Uma “perseguição” da bondade divina

Destruído o plano original da criação com o pecado de nossos primeiros pais, inicia Deus, em sua bondade infinita, um processo que culmina de forma grandiosa na noite da Ressurreição do Senhor.

Evangelho da Vigília Pascal na Noite Santa

No primeiro dia da semana, bem de madrugada, as mulheres foram ao túmulo de Jesus, levando os perfumes que haviam preparado. Elas encontraram a pedra do túmulo removida. Mas ao entrar, não encontraram o Corpo do Senhor Jesus e ficaram sem saber o que estava acontecendo. Nisso, dois homens com roupas brilhantes pararam perto delas.

Tomadas de medo, elas olhavam para o chão, mas os dois homens disseram: “Por que estais procurando entre os mortos Aquele que está vivo? Ele não está aqui. Ressuscitou! Lembrai-vos do que Ele vos falou, quando ainda estava na Galileia: ‘O Filho do Homem deve ser entregue nas mãos dos pecadores, ser crucificado e ressuscitar ao terceiro dia’”.

Então as mulheres se lembraram das palavras de Jesus. Voltaram do túmulo e anunciaram tudo isso aos Onze e a todos os outros. 10 Eram Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago. Também as outras mulheres que estavam com elas contaram essas coisas aos Apóstolos. 11 Mas eles acharam que tudo isso era desvario, e não acreditaram.

12 Pedro, no entanto, levantou-se e correu ao túmulo. Olhou para dentro e viu apenas os lençóis. Então voltou para casa, admirado com o que havia acontecido (Lc 24, 1-12).

I – A mais bela cerimônia do Ano Litúrgico

A noite que antecede o Domingo da Ressurreição do Senhor é marcada pela riquíssima cerimônia da Vigília Pascal, realizada em honra deste grandioso mistério. Nos albores do Cristianismo, esta noite era muito considerada pelos fiéis, que costumavam passá-la em oração, a fim de se prepararem para comemorar o triunfo de Jesus sobre a morte com a celebração da Eucaristia, na madrugada do domingo. Desde a Quinta-Feira Santa a Igreja primitiva, imersa na lembrança da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, se abstinha do Santo Sacrifício, inclusive no sábado, preferindo acompanhar no silêncio da sepultura o Corpo inanimado do Divino Redentor. Com o decorrer do tempo perdeu-se esse costume no Ocidente, onde, a partir do século XI, a Solenidade da Ressurreição foi aos poucos antecipada para a manhã do Sábado Santo.1 Por fim, no ano de 1951, o Papa Pio XII restaurou definitivamente a Vigília Pascal com a esplêndida pompa litúrgica que a circunda, pervadida de profundo significado.

O mistério da morte de um Deus

Ainda ontem, Jesus proferia do alto da Cruz um grito lancinante, indicativo da solidão que experimentava na iminência da morte: “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonastes?” (Mc 15, 34). No entanto, não havia Ele mesmo afirmado: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10, 30)? De fato, enquanto Filho eterno do Pai, jamais d’Ele Se afastou, pois não há possibilidade de separação entre as três Pessoas da Santíssima Trindade. Também não caberia uma separação entre a natureza divina e a natureza humana de Jesus — inseparáveis na Pessoa do Verbo pela união hipostática —, nem poderia, de modo algum, romper-se a união da divindade com o Corpo ou com a Alma de Cristo.2 Houve, isto sim, a cisão entre a Alma e o Corpo ­provocando a morte. Entende-se, pois, o clamor de Jesus pelo fato de o Pai ter deixado de protegê-Lo e de assisti-Lo, abandonando-O nas mãos de seus perseguidores, a fim de Lhe permitir padecer as dores da Paixão, até expirar.3

