A missão de conduzir as almas ao Reino dos Céus é confiada por Nosso Senhor aos humildes, por reconhecerem a própria insuficiência. Por isso, seus esforços pela salvação das almas coroam-se de bons frutos.

 

Evangelho do VIII Domingo do Tempo Comum

Naquele tempo, 39 Jesus contou uma parábola aos discípulos: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco? 40 Um discípulo não é maior do que o mestre; todo discípulo bem formado será como o mestre. 41 Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho? 42 Como podes dizer a teu irmão: irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho, quando tu não vês a trave no teu próprio olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão.

43 Não existe árvore boa que dê frutos ruins, nem árvore ruim que dê frutos bons. 44 Toda árvore é reconhecida pelos seus frutos. Não se colhem figos de espinheiros, nem uvas de plantas espinhosas. 45 O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração. Mas o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, pois sua boca fala do que o coração está cheio” (Lc 6, 39-45).

I – A necessidade de um guia seguro

Num mundo em que a verdadeira caridade em relação ao próximo vai se tornando rara pelo predomínio do egoísmo, grande é o drama daqueles que atravessam a vida sem ­alguém que lhes indique o caminho da felicidade. A esse respeito, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira tece o seguinte comentário: “Lembro-me de que, em meu tempo de pequeno, nós caminhávamos pela rua e víamos muitos cachorros sem dono. Uma vez, vi minha avó passar um pito em um neto que se tinha revoltado: ‘Vá! Se quiser, faça o papel de cachorro sem dono’. De repente, a tragédia de não ser guiado apresentou-se em toda a sua amplitude a meu espírito. A alegria de ser guiado é, exatamente, a do fiel que tem em quem depositar a sua fidelidade, é a alegria de todo homem que tem o senso da hierarquia, o senso da ordem e o senso da disciplina”.1

Ora, o desejo de ser ensinado e a busca de um guia seguro constituem uma característica das almas retas, que sentem sua própria contingência e natural incapacidade de chegar, por si só, às sublimidades da Revelação. Por isso, elas se voltam para os que receberam o mandato de ensinar em nome de Deus, desejando ser instruídas por eles nas vias da bem-aventurança. O papel de quem recebeu esta incumbência é indicar o caminho certo, sem desviar-se dos preceitos da Religião, nem para a direita nem para a esquerda (cf. I Mac 2, 22).

A Igreja, guia das almas

Mais do que a qualquer pessoa individualmente eleita para conduzir as almas, tal missão foi confiada por Deus à Santa Igreja Católica, tendo sido vinculada ao ministério petrino a salvação de todos. Ser guiado nesta terra significa, então, ser conduzido pela Igreja, abrir-se para a luz dela emanada e para as graças que ela franqueia à humanidade. Cabe aos evangelizadores serem verdadeiros guias, mostrando aos homens a bússola da verdade. Assim procedendo, eles colocam seus dirigidos no caminho da santidade, sendo imprescindível, ­contudo, ­manterem-se cientes de que seu papel se limita ao de serem meros instrumentos, devendo tudo atribuir à solicitude da Igreja.

Este princípio fundamental é um dos ensinamentos mais importantes contidos no Evangelho do 8º Domingo do Tempo Comum.

II – Fonte ou instrumento?

Depois de transmitir a doutrina das bem-aventuranças e pregar o amor aos inimigos, Nosso ­Senhor ainda acrescenta algumas parábolas antes de concluir a pregação do Sermão da Montanha, que costuma ser equiparado à promulgação da Lei Antiga, no Monte Sinai. Seus ensinamentos finais consideram aquele que é chamado ao apostolado, sobre quem paira a grave responsabilidade da salvação do próximo e da perfeita transmissão da doutrina por Ele trazida ao mundo. O fato de tais admoestações virem logo em seguida aos mais sublimes ensinamentos de Jesus nos sugere a importância dos instrumentos humanos na propagação da Fé e da fidelidade destes à doutrina do Evangelho.

Um cego à frente de outros cegos

Naquele tempo, 39 Jesus contou uma parábola aos discípulos: “Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco?”

