A cena era pitoresca, pela notável desproporção entre os personagens… Ali estava Anne, com seus curtos três anos de idade, intimando um primo um pouco mais velho do que ela para escalar uma “montanha” de areia. Sua voz infantil se tornara exigente, seus olhos castanhos, brilhantes.

— Vamos subir ao topo!

— Não, não vou. É muito alto…

— Mas eu lhe digo que vai! Vai subir sim. Eu o obrigarei!

Com seu charme, precocidade e tenacidade bretã, Anne de Guigné era uma líder nata. Seus extremosos pais, todavia, sabiam que estas qualidades, se ficassem desgovernadas, tornariam sua filha primogênita uma pessoa irremediavelmente caprichosa. Tudo devia ter seu peso e medida nesta criança cuja vida se iniciava já com tanta energia.

Uma biógrafa de nossa Venerável assim descreve a via de santificação a que era chamada: “Há várias maneiras de subir a montanha da santidade. A de Anne era galgar pela escarpa do penhasco. Ela subiu retilineamente, pois seu tempo era curto. Deus a chamou pelo caminho mais rápido e ela foi”.1

 

Advertência transformada em ideal de luta

Jeanne Marie Josephine Anne de Guigné nasceu a 25 de abril de 1911, no Château de la Cour, uma mansão do século XV situada num panorama feérico aos pés dos Alpes franceses, nas proximidades do Lago de Annecy.

Seu pai era o Conde Jacques de Guigné, valoroso militar e homem de generosos sentimentos; sua mãe, Antoinette de Charette, era aparentada com o heroico general da resistência vandeana, François de Charette, e tinha um longínquo parentesco com São Luís IX.

Deus costuma servir-Se dos infortúnios para aproximar mais d’Ele as almas e derramar com mais abundância sobre elas os frutos da Redenção. Tal foi o que se passou com a família Guigné. A deflagração da Primeira Guerra Mundial assinalou uma mudança radical no rumo de sua vida: o Capitão Guigné reingressou ao seu velho regimento e foi mortalmente ferido em 22 de julho de 1915, quando comandava sua companhia no ataque de Barrenkopf, na Alsácia. Antes da batalha havia se confessado e um bilhete, rascunhado às pressas, serviria de despedida de seus filhos: “Abençoo Anne, Jacques, Magdeleine e Marie-Antoinette”.2

A pequena Anne já havia visto o pai voltar ferido do front. Na manhã de 30 de julho, contudo, ao deparar-se com o luto de sua mãe, entendeu o significado da morte. Tentava consolá-la e, em situação tão pungente, as palavras maternas ressoaram em sua alma como um recado do próprio Deus: “Anne, se queres me consolar, deves ser boa”.3

O coração generoso da filha, então com quatro anos de idade, encontrou na materna advertência um ideal de luta. Dali em diante o empenho em corresponder à graça de Deus seria para ela uma expressão de amor: “Nada custa muito quando nós O amamos”.4

Começou por combater os arroubos de seu forte temperamento, rompendo com as rivalidades mesquinhas, as birras sem sentido e as exigências egoístas. Mal suspeitava a governanta, recém-chegada naquele momento de tragédia familiar, que a prestativa menininha que lhe dava as boas-vindas, lhe mostrava os jardins e a convidava a colher algumas flores fora apelidada pela família de “pequena tirana”…

O segredo da alegria no convívio

Tal era a meta de Anne: ser boa e agradar os outros, por motivos sobrenaturais. Enquanto suas debilidades iam sendo vencidas, ganhava mais brilho sua “luz primordial”, expressão usada pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira para designar a característica específica de Deus que cada alma é chamada a refletir.

Criança respeitosa com os superiores e perfeita amiga entre seus iguais, Anne personificava a cortesia entendida como fruto do amor fraterno católico. “A cortesia é o laço cheio de respeito, distinção e afeto que une as pessoas diferentes e as coloca numa relação como as notas de uma música. Dir-se-ia que as notas de uma bela música estão em estado de cortesia entre si. […] A cortesia é a musicalidade das relações humanas”.5 Seu irmãozinho, ­Jacques, exprimia em termos infantis tal “musicalidade”, quando afirmava que ela tinha um jeitinho para tudo.