O emotivo contraste entre as trevas e o fogo

A morte é simbolizada nesta Vigília pela escuridão que envolve a igreja e seus arredores no início da cerimônia, apenas rasgada pela luz do fogo novo. Qual é a razão mais profunda deste fogo? Segundo a concepção dos antigos, quatro são os elementos que nos rodeiam: terra, água, ar e fogo. Os três primeiros nos são bem conhecidos, pois temos contato direto com eles: pisar a terra nos dá sensação de estabilidade; produz-nos imenso agrado penetrar nas águas do mar ou beneficiarmo-nos, num salto de paraquedas, do ar puro das alturas, esplêndido claustro dos Anjos. E o fogo? Perigosa é sua aproximação e impossível seria manter-se vivo entre as chamas. Entretanto, é ele uma substância indispensável para a vida na Terra, a começar pelo fogo do Sol, fonte de luz e calor.

O fogo deste mundo, porém, é uma pálida imagem de outro muito superior. Boa parte dos escolásticos considera que o Céu Empíreo não está composto das quatro essências referidas, mas de uma quinta essência.4 Algo à semelhança do fogo — daí a palavra empíreo, do grego πυρός (pirós), que significa fogo —, com características notavelmente diversas, pois Deus retira o ardor destrutivo deste fogo, reservando-o para o tormento dos réprobos no inferno, e conserva sua luminosidade para prazer e alegria dos Bem-aventurados no Paraíso.5 Afirma o Doutor Angélico que se pode dizer que “o Céu Empíreo tem luz não condensada, capaz de emitir raios luminosos como o Sol, mas mais sutil. Ou, então, dizer que tem a claridade da glória, diferente da claridade natural”.6 Essa luz especial, por sua vez, nada é em comparação com a Luz verdadeira e vivificante que é o próprio Deus, pois Ele é Luz (cf. I Jo 1, 5). A grande Santa Teresa de Jesus, após uma visão mística na qual lhe apareceu o Divino Salvador, exclamava: “Parece uma coisa tão desdourada a claridade do Sol que vemos, em comparação com aquela claridade e luz que se apresenta à vista, que os olhos não quereriam abrir-se depois. […] É luz que não tem noite e que, como sempre é luz, nada a perturba”.7

O Círio Pascal — símbolo de Nosso Senhor — é aceso no fogo abençoado nesta noite que representa a divindade de Cristo, por cuja força, idêntica à do Pai, Ele Se ressuscitará a Si mesmo8 de maneira fulgurante, ao unir novamente sua Alma a seu Corpo agora glorioso, e fazendo cessar o milagre negativo pelo qual, desde o momento da Encarnação, Ele quisera assumir um corpo padecente apesar de sua Alma estar na posse da visão beatífica.9 “A divindade, com efeito” — afirma São Leão Magno —, “que não se tinha retirado das duas substâncias que compunham o homem que ela havia assumido, reuniu por seu poder aquilo que seu poder havia separado”.10

Vitória de Cristo sobre o pecado e a morte

Antes da Redenção, a humanidade jazia numa tremenda noite de trevas: as do pecado e da morte. Ora, Nosso Senhor Jesus Cristo, voltando à vida, nos trouxe a libertação completa, transmitindo-nos sua própria luz, assim como a chama do Círio Pascal, acesa a partir do fogo sagrado, vai sucessivamente acendendo as velas que os fiéis portam apagadas desde o início da celebração litúrgica, para significar que Jesus é a Luz do mundo e quem O segue “não andará em trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8, 12).

Não só nos comunicará Ele a graça santificante, como também nos tornará partícipes de sua mesa. Por isso, a Vigília Pascal é a ocasião mais apropriada para celebrar a um só tempo os dois grandes Sacramentos da vida cristã: o Batismo, que abre as portas a todos os demais, e a Eucaristia, o mais excelente e perfeito, pois tem como substância o próprio Deus.