Por essa parábola o Divino Mestre, ressaltando quão grande é a insensatez de aceitar a direção de quem não enxerga, desenvolve uma aplicação espiritual muito eloquente. Cego do Reino de Deus é aquele que se propõe a fazer apostolado sem conduzir as almas para Nosso Senhor, desejando gozar do prestígio e da fama que normalmente cercam os portadores da verdade. Tal cegueira se origina em uma grave discrepância de visualização, conforme assevera um exegeta contemporâneo: “Jesus Se refere a outro tipo de cegos: aos que não veem os acontecimentos nem as pessoas com o olhar de Deus e pretendem falar em seu lugar”.2 Quem é chamado a evangelizar – todo batizado, portanto – está na condição de um modelo, de um verdadeiro guia perante aquele que ainda não foi iluminado pela luz da graça. Suas palavras, sua impostação de espírito e seu exemplo pessoal servirão de paradigma aos outros, que tenderão a ver nele a personificação das virtudes e da doutrina cristã professada. Poderá acontecer, inclusive, que o enlevo pela Sacratíssima ­Pessoa de Jesus seja despertado pela integridade de vida das almas fervorosas, tal como se verificou entre os cristãos no corrompido Império Romano: “Vede como eles se amam”,3 comentavam os pagãos, pois nunca haviam presenciado a prática da caridade fraterna. O Apóstolo reconhece a força do exemplo quando lembra aos coríntios: “Fomos entregues em ­espetáculo ao mundo, aos Anjos e aos homens” (I Cor 4, 9). E também aos primeiros fiéis da comunidade de Filipos: “Brilhais como os astros do universo” (Fl 2, 15).

A parábola dos cegos, por Pieter Bruegel, o Velho – Museu de Capodimonte, Nápoles (Itália)

Este grande ensinamento se aplica de modo muito especial à pessoa do sacerdote, e reclama dos que lançam as redes do apostolado uma fortíssima vinculação com o Divino Mestre. A condução das almas rumo ao Reino dos Céus supõe a irradiação do sobrenatural, a comunicação das alegrias que inundam a alma de quem conhece a Jesus, vive de sua vida e experimenta a efusão de sua bondade. É a partir do comércio com Aquele que prometeu atrair todos a Si (cf. Jo 12, 32) que somos conclamados a levar ao mundo inteiro a Boa-nova da salvação. São Tomás de Aquino, citando Dionísio Areopagita, transcreve seu belo pensamento: “Diz Dionísio: ‘Assim como as mais sutis e mais puras essências, penetradas pelo influxo dos esplendores solares, derramam sobre os outros corpos, à semelhança do Sol, sua luz supereminente, assim também, em todo ministério divino, ninguém pretenda ser guia dos outros sem ser, em toda a sua maneira de comportar-se, muito semelhante a Deus’”.4 Do contrário, seremos cegos à frente de outros cegos, usurpadores da missão evangelizadora, iludindo os que Deus quer beneficiar. Se nos desvincularmos das divinas raízes, cairemos no erro, com o risco de levar os que guiamos à condenação. Por isso, afirma Dom Chautard a respeito de quem é vigilante e não se deixa arrastar pelos erros dos falsos guias: “Os homens têm o direito de ser exigentes para com aquele que manifesta pretensão de os ensinar a reformarem-se. E a breve trecho descobrem se há conformidade entre as obras e a palavra, ou se a moral com que se orna o pregador, mais não é do que invólucro falaz. Consoante o ­resultado do exame, então lhe concedem ou lhe recusam a sua confiança”.5

Cegueira espiritual

Ensina a doutrina católica que toda missão evangelizadora consiste em guiar as almas para Nosso Senhor Jesus Cristo: “A transmissão da Fé cristã é primeiramente o anúncio de Jesus Cristo, para levar à fé n’Ele”.6 Entretanto, não faltaram na História homens que fizeram dessa altíssima missão uma alavanca para a concretização de seus objetivos pessoais, valendo-se das prerrogativas de anunciadores de Cristo para, no fundo, se anunciarem a si próprios, tornando-se cegos espirituais. Chamados por vocação – que muitas vezes pode ser autêntica, outras vezes nem tanto – a instruir os outros, tais cegos julgam ter compreendido a verdade de forma tão plena como ninguém. Isso, que certamente pode acontecer, sendo motivo de enriquecimento para a Igreja quando é autêntico, torna-se uma catarata espiritual nos olhos da alma, caso não venha de Deus. Esta cegueira se manifesta quando os pseudoguias se recusam a aceitar qualquer correção, não admitindo nenhuma falha que eventualmente lhes seja indicada. Eles jamais reconhecem ser passível de erro sua doutrina ou conduta.

