pela técnica, pela propaganda e pela psicologia”, eis o objetivo da Revolução
Vladimir Lenin discursando em maio de 1920

Sem embargo, naquela quadra histórica a influência dessas ideias atingia com profundidade apenas os teóricos do comunismo, porque, na realidade, “as multidões ignoram o chamado comunismo científico, e não é a doutrina de Marx que atrai as massas”, afirma Dr. Plinio.

Analisando historicamente a Opinião Pública, ele mostra que a Revolução mudara de tal forma as mentalidades, que até quem se opunha às ideias comunistas o fazia com certa vergonha, permitindo seu avanço. Tal estado de espírito procedia “da ideia, mais ou menos consciente, de que toda desigualdade é uma injustiça, e de que se deve acabar não só com as fortunas grandes, como com as médias, pois se não houvesse ricos também não haveria pobres”.9 Tal era o ideal revolucionário.

Duas faces: de uma moeda e de uma medalha

Todo esse processo revela uma marcha em duas pistas: de um lado, o avanço industrial, que gerava uma classe operária explorada por um capitalismo selvagem e inescrupuloso em relação à dignidade humana, oposto ao ensinamento católico; de outro, os defensores do proletariado oprimido, com a luta de classes. Eram duas faces de uma mesma moeda: o avanço da Revolução.

A Igreja não assistia passiva e indiferente a essas transformações radicais da sociedade. Zelosa pelos fiéis, sua preocupação, cheia de caridade cristã, se fez sentir nos inúmeros documentos que constituem o que conhecemos como a Doutrina Social da Igreja. Aliás, não é descabido salientar que os grandes avanços legislativos em matéria de verdadeira justiça social partiram, não poucas vezes, de iniciativas políticas católicas.

Dos Papas do tempo emanaram ensinamentos também em duas pistas: uma, em defesa dos trabalhadores; outra, condenando os erros das doutrinas comunistas que se apresentavam como saída para o que chamavam, desde então, de “injustiças sociais”, refrão usado pelos revolucionários para atrair a simpatia até mesmo dos meios católicos.

Podemos citar, como exemplo, as Encíclicas Rerum novarum e Quod apostolici muneris, de Leão XIII, a Encíclica Nostis et nobiscum, do Beato Pio IX, o Motu proprio Fin dalla prima nostra, de São Pio X, e a Encíclica Ad beatissimi apostolorum, de Bento XV. Eram duas faces de uma mesma medalha: o desejo de salvação das almas, pela proteção do bem ou pela coerção do mal.

Tais atos pontifícios visavam, de um lado, coibir o vazamento de católicos para as fileiras do comunismo. Mas também a infiltração dos comunistas nos meios católicos, sob pretexto de uma colaboração entre uns e outros para a solução de certos problemas socioeconômicos”.10

Oposição à doutrina católica

Em 1917, pouco antes de eclodir a Revolução Comunista que derrubou o czarismo na Rússia, Nossa Senhora avisava em Fátima que essa nação espalharia “seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja”.11 De fato, o bolchevismo russo foi um marco e deu mais força ao movimento, que conquistou boa parte das nações do orbe, justamente por meio de guerras e perseguições aos católicos.

“O comunismo é intrinsecamente perverso. Nas regiões onde consegue penetrar, tanto mais devastador lá se manifesta o ódio dos ‘sem-Deus’”
Militantes esquerdistas alvejam o monumento ao Sagrado Coração de Jesus durante a Guerra Civil Espanhola – Cerro de los Ángeles, Madri

Esses erros a que se referira a Mãe do Salvador foram condenados com vigor pelo Sagrado Magistério: “O comunismo, denominado bolchevista e ateu, que se propõe como fim peculiar revolucionar radicalmente a ordem social e subverter os próprios fundamentos da Civilização Cristã […] é intrinsecamente perverso e não se pode admitir em campo nenhum a colaboração com ele, da parte de quem quer que deseje salvar a Civilização Cristã. […] As regiões onde o comunismo consegue penetrar, tanto mais devastador lá se manifesta o ódio dos ‘sem-Deus’”;12O comunismo é de si materialista e anticristão; embora declarem em suas palavras, às vezes, que não atacam a Religião, os comunistas demonstram, na realidade, por sua doutrina e por suas ações, que se opõem a Deus, à verdadeira Religião e à Igreja de Cristo”.13

Seus princípios, de si, violam os Mandamentos da Lei de Deus quanto aos deveres religiosos, à constituição da família e ao direito à propriedade privada, sendo, portanto, contrários à doutrina católica, independentemente de uma pretensa colaboração com a Hierarquia Católica em função das conveniências de tempo e lugar, como Dr. Plinio denunciou com tino profético na sua comentadíssima obra A liberdade da Igreja no estado comunista.