As letras alfa e ômega, gravadas pelo celebrante no Círio, recordam que Jesus é o princípio e o fim. D’Ele provém e n’Ele deve confluir toda a obra da criação: “Cristo ontem e hoje. Princípio e fim. Alfa e ômega. A Ele o tempo e a eternidade, a glória e o poder pelos séculos sem fim. Amém”.11

Após esse rito inicial, o Círio é introduzido no recinto sagrado, onde um diácono proclama o Precônio Pascal, emocionante canto que patenteia o quanto o pecado, sob certo ponto de vista, foi necessário para merecermos um tão grande Redentor.

A sinagoga cede lugar à Igreja – Museu do Prado, Madri

Uma síntese da História da salvação

Por fim, a Liturgia da Palavra sintetiza em sete leituras do Antigo Testamento a História da salvação, à luz das maravilhas operadas por Deus em favor do povo eleito desde sua gênese até a Ressurreição do Senhor, comemorada na própria Missa. Este sapiencial conjunto de trechos das Sagradas Escrituras constituía o último ensinamento dado aos catecúmenos que, segundo uma antiga tradição da Igreja, seriam batizados nessa mesma noite.

A primeira leitura (Gn 1, 1-2, 2) narra a obra dos seis dias, desenrolar de um plano magnífico dentro do qual Deus estabelece o homem, feito à sua imagem e semelhança, como rei e dominador de toda a Terra. Nessa passagem do Livro do Gênesis, podemos destacar a criação da luz e a separação entre o dia e a noite, tão simbolicamente relacionada com a cerimônia anterior.

Na segunda leitura (Gn 22, 1-18) consideramos a Aliança feita por Deus com Abraão, como penhor da vitória sobre a terrível noite que atravessava a humanidade desde o pecado original, no Paraíso. Este episódio ressalta a eleição de um povo não restrito ao sangue, mas espiritual, aberto a uma amplitude infinita e confinado no próprio Deus. Estirpe que tem sua origem num pai comum, Abraão, do qual nasceu Isaac, que gerou Jacó, cujos filhos se estabeleceram no Egito, onde cresceram e se multiplicaram, tornando-se uma numerosa e temível nação, até cair na escravidão, quando “subiu ao trono do Egito um novo rei, que não tinha conhecido José” (Ex 1, 8). Mais uma vez, Deus toma a iniciativa de vir em auxílio dos hebreus, suscitando a figura de Moisés que os libertará da servidão por meio de uma sucessão de milagres, cujo ápice nos descreve a terceira leitura (Ex 14, 15-15, 1): os israelitas transpõem o Mar Vermelho a pé enxuto, enquanto todo o exército egípcio se afoga nas águas, num novo triunfo do desígnio de Deus em favor de sua amada herança.

A seguir, duas passagens do profeta Isaías (54, 5-14; 55, 1-11) mostram a grande compaixão de Deus que não abandona sua grei, apesar de tê-la rejeitado por um instante em punição por suas infidelidades e transgressões. A imagem da esposa repudiada e depois resgatada é símbolo da sinagoga que cede lugar à Igreja, com a qual o Senhor firma uma Nova Aliança irrevogável e indissolúvel.

Por fim, seguem-se as últimas leituras do Antigo Testamento, extraídas das profecias de Baruc (3, 9-15.32-4, 4) e de Ezequiel (36, 16-17a.18-28). Na primeira, vemos os hebreus à mercê dos inimigos e privados da paz por terem abandonado a sabedoria; mas Deus, com um carinho mais que maternal, os ensina a abraçá-la novamente e a caminhar “para o esplendor, à sua luz” (Br 4, 2). Ezequiel, por sua vez, relembra os castigos infligidos ao povo pela queda na idolatria, e lhe anuncia, ao mesmo tempo, os portentos de misericórdia que o Senhor fará, em consideração ao seu santo nome: “Derramarei sobre vós uma água pura, e sereis purificados. Eu vos purificarei de todas as impurezas e de todos os ídolos. Eu vos darei um coração novo e porei um espírito novo dentro de vós. Arrancarei do vosso corpo o coração de pedra e vos darei um coração de carne; porei o meu espírito dentro de vós e farei com que sigais a minha Lei e cuideis de observar os meus Mandamentos. Habitareis no país que dei a vossos pais. Sereis o meu povo e Eu serei o vosso Deus” (Ez 36, 25-28). A despeito da impiedade de seu povo, Deus assegura que derramará sobre ele uma água pura capaz de apagar todos os seus pecados, prenunciando a regeneração batismal que confere a graça santificante e nos torna partícipes da vida divina.