Como aponta um teólogo da atualidade, “se esses ‘guias’, oficiais ou pretensos, ­ignoram a exigência primordial que brota do Evangelho […], se pretendem impor à comunidade exigências que Jesus, o Mestre, não prescreveu, declaram-se maus discípulos; sendo cegos, não podem senão levar ao fracasso uma comunidade que se deixou cegar com seu ensinamento”.7 Por essa razão, o apóstolo chamado a ser guia de outros, quando se coloca no centro das atenções, tirando o lugar a Nosso Senhor, acaba levando-os aonde não deveria e prestará contas no dia do ­Juízo por ter empurrado para o abismo seus subalternos, pois sua obrigação seria tê-los conduzido a bom termo, mostrando-lhes o caminho da verdadeira felicidade.

Características do verdadeiro discípulo

40 “Um discípulo não é maior do que o mestre; todo discípulo bem formado será como o mestre”.

Nosso Senhor traça, logo em seguida, o perfil do verdadeiro discípulo, confrontando a postura dos cegos com a de quem tem perfeita acuidade visual. Valendo-Se de insuperável didática, apresenta primeiro a figura dos que não veem, impressionando negativamente a multidão, para depois revelar a atitude de perfeição moral do discípulo fiel e, pela força do contraste, torná-la ainda mais atraente.

Ensina Ele que o discípulo bem formado, desenvolvendo todas as suas qualidades, será um prolongamento do mestre. Naquela sociedade onde o ensino religioso era baseado no relacionamento entre mestre e discípulo – pois assim funcionavam as escolas rabínicas –, sua linguagem é muito adequada, referindo-se a uma ­realidade conhecida por todos. Era na frequência assídua à casa do mestre, nas longas conversas e especulações sobre a Torá, e na assimilação de um modo peculiar de interpretar a Lei que o discípulo era instruído, terminando por se tornar um filho espiritual. São Paulo mesmo dirá ter sido formado “aos pés de Gamaliel” (At 22, 3).

Partindo dessa concepção, Nosso Senhor estabelece a linha do discipulado no Novo Testamento, porém numa nova perspectiva. Deixa claro não redundar a aprendizagem bem conduzida numa emancipação de quem se instrui, nem significar uma oportunidade para aprender os segredos do ofício, visando a uma escalada na qual se termine sendo mais do que o formador. Com o advento do Salvador veio até nós o verdadeiro Mestre, Aquele que derramaria o único Sangue capaz de redimir o mundo, diante de quem todos emudecem reconhecendo a própria pequenez, para receberem a medida que lhes cabe do seu espírito. Mais tarde, quando se servirem da palavra, os discípulos oferecerão, na condição de mero instrumento, a água cristalina da sã doutrina, haurida diretamente da contemplação do Divino Mestre. Assim procederam os maiores luminares da Igreja, os quais, por sua vez, foram os mais submissos seguidores de Jesus.

Todos somos pecadores

41 “Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave que há no teu próprio olho? 42 Como podes dizer a teu irmão: irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho, quando tu não vês a trave no teu próprio olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão”.

Os versículos seguintes tratam da cegueira sob outro aspecto: a incapacidade de considerar o próximo como ele realmente deve ser visto. As origens desse defeito encontram-se no orgulho, pois quem não é humilde para considerar a Deus como deve, também não terá em relação ao próximo um juízo formado de acordo com os critérios divinos. A imagem da trave e do cisco reflete a desproporção existente, na maioria das vezes, entre a insatisfação dos orgulhosos e os defeitos do próximo, tal como são na realidade.