O eixo de sua habilidade em espargir leveza e alegria no convívio era uma abnegação heroica, que a levava a fazer sempre a vontade dos outros. Não se importava com o modo que as demais crianças a tratavam, desde que fossem boas. Na escola tinha as respostas na ponta da língua, mas, em vez de se sobressair, dava chance aos outros de responderem. Se alguma amiga parecia triste, logo utilizava seus recursos de gentileza, bondade e penetração psicológica para ajudar a curar alguma “ferida”. Se algo andava mal, com frequência assumia a culpa.

Zelo pela conversão dos pecadores

A princípio ela deixava transparecer sua luta para renunciar à própria vontade e, certa vez, desabafou: “Julgas ser divertido jamais fazer o que se quer?”6 Não obstante, logo os progressos se fizeram notar neste ponto à medida que aumentava seu comércio com o sobrenatural. E sabia a quem apelar: “Quando as coisas dão errado devemos recorrer a Nossa Senhora para encontrar conforto”.7

Em pouco tempo passou a se sentir ininterruptamente na presença de Deus. Com toda naturalidade saía de um entretido jogo ao ar livre para entrar numa capela e haurir novas energias d’Aquele que a arrebatava.

Pedia com insistência às religiosas do convento de Annecy e às Irmãs de Maria Auxiliadora de Cannes, onde a família tinha uma residência de inverno, para lhe fornecerem nomes de pecadores pelos quais rezar, de preferência algum grande culpado. Ao ouvir os detalhes de cada caso, assumia-o com força de vontade e espírito de fé, dizendo: “Pode deixar comigo”.8

E nada a desencorajava. Quanto mais difícil era o caso, mais ela rezava, sem nunca perder a esperança. “Estou convencida de que ele se confessará”,9 afirmou ela, ao receber a notícia de que, apesar de suas orações, um obstinado pecador persistia em recusar os Sacramentos. “Vamos rezar ainda mais”,10 decidiu. E venceu a batalha!

Entretanto, o alvo de seu zelo mais afetuoso era seu irmãozinho Jacques, a quem chamava carinhosamente por um apelido: “Deus vai me atender. Estou rezando para que Jojo seja bom”.11

Na madrugada de 14 de janeiro de 1922 perguntou baixinho à enfermeira: “Irmã, posso ir para junto dos Anjos”? – Quarto da casa Saint-Benoît, em Cannes (França), onde Anne faleceu

“Minha alma é feita para o Céu”

Anne fez sua Primeira Comunhão contando apenas cinco anos. Seu vivo desejo de receber a Eucaristia e seu indiscutível entendimento do mistério moveram o Bispo a conceder-lhe autorização para tal. Um bilhete, com letra de criança, hoje conservado como preciosa relíquia, exprime seus anelos nessa ocasião: “Quero manter meu coração puro como um lírio para Jesus”.12

No retiro para as neocomungantes, o pregador falou a respeito da obediência, que é a santidade das crianças. Anne, a mais nova dentre as meninas, tocada por aquelas palavras, deixou este oferecimento sobre o altar: “Meu pequeno Jesus, eu Vos amo, e para agradar-Vos, faço o propósito de obedecer sempre”.13

Sua catequista recorda-se de ter explicado às crianças, depois da cerimônia, ser impossível haver-lhes dado maior dom, pois na Eucaristia elas haviam recebido o próprio Deus. “Ao ouvir estas palavras, os olhos de Anne cintilavam com um regozijo do qual nunca me esquecerei. […] Sempre senti que o pouco que conhecíamos de sua vida não era nada; a verdadeira beleza estava no interior dela”,14 assegura.