A belíssima sequência dessas leituras culmina — depois do cântico do Glória — com uma oitava leitura: um trecho da Epístola de São Paulo aos Romanos (6, 3-11), na qual ele, apóstolo da Ressurreição, torna patente como a elevação de nossa natureza ao plano sobrenatural, profetizada por Ezequiel, tem seu fundamento na Ressurreição de Cristo, e como devemos ser consequentes em conformar a própria existência com esse inestimável dom, morrendo para o pecado e vivendo só para Deus.

Deus sempre oferece cem por um

O rito da Vigília Pascal cria, progressivamente, uma ambientação para compreendermos o amor infinito de Deus e seu desejo de perdoar. Assim, Ele aceita benigno a oferta de fé de Abraão, atende a súplica de Moisés, e estabelece promessas sempre renovadas que cumpre com assombrosa exuberância e prodigalidade, dando mais do que cem por um, pois não há proporção entre a promessa e sua realização. Depois de todos os desvarios da nação eleita, ainda suscita do meio dela Maria Santíssima, São José e o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, e oferece-lhe a garantia da conversão e da restituição do esplendor original, no fim do mundo (cf. Rm 11, 25-32).

Sagrado Coração de Jesus – Igreja da Imaculada Conceição, Panjim (Índia)

II – A falta de fé na Ressurreição demonstrada pelos Apóstolos

Essa suprema bondade divina encontra no Evangelho uma nova manifestação.

No primeiro dia da semana, bem de madrugada, as mulheres foram ao túmulo de Jesus, levando os perfumes que haviam preparado. Elas encontraram a pedra do túmulo removida. Mas ao entrar, não encontraram o Corpo do Senhor Jesus 4a e ficaram sem saber o que estava acontecendo.

As Santas Mulheres, com Santa Maria Madalena à cabeça — que deve ter incentivado as outras a segui-la —, foram ao túmulo esperando encontrar apenas um cadáver, prova de que elas nem cogitaram numa possível ressurreição de Jesus, embora Ele a tivesse anunciado claramente, em várias oportunidades.

Naquele tempo os sepulcros não eram como os de nossos dias. Segundo o costume judaico, as famílias ricas não sepultavam os mortos na terra, mas em câmaras cavadas na rocha, às vezes tão profundas que tinham escadas de acesso e galerias subterrâneas. Na entrada havia dois trilhos sobre os quais rolava uma pedra circular que fechava o recinto, sendo inclusive lacrada.

Ora, a realidade constatada pelas mulheres não foi a da pedra deslocada franqueando a entrada — o que de si seria inusual —, mas violentamente removida para fora dos trilhos, atestando com contundência a Ressurreição do Senhor, confirmada ademais pela ausência de seu sagrado Corpo.

Os Anjos lembram o que havia sido anunciado pelo Salvador

4b Nisso, dois homens com roupas brilhantes pararam perto delas. Tomadas de medo, elas olhavam para o chão, mas os dois homens disseram: “Por que estais procurando entre os mortos Aquele que está vivo? Ele não está aqui. Ressuscitou! Lembrai-vos do que Ele vos falou, quando ainda estava na Galileia: ‘O Filho do Homem deve ser entregue nas mãos dos pecadores, ser crucificado e ressuscitar ao terceiro dia’”. Então as mulheres se lembraram das palavras de Jesus.