São severas as palavras dos Papas a respeito dos comunistas e seus adeptos: “Pretendem valer-se de seu trabalho para derrubar o governo de qualquer autoridade superior, para roubar, saquear, invadir primeiro as propriedades da Igreja e depois as de todos os outros; para violar finalmente todos os direitos divinos e humanos, destruindo o culto divino e subvertendo a estrutura inteira da sociedade civil. […] Se os próprios fiéis, desprezando as advertências paternas dos seus pastores e os já citados Mandamentos da Lei Cristã, deixarem-se enganar pelos referidos promotores das hodiernas conspirações e decidirem conjurar com eles nos perversos sistemas do socialismo e do comunismo, saibam e considerem seriamente que, deste modo, acumulam para si, diante do Juiz Divino, uma infinidade de vinganças para o dia da ira; e que, todavia, dessa conspiração não poderá derivar a menor utilidade temporal para o povo, senão novos aumentos de miséria e desventura”.14

Disfarçados de cordeiros, os lobos comunistas se apresentavam, amiúde, como socialistas cristãos, tendo sido intransigentemente denunciados: “Embora os socialistas, abusando do próprio Evangelho para enganar os incautos, tenham o hábito de distorcê-lo segundo suas intenções, é tanta a discordância de suas opiniões perversas com a doutrina pura de Cristo, que não se pode imaginar uma maior”.15 Isso porque “todos aqueles, particulares ou reunidos em associações, que se ufanam do nome de cristãos devem, se têm consciência do próprio dever, promover não a inimizade e a rivalidade entre as classes sociais, mas a paz e a caridade mútua”.16

Em síntese, “o socialismo, quer se considere como doutrina, quer como fato histórico, ou como ‘ação’, se é verdadeiro socialismo, mesmo depois de se aproximar da verdade e da justiça nos pontos sobreditos, não pode conciliar-se com a doutrina católica; pois concebe a sociedade de modo completamente avesso à verdade cristã. […] E se este erro, como todos o demais, encerra algo de verdade, o que os Sumos Pontífices nunca negaram, funda-se, contudo, numa própria concepção da sociedade humana, diametralmente oposta à verdadeira doutrina católica. Socialismo religioso, socialismo católico são termos contraditórios: ninguém pode ser, ao mesmo tempo, bom católico e verdadeiro socialista”.17

Consequências nefastas

Nefastas foram as consequências da enorme transformação que sofreu o mundo civilizado com o comunismo, denominado pelo então Cardeal Ratzinger como “vergonha de nosso tempo”:

“Milhões de nossos contemporâneos aspiram legitimamente reencontrar as liberdades fundamentais de que estão privados por regimes totalitários e ateus, que tomaram o poder por caminhos revolucionários e violentos, exatamente em nome da libertação do povo. Não se pode desconhecer esta vergonha de nosso tempo: pretendendo proporcionar-lhes liberdade, mantêm-se nações inteiras em condições de escravidão indignas do homem”.18

Conforme denunciou Dr. Plinio, o comunismo abriu passo para uma nova fase na Revolução
Dr. Plinio numa conferência no Rio de Janeiro, em 1961

Com a derrocada da última das desigualdades da sociedade, o comunismo abria passo para uma nova fase da Revolução, que, mais do que nunca, tinha pressa de chegar a seus objetivos finais, gerando um tipo humano diverso do antigo ocidental cristão, como bem descreve Dr. Plinio em sua obra-mestra:

“E assim, ébrio de sonhos de República Universal, de supressão de toda autoridade eclesiástica ou civil, de abolição de qualquer Igreja e, depois de uma ditadura operária de transição, também do próprio Estado, aí está o neobárbaro do século XX, produto mais recente e mais extremado do processo revolucionário”.19 

 

Notas


1 RCR, P.I, c.7, 3, B.

2 Idem, c.11, 3.

3 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Palestra. São Paulo, 5/1/1986.

4 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Palestra. São Paulo, 22/8/1986.

5 RCR, P.I, c.3, 5, D.

6 Idem, c.3, 2.

7 Idem, 5, D.

8 Idem, c.11, 3.

9 Idem, P.II, c.11, 1, B.

10 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Comunismo e anticomunismo na orla da última década deste milênio. In: Catolicismo. São Paulo. Ano XL. N.471 (mar., 1990); p.12.

11 IRMÃ LÚCIA. Memórias I. 13.ed. Fátima: Secretariado dos Pastorinhos, 2007, p.177.

12 PIO XI. Divini Redemptoris, n.3; 58.

13 SAGRADA CONGREGAÇÃO DO SANTO OFÍCIO. Decreto contra o comunismo: AAS 41 (1949), 334.

14 BEATO PIO IX. Nostis et nobiscum.

15 LEÃO XIII. Quod apostolici muneris.

16 SÃO PIO X. Singulari quadam.

17 PIO XI. Quadragesimo anno.

18 SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Instrução sobre alguns aspectos da “Teologia da libertação”, c.XI, n.10.

19 RCR, P.I, c.3, 5, D.

 

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