Bem diversa é a conduta dos que têm uma noção precisa a respeito de seus problemas e misérias. Por não se constituírem a si mesmos em finalidade daquilo que fazem, compreendem melhor as insuficiências dos outros e os tratam com afeto, como observa Doroteu de Gaza: “Os Santos não são cegos e todos odeiam o pecado; entretanto, não odeiam quem o comete, não julgam, mas têm ­compaixão, aconselham, consolam, cuidam dele como de um membro enfermo, fazem todo o possível para salvá-lo”.8 Os humildes pedem sempre perdão a Deus e sabem que, se não forem julgados com comiseração, estarão perdidos. Desta forma, quando vão tratar com o próximo, põem-se em seu papel e aplicam-lhe a mesma bondade que eles desejam receber da parte de Deus. Como sintetiza Peláez, “a autocrítica nos coloca na óptica ideal para ver a dimensão dos defeitos do próximo. Quem se autocritica e autoexamina, aprende a ver com compaixão”.9

Tirar a trave do olho significa banir a mentalidade farisaica a respeito de si mesmo e ter as vistas postas naqueles que são a nossa luz: Nosso Senhor Jesus Cristo e Maria Santíssima. Dessa maneira estaremos em condições, inclusive, de tirar o cisco do olho de nosso irmão, ­levando-o a compreender sua discrepância em relação a esses supremos modelos e, por amor a Eles, desejar sua conversão. Qualquer outro método será inútil e não renderá fruto, conforme veremos no trecho a seguir.

Santo Agostinho – Igreja de Santa Maria, Kitchener (Canadá)

III – Bons e maus frutos nascidos do coração

43 “Não existe árvore boa que dê frutos ruins, nem árvore ruim que dê frutos bons. 44 Toda árvore é reconhecida pelos seus frutos. Não se colhem figos de espinheiros, nem uvas de plantas espinhosas”.

Nosso Senhor passa à figura dos frutos nascidos de boas e más árvores, compondo uma esplêndida imagem para ilustrar um princípio que hoje pode nos parecer evidente. No entanto, antes d’Ele ninguém tivera sabedoria para enunciá-lo. Na verdade, somente um Deus, capaz de sondar os rins e perscrutar os corações (cf. Sl 7, 10), poderia tê-lo transmitido. ­Torna-se patente, por esse exemplo, não existir diferença entre aquilo que se é e o que se faz. Jesus mesmo dirá, mais adiante, recriminando a maldade dos fariseus perante o seu testemunho: “Se não fizer as obras de meu Pai, não acrediteis em Mim. Mas se as faço, embora não acrediteis em Mim, acreditai pelas obras que Eu faço” (Jo 10, 37-38). Quais eram, por exemplo, as obras dos fariseus? Uma aplicação da Lei tão inclemente que deixava a todos com as costas arqueadas de tanto sacrifício, e ninguém conseguia cumprir com perfeição. Quais eram as obras de Nosso Senhor? Uma doutrina nova, confirmada por milagres, ressurreições, expulsão de demônios, etc. Ou seja, as obras deram a conhecer quem eram eles.

A ausência de figos em espinheiros ou de uvas em plantas espinhosas mostra que o que sai de uma árvore é algo definidamente bom ou mau, pois nunca pode florescer algum tipo de fruto contendo veneno e servindo de alimento ao mesmo tempo. Podemos aplicar essa verdade às intenções do coração, pois, embora sejam impenetráveis por terceiros, cedo ou tarde se manifestam através de nossos atos. Ninguém pode fingir ser uma pessoa virtuosa quando peca em seu interior, porque logo se revelará sua falsidade: “O homem atua em função do que é na realidade; embora utilize algum artifício dissimulador, seus atos e suas palavras são o reflexo exato do que é no mais profundo de si mesmo”.10 Por isso, nunca devemos querer conciliar práticas boas com outras reprováveis, procurando estabelecer uma ponte entre Deus e o demônio. Da mesma forma como não nos alimentamos de espinhos, também não podemos assimilar uma má doutrina, nem permitir em nossas obras de apostolado o espírito do mundo, como pretendem alguns. A esse respeito ensina Santo Agostinho: “A doutrina de Cristo, crescendo e se desenvolvendo, misturou-se com árvores boas e com sarças más. Pregam-na os bons e pregam-na os maus. Observa de onde procede o fruto, de onde se origina o que te alimenta e o que te aflige; ambas as coisas estão mescladas à vista, mas a raiz as separa”.11 Este critério infalível sempre nos indicará a verdade, pois, como conclui Dom Chautard: “Deus deve […] subtrair ao apóstolo, cheio de arrogância, as suas melhores bênçãos para reservá-las ao ramo que humildemente reconhece que somente pode haurir a sua seiva no Tronco divino”.12