Tomadas de surpresa e dominadas pelo medo, as mulheres nem sequer reconheceram como tais os dois Anjos que delas se aproximaram para lhes comunicar que o Divino Mestre estava vivo. Só depois de ouvir suas palavras elas se lembraram das reiteradas ocasiões em que Nosso Senhor predissera sua Paixão, Morte e Ressurreição.

As mulheres, primeiras evangelizadoras da Ressurreição

Voltaram do túmulo e anunciaram tudo isso aos Onze e a todos os outros. 10 Eram Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago. Também as outras mulheres que estavam com elas contaram essas coisas aos Apóstolos. 11 Mas eles acharam que tudo isso era desvario, e não acreditaram. 12 Pedro, no entanto, levantou-se e correu ao túmulo. Olhou para dentro e viu apenas os lençóis. Então voltou para casa, admirado com o que havia acontecido.

Tendo acreditado, as mulheres saíram correndo para transmitir aos Apóstolos e discípulos a notícia desse magno acontecimento. Todavia, vendo-as chegar naquele estado de comoção, eles julgaram tratar-se de febricitação — fruto da volubilidade feminina —, o que as levava a imaginar situações irreais. Homens concebidos no pecado original e portadores, até então, de uma débil fé, foram incapazes de crer na maravilha que se passara, pois, “voltados ainda para a Terra não podiam voar mais alto”.12

São Pedro e São João, por via das dúvidas, resolveram dirigir-se ao sepulcro para comprovar a veracidade do que lhes fora relatado, sem entender, contudo, o que havia sucedido nem “a Escritura, segundo a qual Jesus devia ressuscitar dentre os mortos” (Jo 20, 9). Se do Discípulo Amado apenas sabemos que “viu e creu” (Jo 20, 8), de Pedro está consignado que “voltou para casa, admirado com o que havia acontecido” (Lc 24, 12), até que, algumas horas depois, o Senhor lhe apareceu privadamente (cf. Lc 24, 34). Quanto aos demais, só mais tarde, quando colocaram as próprias mãos nas chagas de Jesus — pois, pode-se deduzir da narração evangélica (cf. Lc 24, 39; Jo 20, 20.24-25) não ter sido São Tomé o único a gozar deste privilégio —, por fim acreditaram. Lamentavelmente, também eles não haviam fixado na memória as afirmações do Divino Mestre a respeito de sua Ressurreição ao terceiro dia.

Ao designar as Santas Mulheres como primeiras evangelizadoras e arautos de sua Ressurreição, Cristo exigiu dos Apóstolos um ato de humildade. “A mulher é convidada primeiro” — comenta o padre Monsabré — “a fim de que aquela que fora outrora, junto ao homem, a mensageira da morte, reparasse seu primeiro crime, tornando-se o apóstolo da vida, e recebesse, nesse glorioso ministério, a absolvição de sua ignomínia e da maldição na qual havia incorrido. O homem se mostra rebelde à fé, a fim de que sua incredulidade providencial determine um progresso de manifestações, pelo qual o espírito humano é conduzido até a perfeita e imperiosa convicção”.13

A misericórdia divina ultrapassa as misérias

Portanto, apesar das misérias e aproveitando-se delas, a bondade de Jesus fez dos Apóstolos, dos discípulos e das Santas Mulheres testemunhas de sua Ressurreição para os séculos futuros. Mais uma vez podemos observar, na linha do ensinamento das leituras desta Vigília Pascal, uma como que “perseguição” da misericórdia e da clemência de Deus, que procura a todo custo vencer a justiça. Essa é, na verdade, a história de cada um de nós, pois se lançarmos um olhar para nossa vida passada encontraremos toda espécie de infidelidades, seguidas de um novo chamado da parte da Providência e de graças que superam as anteriormente recebidas.