Com efeito, poucos penetravam naquele recôndito santuário. Uma professora perguntou-lhe casualmente se Nosso Senhor lhe falava. Ela respondeu com singeleza que por vezes sim, quando ficava muito quietinha. Inquirida acerca do que ouvia, afirmou com candura: “Ele diz que me ama”.15

Num bilhete escrito à sua mãe, em 1917, revelava: “Parece-me que o pequeno Jesus me respondeu em meu coração. Dizia-Lhe eu que queria ser muito obediente, e me pareceu ouvi-Lo: ‘Sim, seja’”.16

Já com dez anos, em sua contínua busca de perfeição e radical exigência consigo mesma, anotava Anne as inspirações divinas que ouvia em seu coração: “‘Eu te quero mais obediente, não te quero mais vaidosa. Se ficas deste modo com esta idade, o que será de ti mais tarde?’… Uma criança desobediente aos pais e professores, obstinada, invejosa e preguiçosa, servirá mal a Deus, não fará sua vontade”.17

E acrescentava: “Minha alma é feita para o Céu. Tomamos muito cuidado em vestir nosso corpo, mas pensamos muito menos em nossa alma… Ela deve ter: primeiro, pureza, ou seja, afastar-se do pecado; segundo, roupa apropriada, isto é, cumprir o dever; terceiro, adornos, que são as boas ações feitas por nossa livre escolha… Isso depende de mim. Mamãe não pode fazer o esforço por mim”.18

A Providência prepara a separação

Quando lhe perguntavam o que desejava ser quando crescesse, respondia que queria ser religiosa, para a glória de Deus. E entregou-se ao espírito de penitência para adaptar-se à vida carmelita que almejava, animando inclusive uma jovem amiga a segui-la nessa aspiração. Estava de fato pronta para tomar qualquer caminho indicado por Deus. Chegou até mesmo a fazer esta reflexão: “Uma vida longa é uma bênção, pois haveria tempo para sofrer muito por Nosso Senhor”.19

Inteiramente dócil à vontade divina, as aspirações mais genuínas de sua alma pareciam, no entanto, cantar com o salmista: “Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo; quando irei contemplar a face de Deus?” (Sl 41, 2). Ela deixou transparecer este anseio ao responder às indagações da mãe acerca de seus colóquios com Jesus: “Digo-Lhe que O amo; depois falo a respeito da senhora e peço-Lhe para fazer com que os outros sejam bons. Peço-Lhe muitas coisas e rezo também pelos meus pecadores. […] E digo-Lhe que quero vê-Lo”…20

A Providência não quis fazê-la esperar para realizar tão puro desejo e já preparava a família para a separação. No final de julho de 1921, algumas crianças companheiras dos Guigné passaram umas horas felizes com eles no jardim do castelo da família. No momento da despedida, uma íntima amiga de Anne começou a chorar, tocada por um pressentimento: “Ela ama tanto o bom Jesus que logo Ele a levará”.21

Na positio do processo pelo qual Anne foi declarada Venerável, Madame de Guigné, sua mãe, deu este testemunho: “Era visível a todos que Deus tinha vias especiais para esta alma cumulada de graças por Ele, e cuja ardente generosidade nunca Lhe recusara nada. Não sem profunda emoção, eu me perguntava o que Deus preparava para esta criança. E era a glória do Paraíso, passando pelo calvário dos sofrimentos e pela ruptura da separação”.22

Fotografia tirada aos nove anos e meio

“Estou absolutamente pronta”

Em dezembro daquele mesmo ano foi diagnosticada em Anne uma doença cerebral, provavelmente meningite. Nas semanas subsequentes, o véu que separa as realidades terrenas das sobrenaturais tornava-se, para ela, cada vez mais diáfano. Certa vez, em ­conversa com a mãe, disse-lhe que seu Anjo da Guarda se fizera visível: “Ali, mamãe, ali, atrás da senhora, vire-se e o verá”.23 Em outra ocasião, chamou seus irmãos para virem depressa, a fim de verem o que contemplava, pois era lindo! O que seria?…

Avançava a enfermidade. Algumas palavras ditas quase em estado de delírio atestam sua humildade: “Tenho sido fiel, Senhor? Pequeno Jesus, receio não ter sido corajosa. Não rezei o suficiente. […] Querida Sant’Ana, tende pena dos meus pecados”.24 Oferecia suas dores na mesma intenção pela qual desejaria haver dado sua vida na Religião: a glória de Deus. Anos antes, quando alguém a chamou de valente sofredora, replicou que estava apenas aprendendo a sofrer. Agora o cálice estava cheio: “Amado Senhor, estou absolutamente pronta!”25

Na madrugada de 14 de janeiro de 1922 perguntou baixinho à enfermeira, religiosa das Irmãs de Maria Auxiliadora: “Irmã, posso ir para junto dos Anjos?”26 Com a inocência de uma criança que pede licença para ir brincar no jardim, Anne de Guigné, aos dez anos, se preparava para levantar voo com os Anjos e entrar na vida eterna. Repetindo palavra por palavra da Salve Rainha, começou a fechar os olhos. O médico sussurrou-lhe ao ouvido que olhasse ainda uma vez para sua mãe. Com um derradeiro ato de obediência, ergueu os olhos para dar a ela o último olhar.