A graça, tesouro dos bons

45 “O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração. Mas o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, pois sua boca fala do que o coração está cheio”.

A imagem do tesouro significa aquilo que o homem possui de mais precioso, a grande riqueza de sua vida. Nosso Senhor mostra apreço por este simbolismo em sua pregação, pois o utiliza em numerosas ocasiões: quando ensina a ajuntar tesouros no Céu (cf. Lc 12, 33) e a procurar o tesouro escondido no campo (cf. Mt 13, 44), e faz uma aproximação entre o Reino dos Céus e uma pérola preciosa encontrada por um negociante (cf. Mt 13, 45-46). Fala ainda do escriba comparado ao pai de família, que tira coisas novas e velhas de seu tesouro (cf. Mt 13, 52), e convida o moço rico a deixar tudo por uma outra riqueza: a eternidade feliz (cf. Mc 10, 21). Na passagem deste domingo, Ele nos fala dos tesouros do coração.

No decorrer da existência, é natural reter com afeto aquilo que parece ser mais excelente e se coaduna com os próprios predicados, pois faz parte da psicologia humana conservar o que identifica consigo e eliminar o que é alheio às suas inclinações. Se isso é válido para o plano natural, aplica-se com maior razão aos assuntos de vida espiritual. Qual é o tesouro do coração do homem bom? O tesouro eterno, pois se uma gota de graça vale mais do que toda a natureza e o universo,13 quem vive na graça de Deus possui uma riqueza incomensurável. Todavia, nós só teremos um tesouro autêntico se o nosso coração estiver convertido, e por isso é preciso governá-lo, impedindo-o de seguir um caminho contrário ao indicado pela graça. Para tanto, devemos cortar com os apegos e caprichos que nos afastam de Deus, e, sobretudo, com o pecado. Se no passado estabelecemos uma aliança com qualquer desses desvios, faz-se indispensável desfazê-la, porque só assim estaremos em condições de constituir um tesouro celestial.

Entretanto, assim como se espera que as riquezas desta terra cresçam em quantidade, nosso tesouro precisa ser aprimorado em qualidade por meio da contemplação, do permanente louvor, ação de graças e adoração a Deus. ­Desse modo, dele sairão ensinamentos úteis ao próximo; caso contrário, só produzirá os frutos do egocentrismo e não terá qualquer efeito edificante junto aos outros, sobretudo através de palavras que sejam o transbordamento de um coração virtuoso.

A palavra é o espelho do coração

A consideração da palavra nos incentiva a um exame de consciência. Sobre o que é a nossa conversa? A que estimulamos os outros com o que dizemos? O que sai de nossa boca? Pelo nosso discurso conheceremos como somos por dentro, e teremos ideia de qual é a árvore de onde procedem esses frutos, como adverte São Basílio: “O estilo da palavra dá a conhecer o coração do qual procede, manifestando claramente a disposição de nossos sentimentos”.14 É pela nossa conversa diária que, segundo nos diz Nosso ­Senhor neste Evangelho, conheceremos o tipo de tesouro guardado na alma. Também São João Crisóstomo é muito claro ao expor esta doutrina: “É a coisa mais natural do mundo o fato de, transbordando a maldade de dentro, derramar-se para fora pelas palavras da boca. Quando escuteis um homem que fala mal, não penseis que sua maldade é simplesmente aquela que suas palavras delatam, mas conjecturai ser a fonte muito mais abundante, pois o que externa é apenas o excedente do coração. […] Porque a língua, embora muitas vezes seja desavergonhada, não derrama de uma só vez toda a sua malícia; porém, o coração, que não tem por testemunha homem ­algum, engendra os males que bem entende ao não sentir-se coibido de nenhuma forma, porque tem a Deus em muito pouca conta. Assim, pois, como as palavras podem ser examinadas e são pronunciadas ante todo o mundo, o coração, entretanto, fica na sombra; de onde os pecados da língua serem menos frequentes que os do coração. Mas, quando a maldade interior se faz muito grande, irrompe estrondosamente o que até então estivera escondido”15