São Pedro e São João diante do sepulcro vazio – Biblioteca do Mosteiro de Yuso, San Millán de la Cogolla (Espanha)

III – A Ressurreição de Cristo, razão de nossa fé

Com a perda da inocência original, começou sobre a face da Terra um drama para as almas. Dificuldades, tragédias e tentações nos assaltam em qualquer circunstância e o domínio do pecado vai, aos poucos, transformando o mundo numa selva, onde, como disse Plautus em seu famoso provérbio, “o homem é um lobo para o outro homem”.14 Privado do dom da imortalidade, recebido de Deus no Paraíso, o ser humano experimenta, com o correr dos anos, a fraqueza e o mal-estar inerente à idade, que lhe recordam a proximidade da morte e do túmulo, perspectiva que o angustia profundamente.

Entretanto, o panorama mudou de modo radical a partir do momento em que o Verbo Se encarnou e escolheu para Si um corpo padecente como o nosso, para poder sofrer todas as dores da Paixão, até o “Consummatum est!” (Jo 19, 30). “A fraqueza, sim, e a mortalidade, que não eram o pecado, mas somente a pena do pecado, o Redentor do mundo as tomou para seu suplício, a fim de pagar por meio delas nosso resgate. Aquilo que, em todos os homens, era a herança de uma condenação é, então, em Cristo, um meio sagrado nas mãos de sua bondade. Livre de toda dívida, Ele Se entregou, com efeito, ao mais cruel de todos os credores e permitiu que […] torturassem sua carne inocente. Ele quis que ela fosse mortal até sua Ressurreição, a fim de que para aqueles que cressem n’Ele, nem a perseguição pudesse parecer intolerável, nem a morte temível: porque, como não deveriam duvidar que comungavam de sua natureza, também não deveriam duvidar que participariam de sua glória”.15

Se não tivesse Nosso Senhor Jesus Cristo ressuscitado e instaurado o regime da graça, não haveria esperança verdadeira nesta vida, como o declara São Paulo de forma taxativa: “se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé” (I Cor 15, 17). Deste modo, encontramos forças para enfrentar como um episódio transitório os tormentos da morte, pois, considerando-a em função da eternidade, o tempo que medeia entre ela e a ressurreição é nada. “Sabemos” — como diz São João — “que, quando isto se manifestar, seremos semelhantes a Deus, porquanto O veremos como Ele é” (I Jo 3, 2). A prova de que Ele nos ressuscitará para a glória ao voltar no fim do mundo, se morrermos na graça de Deus, está na própria Ressurreição d’Ele que comemoramos nesta Vigília.

Dúvida de São Tomé – Museu do Prado, Madri

A fé que devemos ter!

“Tu creste, Tomé, porque Me viste; bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20, 29). Todos os católicos somos hoje bem-aventurados, pois, embora não tenhamos visto, cremos que Ele arrebentou os grilhões da morte; cremos porque no mais fundo da alma refulge a virtude da fé, infundida em nós na hora do Batismo.

Fé exigida a Abraão quando lhe foi prometido que seria pai de uma multidão de filhos, mais numerosos que as estrelas do céu e as areias das praias (cf. Gn 22, 16-17); fé que foi necessária ao povo hebreu para atravessar o Mar Vermelho, com os egípcios ao seu encalço; fé que foi pedida aos judeus, quando se encontravam na ruína e entregues à idolatria, para crer que um dia receberiam um novo coração e um novo espírito; fé indispensável aos Apóstolos para acreditar na Ressurreição do Senhor. Fé que já possui história e tradição, e na qual nos precederam tantos Santos ao longo dos séculos, mas que em nossos dias torna-se mais necessária. Fé que entra nos planos de Deus como a gota d’água que, na Missa, o sacerdote põe no cálice do vinho a ser consagrado.

A Igreja triunfará!