A moeda do sofrimento

A paz pairava sobre a residência de inverno dos Guigné, onde Anne faleceu. Jacques, com seus nove anos, ajoelhado diante do esquife da irmã, parecia estar em colóquio com uma Santa. De repente, como por inspiração, levantou-se e logo voltou com os braços cheios de devocionários e santinhos, tocando-os em seu corpo, para torná-los relíquias… Onze anos mais tarde, durante a investigação canônica sobre sua vida e virtude, o corpo de Anne se encontrava incorrupto.

“Se eu morrer, irei ajudá-la do Céu”,27 afirmara Anne a uma amiga. Espalhava-se célere a convicção de que a menina que tão bem rezava intercedia agora por todos quanto a ela recorriam. Até hoje a força difusiva de sua bondade encontra expressão em seu apostolado, realizado do Paraíso. No registro de visitas em seu quarto, muitos são os testemunhos de sua presença e seu auxílio. Ela continua obtendo curas, abrindo corações à graça e ajudando adolescentes a encontrarem o caminho de sua vocação.

Em sua breve existência, Anne de Guigné elevou-se ao cume da vida espiritual. Ela entendeu que a conquista da santidade e o bem das almas se pagam com a moeda do sofrimento. “Temos muitas alegrias na terra, mas elas não perduram; a única alegria que dura é a de ter feito um sacrifício”,28 dizia. Com a tenacidade de levar tudo às últimas consequências, para Anne isso significou fazer o supremo sacrifício de si mesma.

 

1 RELIGIOSA BENEDITINA DE STANBROOK. Anne. The Life of Venerable Anne de Guigné. Rockford: TAN, 1997, p.1.

2 FAMILLE MISSIONNAIRE DE NOTRE-DAME. 2015. Centenaires du décès du capitaine de Guigné et de la conversion de sa fille Anne. Des exemples de courage qui nous engagent. In: Lettre des Amis d’Anne de Guigné. Paris. N.34 (Abr., 2015); p.1.

3 Idem, p.2.

4 RELIGIOSA BENEDITINA DE STANBROOK, op. cit., p.63.

5 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Musicalidade das relações humanas. In: Dr. Plinio. São Paulo. Ano XIX. N.224 (Nov., 2016); p.2.

6 TEMOIGNAGE D’UNE MONIALE. In: www.annedeguigne.fr/fr/.

7 RELIGIOSA BENEDITINA DE STANBROOK, op. cit., p.36.

8 Idem, p.53.

9 Idem, p.54.

10 Idem, ibidem.

11 Idem, p.59.

12 Idem, p.42-43.

13 ALMÉRAS, Anne. L’obéissance chez Anne. In: Lettre des Amis d’Anne de Guigné. Paris. N.22 (Abr., 2011); p.1.

14 RELIGIOSA BENEDITINA DE STANBROOK, op. cit., p.19.

15 Idem, p.31.

16 DE GUIGNÉ, Anne. Billet à sa mère, de 1917, apud Paroles et écrits d’Anne de Guigné. In: www.annedeguigne.fr/fr/.

17 RELIGIOSA BENEDITINA DE STANBROOK, op. cit., p.63-64.

18 Idem, p.64.

19 Idem, p.72.

20 Idem, p.75.

21 RELIGIOSA BENEDITINA. La réputation de sainteté. In: Lettre des Amis d’Anne de Guigné. Paris. N.33 (Dez., 2014); p.3.

22 Idem, p.2.

23 RELIGIOSA BENEDITINA DE STANBROOK, op. cit., p.93.

24 Idem, p.88.

25 Idem, ibidem.

26 Idem, p.94.

27 Idem, p.97.

28 Idem, p.82.

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