Ordenação sacerdotal na Basílica de Nossa Senhora do Rosário, Caieiras, 24/4/2015

IV – Conclusão

A vida, comparada pelo salmista ao sopro da manhã e à sombra que passa (cf. Sl 38, 6-7), possui ínfima duração. Caminhamos todos para o grande dia da prestação de contas, quando Jesus nos chamará à sua presença e nos conduzirá às moradas da casa de seu Pai, se formos dignos de alguma recompensa. Sabemos desde já, porém, que o ingresso no Reino dos Céus é franqueado aos bons de acordo com os frutos apresentados. Por eles se conhecerá a sinceridade de nossa entrega a Deus. Uma vez que Ele toma a iniciativa de nos amar por livre e espontânea vontade, arrancando-nos do pó e elevando-nos até o mais alto cume sobrenatural, a vida da graça, como Lhe retribuiremos? Este é o domingo da Liturgia da generosidade, de nossa resposta a Deus por tudo quanto nos dá.

Tendo bem presente que esses frutos também se referem ao modo de conduzirmos o nosso próximo pelas vias da salvação, peçamos a insuperável intercessão de Maria Santíssima, para d’Ela obter a graça de sermos transformados em discípulos restituidores de tudo quanto recebemos de Deus e, mais ainda, em filhos cuja vida possa ser comparada ao cristal colocado no ostensório: um mero instrumento que não impede aos fiéis a contemplação de Jesus-Hóstia, mas, pelo contrário, revela-se de qualidade tanto melhor quanto mais transparente for.

Sejamos autênticos seguidores de Nosso Senhor e devotados filhos da Igreja que se empenham em espargir pelo mundo a luz recebida do Alto, e assim toda sorte de bons frutos sairá de nosso interior, porque “quando os homens resolvem cooperar com a graça de Deus, são as maravilhas da História que se operam”.16 

 

Notas

1 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Palestra. São Paulo, 4 abr. 1972.
2 BARTOLOMÉ GONZÁLEZ, Francisco. Acercamiento a Jesús de Nazaret. Madrid: Paulinas, 1985, v.II, p.39.
3 TERTULIANO. Apologeticum, XXXIX: PL 1, 471.
4 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Suppl., q.36, a.1.
5 CHAUTARD, OCSO, Jean-Baptiste. A alma de todo o apostolado. São Paulo: FTD, 1962, p.113-114.
6 CCE 425.
7 MONLOUBOU, Louis. Leer y predicar el Evangelio. Santander: Sal Terræ, 1982, p.162.
8 DOROTEU DE GAZA, apud CANTALAMESSA, OFMCap, Raniero. Echad las redes. Reflexiones sobre los Evangelios. Ciclo C. Valencia: Edicep, 2003, p.214.
9 PELÁEZ, Jesús. La otra lectura de los Evangelios. Ciclo C. 2.ed. Córdoba: El Almendro, 2000, v.II, p.104.
10 MONLOUBOU, op. cit., p.162.
11 SANTO AGOSTINHO. Sermo CCCXL/A, n.10. In: Obras. Madrid: BAC, 1985, v.XXVI, p.37.
12 CHAUTARD, op. cit., p.35.
13 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., I-II, q.113, a.9, ad 2.
14 SÃO BASÍLIO MAGNO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Lucam, c.VI, v.43-45.
15 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilia XLII, n.1. In: Obras. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo (1-45). 2.ed. Madrid: BAC, 2007, v.I, p.809-810.
16 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Revolução e Contra-Revolução. 5.ed. São Paulo: Retornarei, 2002, p.132.

 

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Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, é fundador dos Arautos do Evangelho.

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