Encontramo-nos num processo, em estado avançado e já multissecular, em que a humanidade é paulatinamente instigada pelos infernos a afastar-se de Deus. No empenho de derrotar a Santa Igreja e de extinguir sua luz — que é o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo —, satanás age de maneira a apagar a chama da fé nas almas, obtendo como resultado um mundo paganizado, uma sociedade imersa no caos, a caminho da anarquia, onde a virtude se torna cada vez mais rara e reina o pecado. É noite!

C’est la nuit qu’il est beau de croire à la lumière!”.16 Como é belo, como é glorioso e meritório acreditar na luz à noite! Sabemos que as trevas não poderão envolver essa luz (cf. Jo 1, 5), porque ela é divina! Ela é a Esposa Mística de Cristo, sem ruga e sem mancha (cf. Ef 5, 27), erigida por Ele e nascida de seu lado no instante em que Longinus O atravessou com a lança. Ela é nossa Mãe, nossa luz, o caminho da salvação, quem distribui os Sacramentos e quem nos santifica! Ela está sempre disposta a nos perdoar, como o próprio Redentor perdoou ao bom ladrão no alto da Cruz, oferecendo-nos a possibilidade de nos reerguermos e sem permitir que esmoreçamos no caminho. Esta é a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, que tem como alicerce a promessa de seu Fundador: “tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16, 18)!

Círio Pascal na Basílica de Nossa Senhora do Rosário, Caieiras (SP)

Bem-aventurado será quem contemplar a vitória da luz sobre as trevas deste mundo, quando a Igreja esmagar a cabeça da serpente maldita e brilhar em todos os continentes com esplendor e glória jamais vistos. Será a plenitude dos efeitos do preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo derramado no Calvário e de sua Ressurreição triunfante, que hoje a Igreja celebra jubilosamente. 

 

Notas


1 Cf. GUÉRANGER, OSB, Prosper. L’Année Liturgique. La Passion et la Semaine Sainte. 26.ed. Tours: Alfred Mame et fils, 1921, p.607-608.

2 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.50, a.2; a.3.

3 Cf. Idem, a.2, ad 1; SUÁREZ, SJ, Francisco. Disp.38, sec.2, n.5. In: Misterios de la Vida de Cristo. Madrid: BAC, 1950, v.II, p.153-154.

4 Cf. PESSION, Pierre-Joseph. Le Paradis. Aoste: Catholique, 1899, p.120-123.

5 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., I, q.61, a.4; Suppl., q.97, a.1; a.4.

6 Idem, I, q.66, a.3, ad 4.

7 SANTA TERESA DE JESUS. Libro de la vida. C.XXVIII, n.5. In: Obras Completas. Burgos: El Monte Carmelo, 1915, t.I, p.219.

8 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., III, q.53, a.4, ad 1.

9 Cf. Idem, q.14, a.1, ad 2.

10 SÃO LEÃO MAGNO. De Resurrectione Domini. Sermo I, hom.58 [LXXI], n.2. In: Sermons. Paris: Du Cerf, 1961, v.III, p.125.

11 VIGÍLIA PASCAL. Bênção do fogo e preparação do círio. In: MISSAL ROMANO. Trad. Portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil realizada e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. 9.ed. São Paulo: Paulus, 2004, p.272.

12 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. De petitionem matris filiorum Zebedæi. Contra anomœos. Hom.VIII, n.4: MG 48, 774.

13 MONSABRÉ, OP, Jacques-Marie-Louis. Le Triomphateur. In: Exposition du Dogme Catholique. Vie de Jésus-Christ. Carême 1880. 9.ed. Paris: P. Lethielleux, 1903, v.VIII, p.285-286.

14 PLAUTUS, Titus Maccius. Asinaria, II, 4, 88. In: Comedias. Madrid: Gredos, 1992, v.I, p.138.

15 SÃO LEÃO MAGNO, op. cit., Sermo II, hom.59 [LXXII], n.2, p.130-131.

16 ROSTAND, Edmond. Chantecler. Paris: Pierre Lafitte et Cie, 1910, p.124.

 

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